Existe um certo revanchismo contra as ciências humanas em geral — e as artes em particular — que se manifesta em ataques os mais diversos. Há vezes em que esses ataques partem, lamentavelmente, da esquerda, mas; no momento atual, em que a esquerda está praticamente incapacitada de dirigir o debate cultural, limitando-se a reagir quando mordida; tem sido a direita a executar a maior parte dessas provocações.
O motivo pelo qual certa categoria de gente odeia as ciências humanas e as artes é baseado em uma ideologia estritamente utilitária, segundo o qual “ciência de verdade” é somente aquela que produza resultados tangíveis ou, dito de maneira mais cômica, capaz de “construir, explodir ou consertar coisas”. O ser humano é, assim, coisificado, reduzido a algo que pode ser, também, “consertado”, mas somente no aspecto mais aparente, físico. Artes e ciências humanas tratam principalmente do ser humano além do osso e da carne — e isso não é priorizado pelo materialismo de direita.
Esta semana, em uma conhecida comunidade de escritores (ou pseudos) no Facebook, surgiu alguém a regurgitar essas teses. Para a cabeça de tal pessoa, todo um campo do conhecimento humano é desnecessário e o fazer artístico é uma “perda de tempo”. Se a arte se limita ao entretenimento (“passatempo”), estudar teoria literária é tão estéril quanto teses de doutorado sobre técnicas para resolver palavras cruzadas.
Tais distorções argumentativas não são por acaso, são ideológicas. Encontram ressonância porque evocam o senso comum obscurantista do brasileiro, um povo reconhecido pela ignorância e pelo preconceito, e porque surfam no empoderamento do que Umberto Eco chamou de “o idiota da aldeia”.
Entre as teses arguidas contra a crítica literária encontra-se a afirmação de que é melhor “ir diretamente ao texto do próprio autor”, que “o texto em si mesmo se basta”, que “já está tudo ali e não há mais nada o que falar.”
Isto nega a validade não só da crítica literária, mas também da semiótica, da sociolinguística e de uma série de estudos que partem do texto literário para acercar-se do conhecimento da realidade em que o autor viveu e das circunstâncias que o moveram a escrever certo texto. Ignora-se, nisso, que nem o autor e nem o texto são ilhas no mundo, que existe uma relação de diálogo entre o artista/autor e tudo aquilo que o cerque e delimite. Partindo, em um nível mais básico, da língua em si, e chegando a estruturas familiares, sociais e culturais.
É uma tese que veda o debate por duas frentes, a primeira pela negação da importância do assunto, como dito mais acima, a segunda, através da negação da possibilidade de se obter conhecimento neste estudo, já que “o texto se basta”.
É curioso que ideias assim sejam defendidas, porque quem o faz parece não se dar conta da necessidade que temos de dialogar com nossas leituras. Que muitas são as vezes em que recorremos a um dicionário ou a uma enciclopédia enquanto lemos uma obra. Mais sutil, mas não menos verdadeiro, é o fato de que cada leitura prepara-nos para ler mais complexamente a obra seguinte: a leitura que hoje somos capazes de fazer se construiu sobre as leituras anteriores, inclusive aquelas em que falhamos.
Portanto, a tese de que a obra é fechada em si é irmã da proposta de que a obra deva ser assim. Não espanta que tanta gente queira obras assim tão rasas que não requeiram o dicionário, a enciclopédia ou os estudos. Afinal, literatura é apenas entretenimento.
É por isso que considero perigosa a entronização da chamada “subliteratura” em igualdade com a “alta literatura”. São estas as obras que podem bastar-se em si mesmas, pois só dependem do que já encontram no leitor: doses limitadas de cultura popular e ideias preconcebidas. São estas as obras sobre as quais supostamente nada mais há que se dizer. Legimitar a “subliteratura” como algo em pé de igualdade com qualquer Machado de Assis acaba contrabandeando para o debate a sensação (errada) de que os estudos literários são fúteis. Sob o disfarce de se abolir o “preconceito” contra tais obras “inferiores” o que muitas vezes acontece é a legitimação de uma literatura de alcance curto, que não convida à reflexão e nem acrescenta informação ao leitor. E isso pode vir a desembocar na ideia de que as universidades não deveriam “gastar dinheiro” financiando pesquisas do tipo, que não “constroem, explodem ou consertam coisas”.