Há alguns anos, mais precisamente em julho de 2013, deparei-me, algo chocado, com um texto de Stephen Kanitz para a revista Veja intitulado “Por que me odeias se eu nunca te ajudei?” Eu tinha certo respeito pelo autor, a quem eu considerava um raro economista que tinha palavras humanistas, em vez de falar somente em números frios que tinham de ser preservados, mesmo à custa de sangue, suor, lágrimas e ossos. Nesse dia eu pressenti que algo mudara.
Aqueles foram os dias de impacto das infames “Jornadas de Junho”, que pariram o país que hoje temos. Coincidentemente, Kanitz, que até então se manifestava de maneira quase neutra em relação à política, de uma semana para outra, após publicar esse artigo, quase como se obedecesse a um comando de controle remoto, se tornou mais um crítico acerbo do governo. Bastou a sensação de que o governo perdera apoio popular e ele em seguida perdeu o apoio de uma parte significativa da imprensa (Kanitz incluído) como se esses veículos estivesse contidos a contragosto, ansiosos por alguma senha que os autorizasse a ladrar.
Esse choque me impediu, na época, de refletir mais profundamente sobre o artigo de Kanitz, pois eu passei a vê-lo como um “duas caras”, como um aproveitador que surfava a onda de popularidade do governo e que saltou imediatamente para a onda de oposição assim que o vento virou. Não sei se o leitor compartilha do meu sentimento, mas considero esse tipo de gente absolutamente detestável. Por causa de meu nojo da aparente inversão de Kanitz, deixei de considerar que ele tivesse razão.
O tempo, somente ele, foi capaz de me trazer elementos para analisar com frieza a pergunta inquietante que estava no próprio título do artigo. Apesar de ser ateu e marxista, confesso que uma base de valores cristãos ainda existe dentro de mim,1 pendente de desconstrução, e isso me condicionava a entender a pergunta como uma alusão a uma falha de caráter. A ideia de odiar a quem nos ajuda me parece coisa que somente os canalhas fazem.
Infelizmente, talvez porque o PT é um partido nascido de movimentos sociais de uma igreja, é muito prevalente entre os filiados e simpatizantes exatamente esta percepção moralista de base cristã. Por causa disso, tendem a se sentir “traídos” pelo povo que os abandonou na hora mais escura, apesar de todos os progressos e programas trazidos pelas políticas do partido no poder. Em uma primeira análise, e me dói muito dizer isso, a avaliação moralista reflete uma visão condescendente da cidadania, mas o problema é mais profundo que isso: existe aí, também, uma incompreensão filosófica que vai até o osso.
Por mais bela que seja a ideologia da gratidão, que está no cerne do cristianismo e dos valores professados (mas raramente praticados) por nossa cultura, continua sendo uma “ideologia de escravos”, nas palavras de Nietzsche.2 A gratidão é uma corrente invisível que nos prende a pessoas que detestamos por causa de favores que nos foram prestados, muitas vezes sem que pedíssemos. Somos obrigados a ter gratidão para que a sociedade não nos veja como canalhas e, por causa disso, verdadeiros canalhas, dotados de dinheiro, escolhem quem, quando e como ajudam, para construir a rede de favores e gratidões que os protegerá.
O ódio a quem nos ajuda pode ser uma violação da moral cristã, e muitas vezes é uma falha de caráter mesmo, porém deve ser interpretado como um grito de independência daquele que, normalmente, não tem agência nem sobre as prioridades de sua vida. Aquele que gosta de comer feijão, mas recebe uma doação de macarrão. Aquela que queria ter uma motocicleta, mas ganhou uma bicicleta. Aquele que queria ser artista, mas ganhou a oportunidade de ser pescador.
O tempo todo a sociedade nos impõe papeis que não queremos, nos condiciona a seguir caminhos que não são aqueles que desejávamos trilhar, nos dá de presente objetos que não são aqueles que queríamos possuir. Quase sempre esses papeis são escolhidos para nós por quem acredita que está ajudando, esses caminhos são decididos por planejamentos que não nos consultaram, esses objetos são escolhidos por critérios que envolvem somente a conveniência de quem os compra para distribuir. O ódio que nasce da recepção desta ajuda não é uma falha de caráter, é a alergia que o espírito humano tem quando percebe, mesmo que vagamente, a violação de seu livre-arbítrio.
