John me ligou da Austrália através dos oceanos. “Como está?” — ele me perguntou numa voz tão sonolenta quanto a minha. Eu resmunguei que não sabia, e estava tão confuso que não consegui lhe explicar que não o reconhecera, mas que, sim, sabia como estava. Ele riu de mim e começou a metralhar uma história sobre voltar para o Brasil em breve. Então o reconheci.
“Caralho! John!”
“Não tenho grana para falar durante muito tempo. Passa-me teu email, um celular, qualquer coisa.”
“Tá, eu passo.” — Rapidamente lhe forneci um endereço eletrônico e então, quando ia repetir, a ligação caiu.
Desliguei o telefone fixo — que eu planejava cancelar por aqueles dias — e achei curioso que o meu amigo me ligasse exatamente antes disso acontecer. Ele emigrara em uma época em que o mundo era diferente, eu era diferente.
Enquanto me dirigia ao banheiro para fazer a barba e tomar banho, dei-me conta de que o telefone fixo era o último laço dele comigo: Quando John partira o meu endereço eletrônico era de um provedor de internet que faliu há dez anos, meu website estava hospedado em um serviço gratuito nos Estados Unidos, que foi cancelado há dezesseis anos, meu número de telefone móvel ainda era o primeiro, de uma operadora falida há vinte anos, e até o meu endereço residencial era outro, embora na mesma cidade. Meu emprego era outro, a profissão que eu tinha ele nem poderia imaginar. Estava casado com uma mulher do tipo que ele não previa que eu amasse. Se John tivesse voltado ao Brasil poucas semanas depois e quisesse me ver ele teria de contratar um detetive para me achar.
Culpa dele, claro, que cada vez me escrevia de um lugar diferente em um país que eu não conheço. Respondi poucas vezes às suas cartas. Duas, para ser exato. Uma destas eu tenho certeza que ele leu. Ele me escreveu depois disso ainda umas seis vezes. Cada vez contando uma história diferente, de mulheres, de empregos, de ganhar muito dinheiro e de ter tantos amigos, enquanto eu definhava em um emprego horrível, remoía os cornos que Letícia me pusera e tentava escrever “Amizade Dolorida”, aquele romance terrível que me custou dois anos de sanidade e sete mil reais de investimento para publicação em uma editora picareta, que faliu e fez meu dinheiro virar fumaça sem meu livro virar uma caixa de tijolos no porão.
Depois disso não nos vimos nem nos escrevemos por vinte e dois anos: Amei Amanda, empreguei-me em outro horror, caí da escada e quebrei uma vértebra, razão pela qual pareço precocemente envelhecido com essa bengala. Reescrevi o livro, com ajuda da amada, arranjei-me em um lugar melhor, fora daquele bairro onde gostam tanto de queimar lixo, e agora tenho esse negócio bem razoável com o meu cunhado.
Lembro-me da décima carta dele, a última que consegui ler. A seguinte foi quase uma letra do Zé Ramalho e depois ele não escreveu mais. John me lembrava do peso das escolhas que fazemos na vida, repetia o convite para que eu “largasse tudo” e fosse para a Austrália, para me tornar “o homem que eu nascera para ser”.
Não fui. Não fora antes, não queria ir. Então, em 2018, eu já tenho quase cinquenta anos de idade e John me liga. Quer me ver, decerto vem me esfregar na cara esse homem que ele se tornou, parecido com o outro em que eu não quis me transformar. Esse outro homem não amaria Amanda e talvez, desastrado que sou, sofresse mais do que uma atrofia de perna em consequência de um tombo da escada — e ainda haveria de ser em uma terra estranha.
“Não seja covarde” — ele dizia na carta — “e nem se derrote com essa ideia de que é um desastrado. As oportunidades só vêm para os que têm coragem. Posso lhe arranjar um emprego na firma e um quarto no albergue dos imigrantes, o resto é você.”
O resto seria eu do outro lado do mundo querendo ser alguém diferente do que sou.
Quando voltei do banheiro, barbeado, escutei a fervura do café e me arrastei até a cozinha, onde a Amanda terminava de se aprontar. Ela sempre saía mais tarde do que eu, que tinha de fazer o nosso café. Naquele dia ela também calhara de acordar cedo e o café já estava pronto. Um dia fora da curva, em que as coisas inesperadas aconteciam.
“O que foi? Você parece que viu um fantasma?”
“Na verdade eu ouvi um.”
“Está falando do telefonema?”
