Origens do Anarco-Capitalismo

Introdução

O Anarco-Capitalismo é uma ideologia relativamente recente, mas não apareceu magicamente, sem antecedentes históricos. Geograficamente, esta doutrina surgiu nos Estados Unidos. Ideologicamente, se baseia em três correntes de pensamento que eram prevalentes naquele país durante a década de 1990: Objetivismo, a filosofia de Ayn Rand; Neoliberalismo radical, a escola austríaca, e Fundamentalismo religioso e sobrevivencialismo.

Objetivismo

Ayn Rand foi uma escritora americana nascida na Rússia e de ascendência judia. Não vou discutir a biografia dela, mas a sua filosofia, que ela chamou de “objetivismo” para se contrapor ao “relativismo”.

O objetivismo é um sistema ideológico fechado, que não admite mudança de seus postulados. Segundo Rand e seus herdeiros ideológicos, a realidade existe à parte da consciência da realidade, o conhecimento somente pode ser obtido através da percepção e da lógica indutiva, o capitalismo é o único sistema econômico que está de acordo com a moralidade natural e a função da arte é tangibilizar as ideias metafísicas para que estas possam ser experimentadas e compreendidas.

Essas afirmações, ao serem transformadas em postulados de todo o sistema, impedem que o objetivismo reflita sobre seu valor-verdade, ou seja, elas se transformam em dogmas. Você não pode, no contexto do objetivismo, discutir o método científico, questionar as leis de mercado (laissez-faire) ou dar a arte um papel que não seja subalterno ao objetivismo em si mesmo.

Não espanta, então, que o objetivismo tenha sido rejeitado por todos os filósofos acadêmicos do mundo. Se a finalidade última da filosofia é justamente a de questionar os valores e os conceitos, uma filosofia que se baseie no fim do questionamento de certos valores e de certos conceitos é uma “antifilosofia”.

Outro aspecto interessante aqui é que Rand fazia uma ligação muito extrema entre o capitalismo de mercado e o egoísmo. Partindo de conceitos básicos de liberdade econômica, buscados em economistas clássicos como Adam Smith e David Ricardo, além dos fisiocratas franceses de séculos anteriores; Rand adicionava a filosofia de Nietzsche e o darwinismo social para argumentar que a “mão invisível” do mercado regularia o egoísmo dos indivíduos de maneira a obter o resultado ótimo para a sociedade. Disso derivou a ideia de que o egoísmo é uma virtude.

A relação dela com Nietzsche é complicada, porque não se pode afirmar, com certeza, que o alemão defendia o egoísmo em si. Porém, essa discussão foge do foco desta resposta, já que qualquer conceito de Nietzsche presente no anarco-capitalismo somente provem dele indiretamente, podemos nos limitar a discutir Rand.

Quanto ao darwinismo social, este é a ideia de que a sociedade humana estaria sujeita às mesmas leis que a vida em estado de natureza e que, portanto, a sobrevivência dos mais fortes e o perecimento dos mais fracos seriam fatores esperados de uma sociedade funcional.

Peço ao leitor que preste bastante atenção a este conceito em especial, porque a ética de sobrevivência do mais forte (ou do mais apto) é um dos pilares mais significativos do anarco-capitalismo.

Escola Austríaca e Neoliberalismo

A “Escola Austríaca” de Economia é uma interpretação radical, e de certa maneira fundamentalista, do liberalismo econômico. De certa maneira, representa a transição entre o pensamento econômico liberal clássico e o chamado “neoliberalismo”.

Foi fundada em Viena, Áustria, no início do século XX, pelos economistas Carl Menger, Ludwig von Mises e Eugen von Böhm-Bawerk. Teve entre seus membros mais prominentes Friederich von Hayek e foi transplantada para os Estados Unidos, no final do período entre-guerras, quando Mises se refugiou da ocupação da Áustria pelos nazistas. Desde então, o pensamento de Mises e de Hayek, que lecionava na Grã-Bretanha, passou a predominar.

