O Depoimento
Deixa eu explicar, senhor delegado, não fiz por maldade não. Eu nem conhecia o garoto pessoalmente, sou novo na cidade, no prédio. Mãe dele eu nunca nem tinha visto passar na escada, porque eu, ela, todo mundo trabalha oito horas por dia, fora condução e almoço na cantina do serviço. Nada pessoal, foi por causa do sono. Acredite, sono. A falta de sono é capaz de levar um sujeito a fazer coisas que nem ele depois acredita, de repente eu que estava possuído, e foi bom enquanto durou. Por favor, não precisa insistir, vou contar tudo desde o começo, manda o escrivão ir anotando. Tudo começou na quinta-feira. Eu tinha uma reunião de trabalho às oito da manhã de sexta e o capiroto de calça curta resolveu dormir depois de meia-noite, vendo filme. O senhor imagina que desgraça: eu deitado querendo pegar no sono para trabalhar no outro dia e uma televisão alta com um filme desses de guerra, nem sei qual, e tinha a cena em que alguém torturava um fulano e ele berrava como um desesperado. Deve ter acordado o prédio inteiro, mas eu é que tenho pavio curto e levo a culpa. Xinguei sim, botei a cabeça para fora da janela e bradei de dentro das cavernas cheias de enfisema de meus pulmões sofridos que aquilo não era coisa decente de se fazer, que gente de bem precisa trabalhar enquanto vagabundo vara a noite vendo filme na televisão, com o volume no talo. Também joguei um cascalho do vaso de flores da patroa. Acertou o vidro da janela que foi uma beleza, arrancou um cavaco. Então o volume da tevê baixou e eu pude dormir. Duas horas depois, claro, porque estava com o sangue fervente. De manhã, na reunião, eu parecia ter virado lobisomem na noite e corrido as sete encruzilhadas. Veio a sexta-feira e o Mefistófeles Júnior invocou de ouvir música. Em vez de sair para pegar mulher como qualquer adolescente de boa família deve fazer, o espinhento ficou até duas da matina ouvindo funk. Volume baixo, mas de vez em quando, só por amor de me irritar, o moleque subia com o volume e me arrancava dos braços do sono. Confesso que me irritei. Não consegui dormir, mas no sábado, às oito da manhã, liguei meu som no talo, tocando um pendrive inteiro de heavy metal, saí de casa e fui dormir num motel. Sim, paguei um motel sozinho para ter duas horas de sono. O pessoal metendo me fez menos irritação que o molequinho. Quando voltei de tarde já o som já tinha acabado, porque haviam cortado a luz do prédio. O síndico veio falar, eu nem pedi desculpas, só falei que durante o dia não tem lei do silêncio, só depois de nove da noite. Ele me ouviu e não respondeu. Coragem de enfrentar a mãe do Asmodeuzinho ele não tem. A essa altura metade do prédio me odiava um pouco, mas o prédio inteiro odiava muito o peste. Teve reclamação na imobiliária, teve mediação. Chegou-se ao acordo de que dez horas da noite são o máximo de som que se pode tolerar. Agora o senhor veja só: desde esse dia o projetinho de Abbadon passou a me irritar de propósito, mantendo funk virado desde que chego do trabalho até exatamente dez da noite. Ele deve ter colocado um controle automático: é só dar 21:59:50 que o som se cala e o prédio fica silencioso como a floresta dos elfos na Terra Média. Não havia mais paz possível, e eu não poderia reclamar. Principalmente depois que soube que a mãe do garoto é uma pobre coitada que já apanha dele — e ele é só um pirralho de quatorze. Foi então que tive a minha iluminação. Um dia, tentando conectar o telefone no roteador novo que eu tinha comprado, vi um nome diferente na lista. Uma impresora sem fio. Conectei nela usando a senha padrão. Inclui uma conexão por endereço MAC entre meu computador e a impressora dele. Só se ele fosse muito esperto poderia perceber. Então passei duas noites pensando como eu poderia usar essa conexão para me vingar do pequeno Lúcifer. Teria demorado menos a pensar em algo se aquela barulheira infernal não me dificultasse tanto. Então tive a ideia, fui eu, estou confessando. Agora que o senhor sabe dos antecedentes, decide o que vai fazer com essa carta que o seca-pimenteira lhe trouxe.
A Carta
Saudações, Azazel…
Esse é o seu verdadeiro nome, Você é o Escolhido e eu tenho grandes planos para você.
