Olavo de Carvalho e os Brasileiros Inteligentes

Eu amo esta frase do Paulo Freire e a uso sempre que posso: “se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor”. Isso, claro, explica as pessoas de classe média baixa que se deslumbram com o mínimo de ascensão social que obtêm, mas o que acontece àqueles que já são nascidos na elite? O que seria, para eles, uma “educação libertadora”? Como se aplicaria essa frase no caso deles? Venham comigo!


O meme do “opressor”, que esteve muito em voga no Brasil há alguns anos, parece ter contribuído para atenuar bastante o sentido da palavra entre nós, anulando a denúncia originalmente contida na acusação de ser “opressor”, bem como o efeito de se dizer “oprimido”. Repentinamente, a palavra deixa de significar uma atitude reprovável e passa a ser um símbolo de “sucesso” no capitalismo selvagem, enquanto o “oprimido” passa a ser um “perdedor”.


Em primeiro lugar temos de explicar que “inteligência” e “sabedoria” são coisas diferentes — e que “conhecimento” seria ainda uma terceira. “Inteligência” é a capacidade de absorver e processar mentalmente informações. Uma pessoa autista “savant” não é “mais inteligente” que o normal, ela apenas tem um processo mental diferente, focado em determinado aspecto, em detrimento de outros.

Inteligência é a capacidade de identificar informações e incorporá-las ao seu cabedal de conhecimentos. Teoricamente é uma coisa que se basta em si mesma. Mas ter muita inteligência não necessariamente lhe dá “conhecimento”. Este seria o fruto da capacidade de utilizar a informação adquirida para derivar conclusões corretas. Por exemplo: uma pessoa inteligente seria capaz de ler e entender um grande número de artigos científicos sobre vacinas e seus princípios e obter disso o conhecimento de como elas funcionam, porque são importantes e quais as consequências de tomá-las ou não. Finalmente, “sabedoria” seria a capacidade de utilizar o conhecimento para tomar decisões sensatas. Voltando ao exemplo dado: uma pessoa sábia, tendo o conhecimento científico sobre como funcionam vacinas, concluiria que elas são essenciais para a erradicação de doenças infecciosas.

Inteligência não é um dom nato, é uma habilidade adquirida, resultante dos estímulos corretos, na idade correta.

Informação não é o mesmo que “dados”. Dados são aleatórios, informação é selecionada. Dar informação a uma pessoa é selecionar dados referentes a um tema, em vez de entupir a pessoa com pequenos pedaços de conteúdo não relacionados entre si. Seleção aqui não quer dizer “censura”, quer dizer “foco”. Você não aprende o básico sobre política lendo sobre versificação e nem se torna um bom mecânico estudando música.

A escola tem por missão transmitir aos alunos as informações necessárias e os estímulos requeridos para que eles desenvolvam sua inteligência, adquiram conhecimento e se tornem minimamente sábios para a idade adulta.

Quando uma criança não recebe os estímulos corretos para o desenvolvimento de sua inteligência ela passa a ter dificuldade para assimilar informações e processá-las. Isso faz com que passe a depender de informações pré-processadas. Ou seja: uma educação falha faz com que a criança se torne um adolescente (e depois um adulto) incapaz de chegar a conclusões a partir das informações recebidas.

Esse adulto tende a se tornar excessivamente crédulo em ideologias, isso quando chega a se interessar por temas complexos. Na maioria das vezes, o que temos são pessoas que desejam terceirizar suas expectativas.


Uma educação libertadora seria aquela em que os alunos são ensinados a obter conclusões a partir das informações recebidas. Para isso é necessário preparação e respeito. Esse meme pode ser engraçadinho, mas ele reflete um dos aspectos da educação que não é libertadora: a estigmatização do erro. Porém ele toca em um aspecto importante: se é aceitável uma criança se deixar levar pelas aparências, um adulto que faça o mesmo está seriamente comprometido no aspecto cognitivo. Uma educação libertadora transforma Matheus em um adulto que não mais se deixa levar pelas aparências.

Observe que o aspecto “libertador” de que fala Paulo Freire não é político ou ideológico, mas cognitivo. A educação libertadora é aquela que dá autonomia intelectual ao aluno. O aspecto político desta libertação está, porém, na ética. Não basta construir autonomia intelectual, é também necessária oferecer um balizador ético. Normalmente isso é dado pela família, mas os últimos cinquenta anos nos permitiram ver que a família nem sempre é funcional e isso não parece estar melhorando.


Tendo visto isso, vejamos como se dá a educação no Brasil (não vou teorizar sobre a educação em outros lugares porque não quero que Apeles me lembre que eu devo me limitar ao calçado.*

Uma educação libertadora não pode ser exclusivamente confessional, porque necessariamente a religião tenderia a formar novos fiéis.

Uma educação libertadora não pode ser exclusivamente doméstica, porque a família já tem um grande poder limitador sobre o jovem.