Entre o final do século XIX e meados do século XX a Escola Austríaca era considerada parte do “mainstream” da ciência econômica. Desde então, com o surgimento do neoliberalismo, que procurou reincorporar à ciência econômica elementos matemáticos que haviam sido descartados por Mises, ela foi marginalizada e alguns de seus membros transitaram para o neoliberalismo, como Friederich Hayek e Milton Friedman.

Isso não significou o seu desaparecimento, porém. Mises e seus alunos, como Murray Rothbard e Lew Rockwell, criaram entidades, como o Instituto Mises e a Sociedade de Mont Pélerin, que divulgavam o pensamento “austríaco” e mantiveram vivas as ideias da escola em uma época em que o mundo acadêmico lhe deu as costas. Na verdade, as ideias austríacas nunca desapareceram porque Hayek e Friedman, mesmo transitando pelo neoliberalismo, que era “mainstream”, nunca deixaram de citar conceitos da escola. A partir dos anos setenta, princípios “austríacos” orientaram a política econômica de Augusto Pinochet (Chile), Margaret Thatcher (Grã-Bretanha), Ronald Reagan (EUA) e outros.

O fim do bloco soviético permitiu que os neoliberais (e os “austríacos”, a reboque deles) tivessem um sentimento de triunfo, que se expressou na difusão do conceito de “fim da história”, de Francis Fukuyama, e no “Consenso de Washington”, uma série de dez propostas de política econômica que expressariam a vitória do sistema capitalista e o único caminho possível para a evolução das sociedades.

Finalmente, com o advento da internet, a escola “austríaca”, que não era estudada formalmente no meio acadêmico e cuja influência no mundo real era indireta (através do neoliberalismo, que dela dependia somente de maneira parcial), passou a ter um veículo de difusão perfeito. Notadamente a partir dos anos 2000, o Instituto Mises passou a dar cursos de “Economia Austríaca” online a quem quer que se interessasse (em geral de maneira gratuita ou mediante pagamento módico). Isso permitiu que as ideias austríacas ganhassem popularidade fora do meio acadêmico. Isso ocorreu mais a partir de 2008, quando a crise global do capitalismo gerou grande ceticismo sobre a validade dos conceitos da economia “mainstream”.

Escola Austríaca e Objetivismo

De muitas maneiras a Escola Austríaca se relaciona com o Objetivismo de Ayn Rand. Essas transversalidades estão principalmente no seu caráter dogmático. Pode-se dizer que as duas ideologias se completam e se apoiam mutuamente.

Por exemplo, o objetivismo afirma que o capitalismo de livre mercado (“laissez-faire”) é a única forma de economia possível, por ser a única de acordo com a natureza humana. Enquanto isso, a Escola Austríaca nos diz que somente em um ambiente de liberdade econômica total pode existir completa liberdade individual. Mais que isso, Mises afirmou que qualquer restrição econômica, de qualquer tipo, inicia um processo de restrição gradual das liberdades individuais. Pode-se dizer que a afirmação de Mises é o corolário da afirmação de Rand.

Outro exemplo, Rand afirmava que a realidade existe à parte dos indivíduos e suas percepções. Disso podemos derivar que toda interpretação da realidade é incompleta em relação à realidade mesma, o que evoca o platonismo (especificamente a Teoria das Ideias e das Formas). Mises afirmou que os fenômenos econômicos derivam de escolhas subjetivas dos indivíduos (Praxeologia). Isto quer dizer que essas escolhas, por serem subjetivas (portanto incompletas e imperfeitas) não podem originar sistemas preditivos eficientes.

Sendo assim, a economia não é uma ciência exata, ou mesmo uma ciência falseável, porque os seus postulados não podem ser usados para antecipar o futuro, nem mesmo de maneira limitada. Isso tem certa relação com a preferência do objetivismo pela lógica indutiva em vez de dedutiva. A ciência econômica não deduz regras, mas nos induz a questionamentos.

