Vivemos uma época estranha, em que as ferramentas do conhecimento parecem ter se tornado inimigas nossas. São tantas as partes que se insurgem contra a racionalidade que parece cada vez mais improvável que se consiga preservar para o futuro a herança do Iluminismo. Não podemos transigir com isso de maneira alguma, porque se perdermos as ferramentas da razão o debate honesto se tornará impossível e a vitória será de quem conseguir gritar mais alto.
Duas grandes frentes se abriram contra a racionalidade: no campo conservador temos a “nova direita”, que se propõe a reescrever a história e eliminar as influências do racionalismo ateu, e no campo progressista temos os “identitários” pós-modernos, com sua relativização apressada de todas as formas de conhecimento. Duas ideologias opostas, atacando de ângulos diferentes o mesmo inimigo.
Para a “nova direita”, os valores racionais são inaceitáveis porque eles deitam luz sobre aqueles aspectos que os conservadores não querem que sejam conhecidos: privilégios de classe, dívidas históricas, injustiças em geral, sistemas de opressão e exclusão etc. O melhor exemplo disso é a manipulação descarada feita por Olavo de Carvalho, que comprometeu intelectualmente toda uma geração de brasileiros.
Para os “identitários”, os valores racionais são inaceitáveis porque pretendem ser universais. Em essência, o pensamento pós-moderno nos diz que as interpretações dos fatos são tão importantes que podem condicionar a própria noção dos fatos. Um exemplo gritante disso é a tese pela qual é necessário “acreditar nas mulheres” quando denunciam um homem por assédio sexual. Em princípio é uma tese louvável, porque é realmente muito difícil provar a realidade de um fato desses e por ser tão frequente a atribuição de culpa à mulher. Na prática, abre-se a porta para a possibilidade de que uma mulher faça uso de sua palavra para destruir a reputação de um homem ou que o chantageie com a ameaça disso. Toda vez que os defensores de tal tese são confrontados com as possíveis consequências negativas de sua aplicação, saem-se com desculpas ingênuas, que se baseiam, normalmente, na crença de que nenhuma mulher o faria. A história recente nos mostra que muitas mulheres de fato o fizeram, porque o gênero feminino não é composto de seres angélicos e incapazes de fazer o mal.
Ambos os discursos, da “nova direita” e do “identitarismo” pós-moderno, se encontram na identificação da busca do argumento racional como um inimigo a ser vencido. Na prática, ambos os discursos se igualam no obscurantismo porque se baseiam em teses irracionais: assim como os fungos dependem da umidade e das sombras para crescerem, esses discursos dependem da ingenuidade e da ignorância.
Uma crítica frequente que ambos fazem (mas os “identitários” fazem com mais frequência) é que a lógica formal seria “insuficiente” para compreender a realidade. Trata-se de uma crítica venenosa e claramente desonesta. Thomas Huxley, certa vez perguntou: “se um pouco de conhecimento é perigoso, onde está aquele que sabe tanto a ponto de estar seguro?” Dizer que a lógica é insuficiente para compreender a realidade é uma coisa tão óbvia que nem carece dizer. Mas essa crítica tem por objetivo sugerir, marotamente, que a lógica seria inútil para compreender a realidade.
No passado, o conceito de argumentação lógica cabia nos textos mais formais da ciência e da oratória. A ideia de que tais princípios poderiam ser transpostos ao discurso geral é uma proposta revolucionária. Pensar que o povo poderia, e deveria, pensar e argumentar com clareza! Mas, não! Para os obscurantistas, a mera ideia de que um simples cidadão possa diferenciar argumentos verdadeiros de falsos soa como quase “comunismo” ou, pior, “reducionismo”.
Claro que, em determinada fase inicial, a aplicação de tais princípios teria de ser incompleta e imperfeita. Algum prejuízo haveria nesta fase de transição, assim como houve quando da introdução da imprensa (acabou-se a bela arte da iluminura). Para o conservador, nenhuma mudança profunda é aceitável. Para o identitário, a mudança só é aceitável se for em condições ideais. Na prática, os identitários se tornaram um tipo específico de conservadores, dos que não conservam um status quo ultrapassado, mas os projetos falidos de um futuro que não acontecerá como sonhado no início.
Não há nada de errado em ler “manuais de falácias”, não há nada errado em tentar aplicar categorias de lógica argumentativa ao analisar textos corriqueiros e não há nada de errado em acreditar que todos terão algum tipo de benefício se aperfeiçoarem sua capacidade lógica. Errado é haver maus manuais, superficiais demais; errado é acreditar que a mera identificação de uma falácia implica na falsidade dos dados; errado é crer que a lógica deve ser restrita a uma elite.
Devemos proteger a herança cultural do Iluminismo, principalmente pelo seu valor humanista, epistemológico e democrático. Devemos avaliar com muito cuidado ideias e ideologias que tragam de contrabando a sugestão de que existe alguma maneira não racional de abordar a realidade, e que lhe seria superior.
A desvalorização da racionalidade produziu Olavo de Carvalho, o movimento antivacinação, o terraplanismo e diversas outras mazelas de nosso tempo. Se você compactua com essas coisas eu não espero que você se sensibilize com o meu apelo; mas, se você se define como uma pessoa progressista, eu espero que você pare de dar munição para aqueles que querem destruir o progresso.