Isso foi poeticamente expresso por Nietzsche, em “Assim Falava Zaratustra”, pondo na boca de seu profeta as seguintes palavras:
Envergonho-me de ter visto sofrer ao que sofre, por causa de sua vergonha; e, quando acudi em seu auxílio, feri-lhe rudemente em seu orgulho.
Grandes favores não tornam ninguém agradecido, antes vingativo; e mesmo o pequeno benefício, não sendo esquecido, torna-se um verme roedor.
[…]
Eu, porém, sou dos que dão: agrada-me dar, como amigo, aos amigos. Colham, todavia, os estranhos e os pobres, por si mesmos, o fruto da minha árvore: é menos humilhante para eles.
As ideologias políticas de direita, que parecem ter entendido Nietzsche muito melhor que a esquerda, apesar de o perverterem para seus fins, se aproveitaram desta constatação filosófica para propor uma ética “pós-cristã” na qual “fazer o bem” deixou de ser uma virtude. Comparem as palavras do filósofo com as de Stephen Kanitz:
Isto inclui pobres e mendigos, que no fundo acabam detestando as pessoas que dão as esmolas, as bolsas família, a saúde e a educação grátis.
Pobre quer oportunidade, para poder pagar pelo que precisa, por mérito próprio.
Pobres querem pagar pelo seu transporte com dinheiro ganho honestamente, e não “redistribuído” dos cofres públicos.
Pobre quer pagar diretamente o seu médico e seu professor, única forma de garantir um atendimento decente e humanizado.
Pobre não quer saúde grátis, educação grátis e aí ter que aceitar um médico qualquer, ou um professor desmotivado já que a cavalo dado não se olha os dentes
É inegável que Kanitz, se não leu Nietzsche, chegou às mesmas conclusões que ele pela leitura de autores que o leram. Estas ideias, conforme definidas por Kanitz, não são essencialmente nietzscheanas, são o discurso “meritocrático” dos “neolibs”, da direita moderna. À parte o fato de que Kanitz não tem como saber exatamente o que os pobres realmente querem (no máximo ele pode expressar o que pessoas de classe média alta, como ele mesmo, acham que os pobres querem), este posicionamento é um exemplar perfeito da ideologia direitista contemporânea.
A direita conseguiu instrumentalizar perfeitamente o mal-estar civilizatório resultante do problema da caridade, transformando a virtude cristã em um vício. Um pouco mais adiante em seu artigo, Kanitz declara, com todas as letras, que as políticas de estado minam a democracia porque criam dependência:
Além do mais, pobre que vive de esmola morre de medo que um dia estes “altruístas no poder” mudem de ideia ou mudem de causa prioritária, e vá deixá-los na miséria novamente. É o mesmo stress de todos nós que tememos perder o emprego.
O que a direita não faz, nem Kanitz o fez em seu artigo, é ler o parágrafo de Nietzsche seguinte aos citados anteriormente:
Dever-se-iam, porém, suprimir totalmente os mendigos. Na verdade, desgosta-se uma pessoa por lhes dar; e desgosta-se por lhes não dar. Assim sucede com os pecadores e com as consciências manchadas! Crede-me, meus amigos: os remorsos impelem a morder.
O que o filósofo diz é que a existência de desigualdades cria desconfortos morais que são resolvidos pelo ódio e pela violência. No jargão de Zaratustra, “mendigo” é todo aquele que vive a pedir o que lhe falta. A desigualdade cria desconfortos porque ela não é natural, é resultante de uma perversão do estado de natureza, criada pela civilização. Suprimir totalmente os mendigos não é uma conclamação ao genocídio dos pobres,3 mas a aspiração por uma sociedade em que ninguém mais se sentisse impelido a pedir ou dar. Os doadores não se sentiriam forçados pela compaixão e os pedintes não seriam constrangidos pela necessidade. Não necessariamente se suprimiria a desigualdade, se suprimiria a vulnerabilidade que quebra o orgulho a tal ponto que alguns aceitam pedir, e quebra a ética a tal ponto que alguns aceitam dar.
O que a direita diz é que a existência da desigualdade é um fato dado, que os mais favorecidos não têm responsabilidade alguma pelos “pedintes”, que a negação da dádiva é uma espécie de novo dever moral nessa religião dos novos tempos e que somente os pobres podem salvar-se a si mesmos (ainda que joguem contra a mesa com um baralho de cartas marcadas).