À parte os preceitos metodológicos, Rand e Mises compartilhavam de uma aversão profunda ao comunismo, que os levou, por caminhos diferentes a endossar o fascismo e o nazismo. Rand, ao abraçar o darwinismo social e o eugenismo, que foram fundamentos filosóficos do nazismo. Mises, ao colaborar ativamente com o regime de Dolfuss, na Áustria, e ao descrever o fascismo em termos bastante agradáveis.

Esse anticomunismo ferrenho nos ajuda a explicar o favor que ambos tiveram nos Estados Unidos do pós-guerra, quando havia uma grande histeria anticomunista e as ideias de esquerda eram suprimidas pelo macarthismo. Fácil entender como as ideias de extrema-direita nadavam de braçada diante do silenciamento de seus questionadores pela ação do braço forte do estado. Foi assim que a Escola Austríaca e o objetivismo, protegidos da controvérsia, puderam gozar de uma “influência” imposta pela política, mesmo quando, academicamente, se tornaram insustentáveis.

Sobrevivencialismo

Nos Estados Unidos sempre existiram grupos que, por razões religiosas ideológicas, buscavam afastar-se da sociedade e construir seus próprios movimentos. Isso é mais antigo que o próprio país e teve precursores significativos, como os Menonitas e os Amish, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (“Mórmons”), a Igreja Adventista do Sétimo Dia (“Milleritas”), a Sociedade Torre de Vigia (“Testemunhas de Jeová”) e os movimentos de milícias e os sobrevivencialistas.

Esses dois últimos merecem uma menção à parte, por serem menos conhecidos no Brasil e por serem os que nos interessam. Movimento de milícias é um termo genérico para grupos que se organizam, geralmente em áreas rurais, e formam células paramilitares armadas, com o intuito de resistir à “imposição de força” pelo governo federal, a que consideram ilegítimo por certo motivo. Os milicianos se inspiram na Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que menciona que o governo não se oporia a uma “milícia local bem organizada”. Esses termos, claro, se referem ao contexto dos Estados Unidos por volta da época da independência, em que o governo central não tinha forças armadas regulares e dependia de forças paramilitares formadas nas Treze Colônias. Essa ideologia permaneceu forte no país, apesar das mudanças políticas e econômicas que ocorreram depois de 1776, mas atingiram o seu auge nos anos 1973-2003, quando passou a haver no país uma grande disponibilidade de veteranos de guerra insatisfeitos com o governo central.

No contexto da Guerra Fria surgiu outro movimento paralelo ao das milícias e que com ele se relacionava biunivocamente: o sobrevivencialismo. Diante da ameaça da aniquilação da humanidade em uma guerra nuclear, houve até certo ponto o estímulo governamental à “preparação” dos cidadãos para o “fim do mundo como o conhecemos”. Já nos anos cinquenta começou a construção de abrigos antinucleares em diversas regiões dos Estados Unidos. O telefilme “O Dia Seguinte”, de 1983, fez com que o nível de preocupação aumentasse e surgiram discussões na imprensa sobre a “preparação”. Os adeptos passaram a estocar alimentos, armas, água potável e munição em abrigos subterrâneos dotados de isolamento térmico e proteção contra radiação. O nível de alerta dos sobrevivencialistas aumentou depois que o Furacão Katrina, em 2004, mostrou certo despreparo do governo e da sociedade civil para enfrentar as consequências de uma catástrofe de grandes proporções.

Nos anos 1990, nos primórdios da internet, os sobrevivencialistas encontraram nos fóruns eletrônicos, os BBS, o meio ideal para trocar ideias e sugestões. Uma parte significativa dessa troca está arquivada no site Textfiles.org, sob o diretório “survival”.

Os survivalistas; ou “preppers”, como eles preferem se chamar; colecionam todo tipo de informação que possa ser útil. Eles têm suas revistas, seus websites e suas próprias teorias de conspiração, sobre as quais não vale a pena a gente se deter aqui. Buscai e achareis.