Uma educação libertadora não pode ser oferecida exclusivamente no ambiente de trabalho (ou em cursos profissionalizantes), porque os patrões buscam somente formar melhores empregados.

Uma educação libertadora não pode ser oferecida somente pelo governo, porque os governos buscam formar eleitores.

Uma educação libertadora não pode ser oferecida sob os desígnios da comunidade, porque a comunidade é uma extensão da família e um substrato do governo.

Então, quem pode oferecer uma educação libertadora?

Todos estes.

Uma educação libertadora precisa ser plural.

Uma educação que se dá sob a égide de um sistema único é uma educação doutrinadora e não formará cidadãos pensantes.

No Brasil a educação é oferecida por um sistema público que, com todas as suas deficiências, está, pelo menos, baseado em princípios universais e não está sob controle de nenhum credo ou da comunidade. Mas essa educação não alcança a todos: há muita gente que não submete seus filhos ao sistema público por causa das suas insuficiências, para essa gente, o caminho é a escola pública, que é uma forma de escola comunitária, visto que os pais, pagadores da mensalidade, têm muito maior influência sobre o conteúdo lecionado e sobre o quadro docente.

Além disso, dá-se muito prestígio a cursos técnicos profissionalizantes. Historicamente os pais ansiavam que os filhos ingressassem no SENAI ou cursos parecidos, a fim de que adquirissem uma profissão e logo entrassem no mercado de trabalho.

A ideologia predominante no Brasil é a de que a escola dever formar os pobres como trabalhadores, a classe média como profissionais e a elite como gestores. Dá-se pouca ou nenhuma importância à formação intelectual dos alunos. Tudo é muito instrumental. Mesmo o ensino de Humanas é apresentado de uma maneira tecnicista.

Isso decorre e realimenta o mito da tecnocracia, que leva as pessoas a respeitarem excessivamente os profissionais e darem pouca importância aos generalistas. Respeita-se a opinião do mecânico e do médico, inclusive sobre aspectos que vão além do carro e do corpo, mas não se respeita a opinião de quem não tem um objeto material para se ocupar.


O tecnicismo da educação brasileira faz com que o próprio brasileiro se veja como um mecanismo ou um reles objeto, que deva ser passivamente estudado. É a NASA — que reúne astrônomos, engenheiros e físicos — que precisaria estudar o brasileiro, não as nossas faculdades de ciências sociais (aliás, infestadas de “comunistas”, segundo se diz).

O resultado disso, no frigir dos ovos, é a substituição do conhecimento pela informação. Como não esperamos ter a chance de interagirmos na construção do conhecimento, temos de estar preparados apenas para dar a resposta certa. Não temos nossa opinião ou nosso tijolo na construção, o que podemos ter é o adestramento. Isso é o que Paulo Freire chamou de “educação bancária”, ou seja, um sistema eu não enseja a produção de novos conhecimentos, mas apenas a intermediação de conhecimentos existentes. O estudante recebe um depósito de conhecimento ao frequentar a escola e deverá devolver esse conhecimento, com o mínimo possível de “perda” quando for perguntado.


Acredito que, a essa altura, você já entendeu aonde eu quero chegar. Aliás, este texto está grande assim justamente porque tende a se tornar cada vez mais agressivo e eu não quero que as pessoas que foram vítimas dessa ideologia e desse sistema de educação “bancário” se sintam ofendidas quando se depararem com as conclusões.

A questão é que se um sistema educacional não induz à reflexão, não estimula o intelecto e não desenvolve a capacidade de tirar conclusões autônomas; então o único fruto possível desse sistema é um adulto limitado pela tradição, pelo senso comum e por preconceitos. Um adulto raso, que apenas faz circular informações de pouca densidade (“memes”) porque não tem a capacidade de assimilar e processar elementos mais complexos.

Há muita gente que confunde o seu excelente adestramento com um sinal de inteligência. Porque foram capazes de decorar apostilas e responder provas de múltipla escolha, assim alcançando empregos de prestígio ou carreiras lucrativas, essas pessoas se sentem parte de uma elite intelectual. Não citarei nomes, mas vocês citarão pessoas famosas, que estão na mídia, e que redigem como estudantes de segundo grau deslumbrados com um dicionário. Textos duros, sem fluidez e empregando vocabulário forçado. Isso parece ser uma norma no campo do direito, onde citações latinas eram, até pouco tempo, um substituto para a expressividade real.

Tecnicismo e mais soberba resultam em pessoas que se tornam até excelentes em seu campo estrito de trabalho, mas cujas cabeças parecem usar um cabresto com tapa-olhos: só conseguem compreender aquilo que faz parte de sua realidade imediata. Como esse pobre animal, cujo nome é injustamente usado para descrever pessoas que têm problemas cognitivos.


O burro é um animal injustamente considerado estúpido porque se recusa a carregar peso excessivo, por mais que seja punido fisicamente. Além disso, quando se cansa, o burro “empaca” e não se moverá enquanto não estiver descansado. O burro seria, então, mais consciente de seus limites e de sua necessidade de autopreservação do que o cidadão típico da sociedade moderna.