Mas Kanitz não é tão simplório (os grandes luminares intelectuais da direita não o são, as sandices mais evidentes são perpetradas por seus seguidores e diluidores, a eles lhes basta não insistirem muito em desmentir as versões distorcidas e atenuadas do próprio pensamento). Ele explica a reação através de um traço cultural:
Por isto o PT a longo prazo poderá passar a ser o partido mais odiado de todos. Mesmo se mantendo por muitos mais anos no poder.
No Brasil este sentimento é ainda pior.
Nossa cultura exige, corretamente, que se diga Obrigado, a cada favor e benesse.
Quem recebe uma benesse no Brasil faz questão de dizer que aquilo não é um favor, mas uma simples troca.
Eu não estou recebendo um favor de você mas efetuando uma troca, a obrigação de lhe devolver o mesmo favor no futuro.
Estou, por assim dizer, assinando uma promissória, e quitando já este seu débito com um crédito meu, mesmo que seja pago no futuro.
A troca por uma obrigação futura é muito mais digna para o pobre ou o recebedor do que um simples agradecimento, como se faz nos países anglo-saxões.
A raiz do ódio estaria, segundo Kanitz, na atitude brasileira frente aos favores prestados. Apesar da pátina de cristianismo, o brasileiro teria, segundo o autor, um espírito eminentemente prático, no qual todos os atos geram consequências e obrigações. Diante de um favor, somos obrigados a retribuir; se não podemos, sentimo-nos em falta, pomo-nos à disposição para o futuro. Esse é o verme roedor de que fala Nietzsche: a qualquer momento, agora ou nunca, podemos ser cobrados pelo favor pendente, essa dívida inadimplida que carregamos.
Por isso o povo não saiu às ruas para defender o governo diante dos ataques da oposição: a destruição daquele a quem devemos é uma forma de cancelar as nossas dívidas sem que nós mesmos tenhamos de pagá-las ou de matar-lhes.
Se a passividade dos receptores menos favorecidos das políticas governamentais se explica por esse desejo secreto de “queima da promissória”, a adesão em massa da classe média reflete o “desejo de morder” a que Nietzsche aludiu. Diferente das classes populares, que apenas intuem seus desejos e os sublimam de maneira muitas vezes caótica, a classe média sabe muito bem o que quer e costuma expressá-lo de maneira muito enfática e materialista.
As classes médias em geral não estão acostumadas ou não se sentem confortáveis com a ideia de abrir mão dos anéis para salvar os dedos. A ascensão social cria uma falsa sensação de segurança, aliada a um desejo profundo de agência: aquele que se desconecta da realidade de miséria imediata quer fazer os seus próprios planos e orgulhar-se de suas conquistas — não quer, de maneira nenhuma, que lhe digam o que fazer, ou quando fazer. Assim, quando uma política pública de benefício geral impacta um plano seu em particular, esse indivíduo de classe média se sente prejudicado, mesmo que de outras maneiras esteja beneficiado pelas mesmas políticas, porque a sua necessidade de planejar a própria vida encontrou um obstáculo.
Se o “verme roedor” na consciência do pobre é a sensação de que é devedor de favores que nunca poderá retribuir, na consciência do indivíduo de classe média o incômodo surge de sua aguda percepção de que ainda não conquistou a liberdade que é considerada o distintivo final do sucesso.
Ser livre não é meramente ter comida na mesa, casa própria e carro novo. Estas coisas o indivíduo de classe média sempre enxergará como conquistas suas e qualquer argumentação política que parta de uma racionalização destas conquistas como resultantes de fatores conjunturais que o beneficiaram cairá em ouvidos moucos. O indivíduo de classe média, devido à ideologia predominante em nossa cultura, não quer ouvir nada que lhe diga que ele não é o conquistador daquilo que possui porque esta sensação (mesmo que seja mentirosa) é a própria definição de classe média e da ascensão social que permite a alguém diferenciar-se do pobre. Qualquer debate político que se deseje vencer precisa começar, portanto, concedendo esse ponto à classe média, não porque é verdade, mas porque remover essa muleta ideológica resultaria em mostrar ao indivíduo de classe média que a sua liberdade é uma ilusão resultante de fatores conjunturais que podem ser temporários. É mais fácil que um indivíduo abra mão de sua própria vida do que de seus valores. É mais fácil que um indivíduo cometa atos que destruirão o seu patrimônio do que admitir que o seu patrimônio não é realmente fruto exclusivo de seus atos.
