Quando surgiram as redes sociais, no início do milênio, elas pareceram ser a solução para um antigo problema que afetava a vida cultural brasileira: a dispersão pelo imenso território nacional do grande, mas rarefeito, universo dos interessados por formas de arte menos populares. Pareceu, por um breve momento, que esta tecnologia traria a tão sonhada conexão entre produtores e consumidores de conteúdo, facilitando a descoberta de novos talentos e sua entrada no mainstream de uma cultura antes dominada por formas massificadas (televisão e música pop, por exemplo).
Mas esta foi somente uma fase decorrente do estágio embrionário da tecnologia. Quando as empresas mantenedoras de redes sociais aperfeiçoaram seu funcionamento e compreenderam melhor o seu funcionamento e os seus desdobramentos, logo o papel destas deixou de ser positivo, ou mesmo benigno, e passaram a trabalhar contra aquilo que um dia elas pareceram estimular.
Sem que eu percebesse o Facebook destruiu a minha possibilidade de vir a ter uma carreira literária. Claro que ele não fez isso magicamente, mas não foi somente porque eu “deixei” que ele o fizesse: os efeitos do Facebook podem ser agravados quando o usamos inocentemente, mas eles não são de modo algum aleatórios, fazem parte do próprio desenho da aplicação. “Se você não paga por um produto, é você quem está sendo negociado.” (Andrew Lewis).
As redes sociais não foram criadas para nos servirem, mas para se servirem de nós. Em alguns casos, podemos ainda não entender qual é a intenção, mas ela existe ainda assim. A questão é que os porcos que se perguntam por que o chiqueiro é de graça costumam ser ofendidos com insinuações de que são paranoicos ou andam lendo muitas teorias de conspiração.
Acompanhar o surgimento e evolução das redes sociais desde 2005 me ensinou que toda teoria de conspiração que não envolva alienígenas, formato da Terra, moto perpétuo, parapsicologia ou criaturas sobrenaturais é verdadeira. A questão é que nem sempre algo que realmente existe será útil, o que quer dizer que nem toda conspiração é bem-sucedida. Se há boatos sobre algo, e esse boato não envolve o ridículo ou impossível, então temos uma profecia autocumprida: ou o boato surge de algo real, ou algo real se inspira no boato.
As redes sociais foram criadas para se servirem de nós, e cada nova rede social que surge aperfeiçoa os métodos através dos quais somos transformados em ingredientes.
A primeira rede social que usei — o Orkut — era apenas um fórum ampliado. Era possível fazer muita coisa de útil através do Orkut, e inclusive conheço empresas que se lançaram através dali, além de carreiras de atores, roteiristas, escritores, desenhistas etc. Porém, o modelo do Orkut, enquanto útil para os usuários, era inútil para a empresa que o criou como experimento.
Isso porque a utilidade do Orkut decorria do abuso da plataforma. Foram os usuários que deram outra utilidade à comunidades, em vez de meramente organizarem pessoas da mesma vizinhança, empresa, família ou escola. A possibilidade de organizar as pessoas a partir de interesses em comum, ou até mesmo em torno de interesses fictícios (como a famosa comunidade “Eu Nunca Tive um Dinossauro de Estimação”) foi uma sacada dos usuários — embora, possivelmente, não tenha surgido no Orkut (segundo me dizem, havia algo parecido no MySpace, antes). Foram eles, também, que criaram os perfis fakes para serem os proprietários das comunidades, assim evitando que eventual queda do perfil do dono facilitasse o roubo destas. Sem falar dos pseudônimos de fato.
Tudo isso o Facebook copiou e aperfeiçoou, cuidadosamente removendo as brechas através das quais os usuários tornavam o Orkut útil.
Por exemplo, o Facebook usa uma política “rígida” de nomes reais, em vez de perfis criados através de meros endereços de e-mail. Isso impede os pseudônimos e teoricamente “responsabiliza” os usuários pelo que dizem. Na prática, aqueles que postem conteúdo controverso ficam expostos. Mas, ao mesmo tempo, oferece perfis impessoais (“páginas”) que podem ser manipulados por perfis pessoais ou grupos de perfis pessoais, institucionalizando o fake.