O que nos interessa a respeito do sobrevivencialismo são seis aspectos dessa subcultura:

  1. Seu interesse por ouro e prata, e, por conseguinte, por uma teoria econômica que baseia o “valor real” do dinheiro em metais;
  2. A importância que dão à posse de armas “para defesa” no caso de um cataclismo, e, por conseguinte, seu alinhamento com todos que defendam a desregulamentação da posse de armas;
  3. A tendência que esses movimentos têm no sentido de organizar células locais (que se assemelham de muitas maneiras ao que os anarquistas preconizavam como modelo de sociedade);
  4. Sua aversão ao governo;
  5. Sua relação com o conservadorismo religioso;
  6. Sua reivindicação de defesa de valores americanos tradicionais além da religião cristã.

O fascínio dos “preppers” por ouro e prata trazem-nos para perto de quem pregue contra a “moeda fiduciária” e faz com que eles, organicamente, passem a difundir conteúdo produzido pela Escola Austríaca de economia.

Sua defesa do porte de armas (esses movimentos são muito apoiados pela NRA porque são grandes consumidores de armamento e munição) faz com que se oponham a políticas governamentais restritivas do porte de armas e, paradoxalmente, trazem esses movimentos para perto de organizações clandestinas extremistas, como a Ku Klux Klan.

A organização autônoma a nível local lembra, mais uma vez, a maneira como a KKK se organizou no Sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil, para resistir ao governo central e às políticas de integração. Muitos desses grupos, embora obtenham e estoquem comida industrializada e armas, têm um aspecto ludita, ao pregarem contra a sociedade de consumo “degenerada”. Isto está de acordo com as seitas paraprotestantes americanas, várias delas de cunho teocrático ou segregacionista, mas, também, paradoxalmente, de acordo com os valores do Unabomber, cujo Manifesto está eivado de linguajar “prepper” — e ele mesmo era um deles.

A aversão ao governo, praticamente derivada dos dois itens anteriores, se explica pelo desejo autoritário desses grupos, especialmente os mais religiosos. Para os “preppers”, o governo americano suprime as suas liberdades individuais, especialmente a de religião. Eles citam com frequência a invasão do rancho da seita Ramo Davidiano como um exemplo de violação da liberdade local pelo governo central e o usam como exemplo da necessidade de se organizarem como uma milícia local para “resistir” a essa interferência.

A reivindicação de valores tradicionais e sua relação com movimentos religiosos faz com que os “preppers”, embora frequentemente bebam na fonte do anarquismo, evitem os aspectos revolucionários da ideologia. Ao se afastarem do socialismo, mantendo do anarquismo somente uma parte relativa ao método, os “preppers” chegam muito perto do que seriam os “ancaps”.

A Estratégia da Cunha.

No final dos anos 1990 um jovem americano recebeu de seu empregador, em Seattle, um documento intitulado “The Wedge”, produzido pelo autointitulado “Centro de Renovação da Ciência e da Cultura” do “Discovery Institute”, uma organização não-governamental americana vinculada a igrejas protestantes tradicionais. Percebendo a importância do documento e seu conteúdo, o jovem escaneou o documento e o publicou na internet.

Nesse documento o Discovery Institute estabelece uma estratégia para alterar a cultura americana no sentido dos valores conservadores das igrejas evangélicas fundamentalistas. A cunha (“wedge”) a que se refere o título é uma metáfora que evoca a maneira como uma peça de metal inserida em uma tora de madeira acaba por arrebentá-la ao meio.

Existem inúmeras semelhanças entre as abordagens preconizadas pelo Discovery Institute e as que foram adotadas depois por diversos think-tanks americanos, entre os quais o “Students for Liberty” (mentor das revoluções coloridas, de que ainda falaremos, e, no Brasil, do MBL), o Instituto Mises (mentor, no Brasil, do Instituto Liberal) e também Olavo de Carvalho, que me parece ser um peão dos think-tanks americanos com seu Curso Oline de Fiofolosofia, apesar de se dizer “católico” (assim como eu me digo sindarin).

