Há uma teoria segundo a qual o brasileiro urbano de classe média de antigamente era embalado, desde o útero da mãe, pelo barulho de um motor de combustão interna. Quando nascia, o aroma de lubrificantes e combustíveis se impregnava em suas narinas com a mesma intensidade do cheiro materno. Quando aprendia a falar, desde cedo entendia, pelas conversas dos mais velhos, que o automóvel seria um membro da família.
Não é nada surpreendente que a vida sobre rodas seja, fosse desde há muito tempo, um ideal de perfeição e liberdade — e o resultado óbvio disso era que a sua vida afetiva fosse pontuada pela presença do grande casamenteiro moderno, exceto que sua ação não resultava, via de regra, em casamentos, salvo por exceção.
Hoje talvez isso pareça fora da normalidade, pois estamos, cada vez mais, migrando rumo a uma sociedade sem automóveis. Isso, claro, tem seu lado bom e seu lado ruim. No momento não me ocorre mencionar lado algum, afinal o que me interessa disso tudo é lembrar o que de bom a vida tem. Infelizmente, já há alguns anos, a graça de ter um carro diminuiu por causa dos perigos do mundo.
Antigamente era seguro transar dentro do carro — pelo menos aqui no interior, onde ainda não havia toda a violência dos lugares grandes, de que a gente só ouvia falar no programa do Gil Gomes.
Havia as tais “quebradas”, lugares onde se podia estacionar um carro em paz a fim de desfrutar de quaisquer finalidades para as quais um carro não foi feito. Entre os usuários das quebradas reinava um código de honra quase cavalheiresco: quem chegava primeiro tinha o controle inconteste do lugar, pois a ninguém ocorria atrapalhar o próximo em um momento tão importante. Era como um mandamento religioso: “não empateis a foda de vosso irmão para que não tenhais a vossa foda empatada um dia.” Se você chegava na quebrada e via alguém lá, dava ré com todo respeito e ia caçar outro lugar, mesmo que fosse bem longe.
Havia, claro, quatro categorias de mulheres: as que não topavam transar, as que não topavam transar no carro, as que não topavam transar fora do carro e as que não topavam transar muito longe do carro. As primeiras você levava à missa, as segundas você tinha de levar a um motel, para as terceiras você tinha que manter as janelas fechadas e buscar uma quebrada, e para as últimas você tinha que achar um bom lugar, a quebrada perfeita.
Havia, inclusive, mulheres que preferiam transar no carro, até quando iam a motel. Um amigo me contou que ele e a namorada transavam dentro do carro, com as portas abertas, os bancos reclinados, o som tocando. O motel basicamente oferecia o banheiro, as camisinhas de brinde, as toalhas e o toldo que garantia a privacidade. A namorada dele acreditava que os funcionários dos motéis ficavam olhando por uma greta da porta ou filmando os casais com câmeras escondidas.
Havia quebradas quase mitológicas nos arredores da cidade — muitas delas com apelidos curiosos. Havia a “Curva do Céu”, da qual se descortinava uma bela visão da lua, o “Bosque”, onde o “lobo” ia a fim de comer uma chapeuzinho, mas nenhuma quebrada era tão concorrida quanto a do Beira-Rio. Ali havia uma combinação de tudo de bom que uma quebrada poderia ter.
A quebrada do Beira-Rio ficava a uns quatro quilômetros do perímetro urbano, em um lugar onde a rodovia se aproximava de um rio. À direita da estrada havia uma subida que terminava em um morro de topo chato. Do outro lado o morro descaía em uma pirambeira íngreme até uma vargem que seguia a curva do rio. Chegava-se ao topo desse morro por uma curiosa estrada aberta no mato pelo quebrar de galhos e dobrar de touças de capim. Tudo isto feito não pela mão humana, mas pela roda do automóvel. Nos primórdios, antes mesmo de eu nascer, ali só iam jipes e picapes, mas o tráfego frequente foi amansando o terreno e abrindo espaço entre a vegetação, até que, na minha época, se subia ali em qualquer carrinho besteiro.
Antes de comprar meu próprio carro, e descobrir para que servia aquele lugar, eu achava curioso quando passava por lá, de ônibus, via aquela estradinha que parecia não ir a lugar algum e me perguntava se não havia algum sítio escondido na matinha. Um dia, cinco ou seis meses depois de comprar meu primeiro fusquinha, inventei de subir pela estrada e cheguei a uma tronqueira de arame que separava a parte pertencente ao governo da que decerto pertencia a alguém. Além a estrada continuava, então abri a cerca e segui morro acima, as rodas do fusquinha deslizando no mato molhado. Então cheguei ao topo do morro, onde não havia nada, parecia até um aeroporto de disco voador. Mas não precisei de mais do que cinco minutos para entender o que era aquele lugar: bitucas de cigarro, camisinhas usadas, garrafas vazias… não era preciso ser gênio para perceber.
Nunca tive a oportunidade de frequentar aquela quebrada durante a noite, no entanto. Sempre que tentei a tronqueira já estava aberta, sinal de que alguém já havia subido.
Desde essa época o mundo nunca cessou de ficar mais perigoso — a tal ponto que hoje eu acredito que ninguém mais tenha coragem de usar uma quebrada. Algumas foram deliberadamente destruídas, como a dos Eucaliptos, na qual transplantaram árvores clonadas, que logo deitaram raiz e acabaram com o espaço. Outras, como a do Beira-Rio, foram cercadas e ganharam “estrutura”: banheiros, mirante e barzinho. Quem fez o investimento deve ter falido, porque as pessoas não iam a tais lugares pensando em beber e admirar a paisagem. Mas o principal motivo para o fim desta tradição mineira aqui na região foi mesmo a violência. Tão louco está o mundo que os pais preferem deixar os filhos transarem em casa, quando não têm dinheiro para o motel, do que em um lugar exposto, onde podem ser abordados por criminosos vis, gente sem amor no coração e sem alegria na vida, que não ouviu o Evangelho da Quebrada e ficam por aí, torpemente, empatando a foda alheia e tornando o mundo inteiro menos belo e menos agradável.