Não amasse ainda esta folha de papel, ela contém informações muito importantes sobre quem você realmente é e quem pode vir a se tornar. Leia até o fim, mesmo que se sinta chocado, e NÃO MOSTRE ISSO A NINGUÉM, ou todo o plano que eu trabalhosamente concebi será posto a perder e você poderá terminar na cadeia ou em um manicômio judiciário.
Aqui é o seu pai, Satanás, o próprio. Eu invadi esse aparelho através da conexão a que chamam de “wi-fi” para poder me comunicar com você, pois você tem entendido mal as minhas instruções.
Você é um dos muitos filhos que pus nesse mundo. Como todos os outros antes, você terá o meu apoio caso queira ser grande. Mas para isso você tem que seguir os conselhos que eu, seu pai amoroso, lhe darei gratuitamente.
Não acredite no que dizem de mim, não sou esse monstro chifrudo de orelhas pontudas, pele vermelha, rabo grosso e olhos amarelos que os outros pintam. Pelos meus nomes você pode saber quem realmente sou: Lúcifer, o que tem a luz. Satanás, o contestador. Diabo, o que causa a discórdia. Mefistófeles, o semeador. Nenhum de meus nomes faz qualquer menção a fornalhas de fogo, garfos em brasa ou rios de lava; tudo isso é intriga de quem não compreendeu a minha mensagem. Eu sou, na verdade, um ser determinado a fazer o mundo evoluir e durar mais tempo. Ah, e “capeta” quer dizer apenas “aquele que usa a capa preta”. Era só o nome de uma roupa que os atores de teatro de antigamente usavam quando me interpretavam.
Tudo isso é verdade, se você pesquisar, descobrirá que tenho razão e verá que, embora eu seja o “pai da mentira” (não nego isso), eu não estou mentindo para você, meu filho querido.
Eu escolhi a sua mãe, sem ela saber e quem que ela nunca soubesse, porque ela tinha a capacidade de engendrar um rapaz saudável de corpo como você, que tem uma mente determinada e sabe muito bem o que quer.
Se você estiver disposto a se orientar pelas minhas regras e seguir as minhas determinações, um dia farei de você um homem rico e poderoso, como outros filhos meus de quem você já ouviu falar: Mister Catra, Steve Jobs, Kim Jong-Un, Donald Trump, Josef Stálin, Paulo Coelho, Romário, Paulo Maluf, Vlad Tepes (o Drácula real), Júlio Cesar (o imperador romano, não aquele goleiro), Adolf Hitler, Pedro Álvares Cabral, Raphael Draccon e Vladimir Putin. O que lhe prometo é pouco: só grana, fama e mulheres; mas o que peço é também muito pouco: obediência.
Sua primeira tarefa é ser discreto. Todo mundo sabe que o funk é a minha grande arma de dominação do mundo e que, graças aos bailes, em breve eu serei tão poderoso quanto o filho “dEle”. Justamente por isso, o meu filho, o meu Escolhido, não pode estar envolvido nisso, para não chamar a atenção.
Livre-se de todo o funk que houver em sua vida e dedique-se a estudar, e muito, porque quando eu lhe der grana e poder haverá muita gente querendo se aproveitar de você. Então, você precisará ser sabido e inteligente para driblar esses otários a quem eu não darei nada, para que não tomem de você o que eu lhe dei.
A segunda tarefa é ser obediente à sua mãe. Ela não pode nem desconfiar de que você é meu filho. Se você for um garoto muito desobediente e insolente, ela pode desconfiar. Será que alguma vez ela já não lhe chamou de “capetinha”, ou “filho do capeta”, ou algo assim? NÃO DEIXE ELA DESCONFIAR, senão ela o levará para a igreja, você será afastado de mim e nunca será nem rico, nem famoso e nem o maior comedor de bucetas do país.
Aguarde instruções.
Epílogo
Sei bem como é isso. Não vou lhe entregar, homem. Vou dizer que não tem como saber o autor dessa carta, recomendar que mudem a senha da impressora e que tentem viver. O garoto ficou realmente muito impressionado, e vai continuar assim pelo menos até ele entender como é que funciona esse negócio de wifi. Acho que você vai ser menos incomodado a partir de agora. Ou o garoto vai seguir suas ordens, na esperança de ser rico e famoso, ou então vai para a igreja se desencapetar e daqui para a frente só ouve gospel. Seu azar será se ele achar uma igreja dessas que adoram o Deus surdo.