O sofrimento não parece ser algo tão comum quanto realmente é. Uma possível razão disso é que sofrer não é socialmente aceitável, é quase uma falha de caráter ou um tipo de imundície. A etiqueta nacional prescreve que o bom brasileiro deve estar sempre com um sorrisão bonito e uma carinha luminosa, porque somente assim você merece o qualificativo de “simpático”; que é absolutamente necessário em certas condições.
A verdade é que quase ninguém sai pela rua exibindo a sua dor. A norma é que se saia de casa com uma fantasia de felicidade e perfeição, conforme possível. Ninguém vê, porém, o que realmente sentem, por detrás dos olhos, dentro de quatro paredes, quando voltam para casa.
Nestas últimas férias eu passei por uma espécie de iluminação que me permitiu um vislumbre da onipresença da dor. Não creio que algum dia eu consiga esquecer esses dias em que tive tal superpoder. A alegria onipresente deve ser uma grande ilusão.
Tudo começa porque eu estava sofrendo. Quando você compartilha de uma condição com alguém, é mais provável que ambos se reconheçam. Assim como o amante se espelha na amada (e vice-versa), o sofredor reconhece outros sofredores, mesmo que o tipo de sofrimento seja diferente. Mas… esse negócio de “sofrer férias” não é apenas uma ironia?
Em 16 de dezembro, mediante grande insistência de minha mulher, pois não viajávamos de férias há quase cinco anos, reservei quatro dias em um hotel de Cabo Frio, Rio de Janeiro, para ali gozarmos de alguns dias de merecido passeio. Os termos da reserva, para fazer jus ao descontão que eu tive, eram draconianos: 50% pagos previamente e apenas 10% desse valor seria devolvido se eu desistisse. No fim de semana seguinte compramos quase tudo o que era preciso e começamos a esperar pelo dia 7 de janeiro, em que chegaríamos ao hotel.
Em 24 de dezembro, porém, eu tive uma crise renal. Desde outubro de 2015 eu não tinha disso—e antes de então eu tivera mais de quarenta cálculos expelidos, cinco deles através de cirurgias e um primeiro, há muitos anos, por meio de uma nefrolitotripsia externa, procedimentos bastante desagradáveis, todos eles.
Depois de três anos mantendo uma dieta rigorosa eu havia há menos de seis meses começado a cometer irresponsabilidades, como Coca-Cola e hambúrgueres, e eis que eu voltava a ter cólicas. Isso me derrubou psicologicamente, me incapacitou para pensar com clareza. Eu temia fortemente a possibilidade de ter que me operar novamente, tomar anestesia raquidiana, ficar dias com sonda uretral. Tudo horrível.
Depois de cinco dias a cólica passou e em 31 de dezembro eu já me sentia quase bem, imaginei até que tinha expelido o cálculo. Então continuamos os preparativos e àquela altura não era mais possível cancelar a viagem sem perder bastante dinheiro. Em 2 de janeiro, já de férias, tudo piorou de novo e eu comecei a sentir a pedra movimentando-se dentro de mim.
Viajei em crise, mas escondi isso de minha mulher e de minhas filhas, para não estragar as férias delas. Não tomei analgésicos, simplesmente fingi que estava bem e tentei segurar as caretas o melhor que pude. Meu plano era aguentar o quanto pudesse e, no retorno, me internar depressa para os exames e, se fosse preciso, como das cinco vezes anteriores, operar. Passar as férias com a perspectiva de uma cirurgia era uma sensação horrível. De impotência, de fatalidade. Eu sei que algum dia morrerei em uma mesa de operação, porque meu corpo vai aos poucos se exaurindo, parando de funcionar direito. Algum dia, mas eu não quero que seja em breve.
Nem preciso dizer que os quatro dias em Cabo Frio foram quase um pesadelo. Não só pela dor e pela necessidade de escondê-la, mas porque a minha mulher e as minhas filhas, não sabendo o que eu passava, inventavam programas que envolviam caminhar, dirigir longas distâncias, caminhar de novo…
Alternando cólicas brandas e moderadas com momentos (a maioria) em que eu não tinha cólica alguma, mas sentia a pedra “arranhando” por dentro, fui tentando levar como possível, ficando imóvel sempre que me deixavam. Não consegui aproveitar a praia, porque pisar na areia dura à beira-mar me causava pontadas por dentro, depois a urina saía com sangue, com um cheiro forte. Ficar dentro do mar me aliviava, pelo barulho e impacto das ondas, mas ficar fora d’água era horrível porque, como só quem tem cólicas sabe, a única posição realmente confortável é enquanto você está mudando de posição. Tive duas noites sem dormir, mas resisti até o último dia. Dizia que era dor nas costas. Minha mulher desconfiou, mas nada disse.