O Facebook também não possui uma ferramenta de busca que permita recuperar conteúdo que você tenha visto há minutos. Acione F5 e você já dificilmente encontrará o artigo que lhe interessava, e cuja hiperligação você não salvou. Isso torna tudo muito efêmero. O objetivo, claro, é impedir que as pessoas se mantenham presas a informações “do passado”, mas abertas ao “novo”. Na prática, cria-se um eterno “tempo presente” no qual é possível esquecer informações que não surtiram efeito ontem, repeti-las hoje com variações e assim, sucessivamente, até acertar o tom.
No Orkut, essas postagens repetidas eram fáceis de achar e era possível identificar (e expulsar) esse tipo de manipulador. No Facebook esse tipo de chato é o usuário padrão e desejado. As grandes empresas estão sempre a repercutir anúncios e avaliando como foram recebidos—cada vez os redesenhando com base nos que obtiveram melhores resultados.
Isto é ótimo para as empresas de anúncios, mas é péssimo para o usuário. Porque significa que o Facebook é apenas um lugar aonde vamos assistir anúncios cada vez mais inteligentes. Ele não serve, explicitamente, para nada. Qualquer coisa útil para a qual o estejamos usando será detectada e removida. Há algum tempo, era fácil obter centenas ou até milhares de curtidas (“viralização”) de uma postagem que fosse espirituosa ou interessante. Hoje, não mais. A menos que você pague para ter um alcance maior, o Facebook impedirá que sua postagem seja vista por mais que algumas dezenas de pessoas e receba mais do que trinta curtidas e vinte compartilhamentos. Não sendo mediante pagamento, isso só ocorre em casos realmente excepcionais, que, inclusive, contam com repercussão via Twitter ou múltiplos compartilhamentos acionados pelo criador pedindo a amigos via Messenger que divulguem certo conteúdo. A viralização espontânea não existe mais no Facebook, nem pode existir, porque sempre que um conteúdo se torna relevante sem que isso gere receita para a plataforma o algoritmo da rede entende o fato como uma oportunidade de negócio que se perdeu. Para o Facebook, sucesso que não tenha sido comprado é uma situação semelhante à de um fabricante que promove um produto, mas vê o similar concorrente também passar a vender mais. Comercialmente falando, é preciso desenvolver um meio de que o produto anunciado venda em detrimento da concorrência.
Quando comecei a mexer com redes sociais, era fácil construir uma comunidade de dezenas de milhares de pessoas e engajar milhares. Houve casos de comunidades surgidas espontaneamente que atingiram centenas de milhares de membros. Em um momento simbólico dessa era primordial das redes sociais, a comunidade “Eu Odeio Acordar Cedo” foi vendida por supostos R$ 50 mil. Havia comunidades onde era preciso criar regras restritivas para entrada de novos membros ou para criação de conteúdo.
Cheguei a organizar uma publicação coletiva de uma revista através de uma comunidade do Orkut e vendemos 500 exemplares. Teoricamente, seria possível alavancar carreiras ali, e usar a plataforma para divulgar. Tudo desta edição foi feito através do Orkut: escritores, ilustradores, designers, publicitários, gráfica, distribuidora—todos os serviços relacionados à edição foram “contratados” entre membros da comunidade e remunerados mediante as encomendas feitas pelos membros.
No Facebook algo assim é impossível. O que significa que, a partir do momento em que o Orkut morreu e o Facebook predominou, autores como eu, baseados no interior, voltaram a estar na mesma situação de isolamento em que estavam nos anos 1980.
Não havia nada que eu pudesse fazer quanto a isso, exceto ter muito dinheiro para me mudar para uma cidade grande, contratar os melhores serviços de edição e pagar por publicidade positiva.
Mas nem tudo foi perda: o Facebook me ofereceu a oportunidade sem igual de me envolver em polêmicas irrelevantes e perder tempo vendo vídeos de violência gratuita em vez de escrever. Isso, claro, quando eu não estava ocupado tentando inutilmente denunciar comunidades neonazistas (esses têm dinheiro, compram o Facebook tranquilamente e são inexpugnáveis dali).
Quando digo, portanto, que o Facebook destruiu a possibilidade de eu vir a ter uma carreira literária, não quero me colocar como vítima isolada de uma conspiração, mas passageiro (como você, leitor) de uma imensa mudança de paradigma que a tecnologia está forçando—uma mudança ao fim da qual o livro como o conhecemos já não existirá e a ideia de uma carreira literária talvez não faça mais sentido.