Entre os objetivos expressos pela estratégia da cunha, dois são os principais: a) derrotar o materialismo científico e seu destrutivo legado moral, cultural e político e b) substituir as explicações materialistas pelo entendimento teísta da natureza e do ser humano como criaturas de Deus.

Para alcançar estes objetivos, a estratégia da cunha atua em três frentes: a) Pesquisa, escrita e publicação de artigos científicos; b) Publicidade e influência da opinião pública; c) Confronto cultural e renovação.

Sabendo que seria impossível obter apoio junto à comunidade científica (afinal, a estratégia da cunha deliberadamente procura destruir a ciência), busca-se construir, em vez disso, uma base de apoio popular, para negar público aos divulgadores de ciências e emprestar peso ao debate sobre a pseudociência:

Alongside a focus on the influential opinion-makers, we also seek to build up a popular base of support among our natural constituency, namely, Christians. We will do this primarily through apologetic seminars. We intend these to encourage and equip believers with new scientific evidences that support the faith, as well as to popularize our ideas in the broader culture.

Traduzido:

Ao lado de um foco sobre influenciadores da opinião pública, também buscamos construir uma base popular de apoio entre os nossos seguidores naturais, ou seja, os cristãos. Nós o faremos principalmente por meio de seminários apologéticos. Pretendemos através destes encorajar e equipar os crentes com novas evidências científicas que apoiem sua fé, além de popularizar nossas ideias na cultura em geral.

Isto é, basicamente, o que vêm fazendo todos os movimentos conservadores que se tornaram predominantes nos últimos anos e guarda muitas semelhanças com o Plano de Poder, de Edir Macedo. A estratégia da cunha pode ter sido desenvolvida pelos evangélicos, mas não são os únicos que a usam.

O Novo Século Americano

A ONG “Projeto para o Novo Século Americano” foi fundada em 1997 e teve entre seus membros George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e Francis Fukuyama (lembra dele?). Muitos dos membros desta ONG tinham cooperado nos mandatos de Reagan e George Bush (1980-1992) e vários (como os citados) colaboraram nos mandatos de George W. Bush (2000-2008). De entremeio temos Fukuyama, ideólogo do Consenso de Washington e sabidamente pago pela Fundação Ford (a mesma, aliás, que custeou o exílio de Fernando Henrique Cardoso, no tempo do regime militar).

A presença dessa gente no quadro de signatários ou colaboradores significa que esse não era meramente um grupo de estudos acadêmicos, como, na época, se tentou dizer. Ela basicamente delineou a política interna e externa dos EUA no novo milênio. Entre as medidas sugeridas pelo PNAC estavam:

  1. Mudança de regime no Iraque para obter um território no coração do Oriente Médio e para impor medo aos outros países, a fim de que passassem a colaborar com EUA;
  2. Reconstruir as defesas americanas, a fim de dar aos EUA uma hegemonia militar incontestável no mundo (mesmo que isso significasse violar os tratados com a Rússia);
  3. Substituir a diplomacia pela intimidação;

Diante da controvérsia gerada pelo PNAC, ele foi encerrado em 2006, mas os mesmos fundadores, William Kristol e Robert Kagan, fundaram, no ano de 2009, o “Foreign Policy Initiative”, que existiu até 2017. Esse, por sua vez, passou a focar no enfrentamento da China e da Rússia, definidas como as ameaças potenciais aos interesses americanos. Entre as medidas defendias pelo FPI, o apoio a “mudança de regime” em países selecionados, para enfraquecer a “esfera de influência” da China e da Rússia, a ocupação definitiva do Iraque e do Afeganistão, o bombardeio da Síria, uma futura guerra com o Irã.

Estamos citando o PNAC e o FPI aqui porque eles me parecem muito ligados às revoluções coloridas, em geral, e às estratégias de desestabilização de países que os EUA consideram aliados naturais ou potenciais de Rússia e China. Nesse sentido, o Brasil pode ter entrado no radar dos EUA ao aderir à iniciativa BRICS, gravitando para a zona de influência russo-chinesa.