O fato de eu sentir dor parece ter aberto a minha percepção da dor alheia. Ao olhar no rosto os vendedores ambulantes da praia eu enxerguei, sei lá, um pouco da dor que eles também sentiam. Seus pés queimados de sol e areia, já dessensibilizados de tanto andarem para lá e para cá. Seus rostos besuntados inutilmente com protetor solar, mas ainda marcados. Uma vendedora, negra, tinha tanto creme na cara que ela parecia uma dessas guerreiras massai do Quênia. Outra mantinha os cabelos presos para proteger da maresia, decerto porque não tinha como comprar bons xampus. Um homem de dentes amarelados pelo longo tempo sem escovação. Uma moça com os dentes cheios de cáries. Gente de costas curvadas de carregar fardos em posições desconfortáveis. Um dos caras que me trazia cerveja me causou impressão particular. Era um negro tão queimado de sol que até seus lábios estavam retintos. A sua pele descamava nos braços.
Todas essa gente passava sorridente, gritando pregões engraçados. A julgar por seus rostos e vozes, todos adoravam a praia, eram anjos voando pelo Éden, levando recados de Deus a Adão e Eva. Mas a minha dor manchou a sua alegria aparente, escavou a superfície de seus sorrisos e revelou que eles, quase todos, viam na praia apenas um local de trabalho insalubre. Eles sentiam o corpo arder à noite, mesmo depois de vários banhos frios, inutilmente tentando lavar de si o calor do sol. Eram gente que sabia que sofreria com cânceres de pele na meia idade, com rugas precoces ainda no fim da juventude, com problemas de coluna na maturidade.
Na praça, uma senhora que vendia cachorros-quentes deixou a filha tomando conta do estande enquanto ligava para a companhia elétrica. Estavam sem água potável em casa desde 24 de dezembro e sem energia desde 20 de dezembro. Ela se exasperava com a atendente, dizendo que fazia uma semana que as contas estavam pagas, mas que não acontecia a religação. O marido doente precisava fazer nebulizações. Não tinham água limpa e nem eletricidade. Tivera de levar o marido para a casa da vizinha, onde havia eletricidade, e estavam buscando água de caminhão pipa. A ligação terminou com a promessa da atendente de que a religação ocorreria dentro de vinte e quatro horas, mas que “não podia prometer” porque o volume de religações a fazer era grande.
A mulher desistiu de brigar porque, nesse momento, a filha deixou a barraquinha de cachorros quentes, sentou-se no meio fio e começou a vomitar. A água de caminhão pipa lhe havia, decerto, feito mal. A senhora correu até lá, para contornar a situação. Os fregueses se afastavam enojados, era preciso limpar o calçamento para o mau cheiro não atrapalhar os negócios. Enquanto gastava preciosa água doce na faxina, ela resmungava: “Se eu não vender toda essa salsicha hoje, não tenho geladeira onde guardar, amanhã tudo vai estragar e o prejuízo vai ser grande.” A menina mal se punha de pé, mas não tinha para onde ir: naquele dia ainda era preciso ganhar o dinheiro com que, talvez, comprar água melhor para o dia seguinte e pagar uma consulta médica.
Tudo isso aconteceu a uns oito metros de mim, em uma praça ruidosa. Minha esposa não ouviu nada disso, a não ser um pouco da briga da mulher com a atendente, pelo telefone. Ela achou engraçada a voz esganiçada e as gírias exóticas que a mulher empregava ao reclamar com a companhia elétrica. Normalmente eu não teria ouvido tampouco, mas eu estava com a minha percepção aguçada para a dor alheia. As pessoas que passavam pela praça quase não se deram conta. Vinte minutos depois, enquanto eu terminava o crepe francês que comprara em outra barraquinha, o cheiro de vômito já fora lavado do chão e a mulher, e a filha, já atendiam a próxima leva de fregueses. Com sorrisos de cartão postal e vozes firmes de quem não padece do estômago nem bebe água salobra saída de um carro pipa. Olhei para a garrafa de água mineral que eu comprara por quatro reais e me dei conta do privilégio temporária de que eu desfrutava — e ainda assim os meus rins se recusavam a funcionar direito.
Continuei a reparar os rostos das pessoas nas ruas, mesmo depois que voltei. A maioria, depois que se fecha o sorriso fabricado que os encontros sociais exigem, retorna a cara amarrada, a expressão riscada de quem está se segurando. Mas todos continuam tocando esse teatro tropical tão antigo, que os gringos tanto apreciam.