“É.”
“Quem era?”
“Você não conhece. Eu só a conheci uns cinco anos depois que ele foi embora. Para a Austrália.”
Enfatizei as últimas três palavras com pausas entre as sílabas, como se isso tivesse o condão de fazer John estar ainda mais longe, de tornar sua viagem de volta ainda mais cara, demorada e perigosa. John poderia ter ido para Marte ou Plutão, ou para o Rio de Janeiro, e eu não o teria acompanhado. Porque não era uma mera questão de eu poder ser um homem diferente, mas de ele querer que eu fosse.
“Seu amigo vem nos visitar?”
“Ele disse.”
“Você não parece muito feliz com isso.”
“John achava que eu tinha de ir para a Austrália com ele, me tornar o homem que eu nasci para ser.”
“Por que você não foi?”
“Não sei. Pode ter sido covardia, preguiça ou premonição. A verdade, Amanda, é que… você vai rir de mim por dizer isso, mas… eu estou bem satisfeito de ser quem eu sou. Eu não tenho remorso nenhum de não ter ido para a Austrália.”
“Ah, que fofo!”
Ela me abraçou, acreditando que era apenas uma oblíqua declaração de amor, dessas que os escritores também fazem, mas não era só. Embora eu também estivesse satisfeito com ela, a verdade é que me assustava a ideia de mudar-me, de mudar-me tanto a ponto de escolher um nome estrangeiro antes mesmo de comprar a passagem. De fazer os outros se habituarem a chamar-me de outra coisa.
Não, eu não me tornaria nada diferente. Mudaria com a vida e suas dores, mas nunca quis me chamar outro nome, nem ter outra pele, nem outro cabelo. Queria ser feliz aqui mesmo, em um país desenvolvido e adorável. Trazer para cá a utopia em vez de fugir atrás dela.
“Está acordada cedo, querida.”
“Ah, não te contei ontem. Você já estava dormindo, tão cansado…”
“O que houve?”
“A empresa está demitindo. Eles me puseram na primeira lista.”
“De novo…”
Minha decepção não era com ela, de forma nenhuma. Era com esse mundo cão em que estamos, mundo torto em que a utopia teima em não vir, e os sonhos da gente são abortados cedo.
Amanda fará trinta e seis anos em setembro e nós não tivemos filhos ainda. Temo que nunca, pois não ganho sozinho o bastante para grandes luxos, ou para uma família maior. A saúde difícil que nos aflige a ambos exige guardar dinheiro agora. O homem que eu me conformei a ser tem o amor de Amanda, mas não tem dinheiro para dar-lhe toda a felicidade que ela merece.
Mas esse homem ainda não quer saber das vitórias e aventuras de John na Austrália, e ainda não entende por que o desaparecido voltará, tantos anos depois. Para, talvez, esfregar seu sucesso em minha cara e fazer Amanda amar-me menos, acreditando que eu não tive a audácia de enricar e de lhe dar confortos que não menciona nunca, mas que decerto sempre sonha.
“Eu sinto muito, querido.”
“Não sinta.” — Eu me levantei, com o peso nas costas de uma idade maior que a natural. — “A culpa nunca foi sua, e nunca será.”
Ela se ofendeu, eu vi em seus olhos. Achou que eu estava sendo agressivo e irônico, não detectou a sinceridade, quase paternal, com que eu tentava lhe dizer que eu nunca a culparia por coisa alguma, porque, naquele momento em que detestava John, que fora meu maior amigo, eu me dera conta de que não quisera ser outro homem, que eu ficara no Brasil para poder amar Amanda. Ela tinha quase trinta e seis anos e ganhara algum peso, alguns cabelos brancos um tanto precoces, mas não perdera minha solidariedade e nem o meu afeto. Tem coisas que a gente escolhe para a vida toda, para o bem ou para o mal.
“Desculpe, querida. Não foi o que quis dizer. Eu nunca vou culpar você por coisa alguma. A culpa é de quem não vê a sua competência. Eu vejo em você tudo de bom.”
Ela não sorriu. Havia pequenas lágrimas em seus olhos. Lágrimas de dor. Eu sabia que ela sofria por estarmos, novamente, com os bolsos apertados e os sonhos adiados. Mas eu também sofria porque, do outro lado do mundo e além dos oceanos, o meu ex amigo atrapalhava meu casamento com ideias de coisas que eu rejeitara ter e ser.
“Prepare seu currículo, querida. Essa crise não vai durar para sempre.”