Revoluções Coloridas

O termo “revolução colorida” foi cunhado em referência aos movimentos político-sociais ocorridos sequencialmente no início dos anos 2000 em países como Sérvia, Geórgia e Ucrânia. Também ocorreram fenômenos parecidos no Irã, no Líbano, na Bielorrússia, no Quirguistão, na Rússia (Pussy Riot e Oborona), no Egito, na Líbia, na Turquia, na China (Hong Kong) e, como já é bastante aceito, no Brasil. O único caso controverso, mas que eu não me recuso a citar também, é o da Tunísia.

Esses movimentos se inspiraram na luta dos negros americanos pelos direitos civis (sob Martin Luther King), na vida de Gandhi (que tinha sido inspiração para King), nos fatos que levaram à queda do Bloco Soviético e, principalmente, nos protestos da Praça da Paz Celestial, na China. Também se inspiraram muito no movimento estudantil brasileiro que derrubou Fernando Collor de Melo (os “carapintadas”).

Quando digo que se inspiraram não quero dizer que esses movimentos inspiradores foram manipulados. Só quero dizer que eles foram estudados por quem desenvolveu a estratégia da revolução colorida como arma de guerra híbrida.

Por fim, cabe dizer que nem toda “revolução colorida” se caracteriza por ter uma “cor” no nome. Isso ocorreu somente na Ucrânia (“Revolução Laranja”), na Geórgia (“Revolução Laranja”) e no Irã, onde fracassou (“Revolução Verde”). Então, o nome “revolução colorida” é uma metonímia, por considerar que as características existentes nessas revoluções, que realmente levavam os nomes de cores, e em suas antecessoras se repetem em revoluções posteriores, mesmo não tendo nomes assim.

As características das revoluções coloridas:

  • Base em movimentos estudantis ou de juventude;
  • Uso de táticas não violentas e protestos de massas para provocar a reação das forças de segurança a fim de criar-se comoção;
  • Ideologia de “renovação” política e social, com a criação de “novas” lideranças políticas em vez de se apropriarem de lideranças existentes;
  • Ampla utilização de redes e mídias sociais para difusão de conteúdo (principalmente de fotos e filmagens da repressão) e para a organização dos protestos e ações;
  • Rápida transição para a reivindicação de reformas econômicas em vez de sociais e políticas;
  • Ausência de caráter nacionalista: os movimentos buscam adesão à política externa americana ou à União Europeia;
  • Aceitação de pautas religiosas ou tradicionalistas (“liberal na economia e conservador nos costumes”, por exemplo).

Embora não haja espaço para isto nesta resposta, há meios de se fazer uma correspondência clara entre a primeira revolução colorida, a da Sérvia, e todas as seguintes. Existem, inclusive, indícios de que lideranças dos primeiros protestos atuaram abertamente nos seguintes, embora com o tempo a tática tenha se aperfeiçoado e já não se dê tanta bandeira.

Quanto ao uso de redes sociais, não é segredo para ninguém que através delas os EUA conseguiram impor sua agenda e seus valores, enfraquecendo a imprensa regional em todos os lugares do mundo e criando um canal imediato entre os usuários e o que quer que esteja a ocorrer na América do Norte. O que é mais recente é o uso que Facebook e Twitter costumam fazer de suas prerrogativas, assumindo um lado em conflitos políticos. Nos recentes protestos em Hong Kong, por exemplo, o Twitter bloqueou ou excluir centenas de contas de chineses favoráveis a Pequim, alegando que essas contas eram “manipuladas” pelo governo chinês. Nem falemos sobre a maneira estranha como o Facebook gerencia conteúdos de esquerda e direita, ou a influência que teve sobre as eleições — não só no Brasil.

Quando a expressão política se faz através de um serviço criado, mantido e pago por uma empresa privada, as conveniências de negócios se sobrepõem às obrigações de cidadania — ainda mais porque essas empresas forçam, através de seus acordos de licença ao usuário final, que os contratos sejam regidos pelas leis dos Estados Unidos, nas quais empresas têm o direito à “liberdade de expressão” e podem, inclusive, escolher abertamente um lado no debate político. A ideia de que a internet é neutra é um conceito ingênuo, até idiota.