O ódio, no caso da classe média, é a cortina de fumaça que protege as ilusões daqueles que aspiram a ser como os ricos, mas ainda estão perto demais dos pobres para que se sintam psicologicamente seguros.
Como seria possível escapar dessa armadilha ideológica, adotando políticas públicas progressistas sem causar a reação alérgica descrita por Nietzsche e Kanitz, de formas diferentes em momentos diferentes?
Não adianta culpar a canalhice do povo, não adianta xingar a classe média de ingrata. Rótulos podem até identificar, mas nada resolvem. Estar escrito veneno em um frasco não altera o resultado se você ainda assim resolver beber o conteúdo. Rótulos podem ser importantes, mas o que define mudanças são as atitudes que tomamos diante da realidade que eles descrevem. Por fim, rótulos podem ser enganadores porque eles refletem interpretações moralizantes da realidade. A realidade não é inerentemente moral, somos nós que criamos interpretações moralizantes da realidade, para serviço de nossas ideologias.4
Tampouco adianta afirmar que a etimologia do nosso “muito obrigado” é a causadora desse sentimento de inadimplência do recebedor em relação ao doador. Em espanhol se diz gracias (“agradecimentos”) assim como em inglês se diz thank you (“agradeço-lhe”) e não me consta que a realidade cultural dos países de língua hispânica seja muito diferente da nossa. Uma falácia frequente do pensamento direitista é atribuir agência a seres inanimados, a entidades abstratas, como fez Kanitz, ao culpar o “muito obrigado” — e como fazem os esquerdistas, com desagradável frequência, quando culpam “o capitalismo”, “o sistema” e outros conceitos que não são seres.
O que adianta é explicar às pessoas que os favores não geram dívidas porque são pagos de outras formas. Isso é conscientização política. Algo que se faz através da educação, esse alho que irrita a toda classe política brasileira, desde sempre.
Talvez não haja povo do mundo tão orgulhoso da própria ignorância quanto o brasileiro. Em nenhum lugar do mundo a ignorância parece ser tão trágica quanto entre nós. Por causa da prevalência desta, o povo anda de cabeça baixa, não consegue pensar em termos de longo prazo e, portanto, não concebe outra forma de pagar a “dívida” do serviço senão com serviços imediatos. Assim se faz a venda do voto, assim se constroem as claques que repercutem as vozes dos políticos.
Quando fazemos algo por alguém a quem respeitamos, devemos sempre fazer questão de cancelar a dívida no próprio ato. De alguma maneira devemos deixar claro que não se trata de uma boa ação moralista, mas de um ato pensado pelas suas consequências próprias. Quando um pai dá dinheiro ao filho para pagar seus estudos, não o faz pensando que o filho um dia o amparará na velhice; ele o faz porque lhe compraz ver o sucesso do filho, porque é da natureza da paternidade experimentar o prazer da felicidade dos próprios filhos.
Algo semelhante poderia ter sido feito pelos governos que adotaram políticas assistencialistas. Poderiam ter dito que o faziam porque assim engrandeciam o Brasil. Talvez tenham tentado dizer, mas essa verdade não chegou aos rincões, não se internalizou no imaginário coletivo nacional. O ódio que explodiu nas ruas em 2013 nasceu da falta desta noção de que a dívida era impessoal (para com o Brasil) em vez de vinculada a um partido ou político em particular. Talvez por ainda estar muito vinculado às suas origens católicas, o PT não conseguiu passar além da virtude moral da caridade e atingir o ideal de supressão total dos mendigos. Não pela eliminação da miséria, mas pela eliminação da relação nociva entre quem dá e recebe “caridade”.
1 Conforme eu mesmo já sentenciei, é mais fácil tirar um homem de dentro da igreja do que tirar a igreja de dentro de um homem.
2 A fonte da conceituação do cristianismo como uma religião de escravos está em “Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro”.
3 Esta é uma perversão muito frequente das palavras do filósofo alemão. Em seu “Julgamento de Nietzsche no Orkut”, Alexandre Anello analisa, entre muitas outras, a acusação de que Nietzsche seria, por causa desta frase, um higienista social.
4 Aqui recorro mais uma vez ao livro “Além do Bem e do Mal”, mais especificamente a um dos “Aforismos e Interlúdios” do autor.