Nerds, Gamers e Incels

Os desajustados sociais sempre foram um grupo de recrutamento fácil. Os fascistas e nazistas já haviam recrutado amplamente entre os desempregados, os humilhados, os frustrados e os que se julgavam passados para trás pelos judeus e pelos estrangeiros. Nem falemos, também, da facilidade com que os fundamentalistas islâmicos recrutam homens-bomba entre os jovens desesperados em lugares como Líbano, Palestina, Iraque, Síria, Chechênia e Afeganistão. Portanto, não é novidade alguma que grupos sancionados pelo escárnio da sociedade fossem fornecer tantos soldados.

Nerds e gamers têm em comum a sua relação com “cyberculturas” — isto é, “tribos” de jovens que interagem pela internet e através dela criam e replicam os seus valores fundamentais. A cultura cibernética iniciou sua evolução ainda nos anos noventa, mas alcançou a maturidade nos primeiros anos do milênio, no tempo dos programas de compartilhamento peer-to-peer. Isso chegou a tal ponto que hoje há pais que não têm a menor ideia do que os seus filhos fazem na internet, como no caso de Robert e Trude Steen, que só descobriram que seu filho inválido era um lendário jogador de World of Warcraft depois que ele morreu e dezenas de jogadores de toda a Europa vieram ao seu funeral, para espanto da família (e para arrependimento de seus pais, que sempre haviam tentado limitar seu acesso ao jogo).

É muito bom quando isso se manifesta de maneira benigna, como no caso de Mats Steen, mas nós sabemos já que existem subculturas na internet que espalham o ódio, como os Incels, sobre quem Lola Aronovich pode falar com mais propriedade do que eu (vide link no final).

Esses jovens que cresceram “digitalmente”, e que devem tanto de seu conhecimento e de sua interação social à grande rede, têm uma tendência a privilegiar o conhecimento adquirido através dela. Sua inaptidão no convívio social significa que dificilmente terão contato com professores e outros colegas com quem poderiam discutir os conteúdos ali encontrados. Sem tal discussão, esses jovens ficam expostos sem contraditório. Consomem esse conteúdo de maneira unilateral (ainda que pretensamente “interativa”) e gradualmente se prendem a uma “bolha” intelectual, na qual os conteúdos oferecidos encontram confirmação pronta e à qual ninguém em posição de poder ou de ascendência intelectual (pais, professores, colegas mais capazes) tem acesso para questionar.

Esses são os jovens que consumiram o documentário Zeitgeist, que fizeram parte do “movimento ateu” brasileiro, que fizeram os cursos de economia da “Escola Austríaca”, que estiveram em contato com os “preppers”, que leram Ayn Rand e se identificaram com a sua glorificação da excepcionalidade (visto que eles próprios se julgam excepcionais). São os jovens que encontraram em Olavo de Carvalho um intelectual à margem do sistema e que viram em gente como Kim Kataguiri — a metáfora dos Power Rangers e a glorificação da ignorância — uma influência óbvia. Essa lavagem venenosa que beberam, de maneira acrítica e sem método, os transformou em seguidores dessa estranha seita, o anarco-capitalismo.

Conclusões

O anarco-capitalismo, como vimos, apesar de parecer recente, tem muita ideia trazida do passado. Podemos resumi-lo como uma mistura de sobrevivencialismo com Economia Austríaca, sentimento de excepcionalidade pessoal e moral seletiva, tudo semeado e regado no ambiente digital, sob a tutela da CIA, que é quem verdadeiramente dá as cartas nas redes sociais.

Através do anarco-capitalismo são iniciados movimentos de desestabilização social em países selecionados como alvos pela CIA, no cumprimento de metas de longo prazo do governo americano. Não é, porém, a única ferramenta usada para isso. Todas as redes sociais o são, como, por exemplo, o Quora.

Referências

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