A dificuldade de compreender além do próprio campo de trabalho leva à síndrome do martelo: para quem tem um belo martelo, tudo no mundo começa a parecer prego. Ou seja, cada vez mais essas pessoas interpretam a realidade conforme a sua experiência pessoal limitada.

Olavo de Carvalho compreendeu isso como ninguém. Ele não se propõe a ensinar nada de novo ou libertador, em vez disso ele se tornou um especialista em vender segurança. Falsa segurança, mas isso não importa. Para o animal da figura acima, qualquer versão que lhe seja dada a respeito daquilo que existe fora do seu campo de visão (delimitado pelo tapa-olhos) será aceita, desde que ela esteja conforme aquilo que ele pode ver à frente. Se alguém lhe disser que o mundo inteiro são estradas ladeadas de cercas e terminando em pastos, será assim que ele o aceitará.

Olavo de Carvalho diz às pessoas que têm um horizonte cognitivo restrito que aquilo que elas já aprenderam é suficiente e que é possível elevar-se acima disto, sem a necessidade de abranger mais. Olavo diz aos seus alunos que eles devem procurar construir antenas, em vez de edifícios. Antenas são vazias e de uso limitado, mas podem chegar mais alto com menos material.

Quando pessoas que acreditam ter muita inteligência são convencidas de que realmente têm-na e de que sua cultura já abrange os campos conceituais necessários, o resultado é um grande comprometimento. Questionar a formação intelectual e cultural de um indivíduo pode colocá-lo em crise existencial e gerar insegurança — é por isso que frequentemente alunos de ensino superior (especialmente na área de humanas) entram até em depressão. Mas há um efeito muito confortador em se afagar o estudante com a tese de que ele é inteligente e que pode se completar como um sábio apenas terminando a exploração dos conhecimentos que já adquiriu…


É isso que Olavo de Carvalho faz.

Aos idiotas ele diz que eles não são idiotas, mas que foram feitos de idiotas. Assim eles o seguem, crendo que agora saíram da caverna.

Aos ignorantes ele diz que eles não são ignorantes, não só porque já sabem alguma coisa (que é importante), mas também porque aquilo que eles ignoram não é importante ou é mesmo falso.

Aos tolos ele diz que sua tolice é um superpoder.

Aos que se acham brilhantes ele diz que são ainda mais brilhantes e podem se tornar líderes.


Quanto ao Quociente de Inteligência, é uma medida muito controversa porque a verdadeira inteligência é prática. De nada serve a habilidade abstrata de manipular conceitos que estão fora da esfera cotidiana. Não lembro qual humorista disse isso, mas há um famoso esquete em que um humorista relata sua decepção com a geometria. Depois de anos se tornando um especialista em calcular as medidas e propriedades de retângulos, triângulos, cones, esferas, cilindros e outras formas puras; descobriu que na natureza não há tais formas. Assim, quando seu pai lhe pediu para calcular de maneira “científica” qual a área ótima que o curral deveria ter, ele obteve um cálculo, mas o informou ao pai com uma ressalva: “a área calculada de 225 m² pressupõe que as vacas sejam paralelepípedos perfeitos”.

Quando a educação visa exclusivamente a desenvolver raciocínios abstratos, o resultado são pessoas que só sabem lidar com o mundo através de idealizações forçadas, um mundo no qual as vacas têm de ser paralelepípedos perfeitos.

O resultado disso é que muitas pessoas que se acreditam brilhantes dedicam sua vida a basicamente alardear que são brilhantes, reunindo-se em sociedades como a Mensa ou publicando testes de QI espúrios. Na prática, essas pessoas nada fazem porque sua auto-ilusão de brilhantismo as paralisa: tentar fazer algo poderia ser decepcionante porque as confrontaria com os limites de seu conhecimento. Não é qualquer sábio que está disposto a correr o risco de ser desmascarado como um ignorante — mesmo que em um aspecto restrito — ou de descobrir toda sua sabedoria não lhe dá o poder de salvar o mundo.


A troiana Cassandra, personagem da Ilíada, prometeu sua virgindade a Apolo em troca do dom da profecia, mas arrependeu-se. O Deus não se aproveitou de seu poder para estuprá-la, mas castigou-a concedendo-lhe simultaneamente a profecia e retirando-lhe a credibilidade. Assim, Cassandra se tornou capaz de prever todo o desenrolar da Guerra, sem que ninguém na cidade acatasse seus alertas. Hoje em dia ela foi recuperada como um símbolo do feminismo, simbolizando a mulher que não é ouvida, mesmo quando sabe do que está falando.


Finalmente, nem todo aquele que se crê muito inteligente realmente o é, porque o resultado em um teste de QI pode ser um fim em si mesmo — e tal pessoa não é capaz de concluir um silogismo quando os dados estão afetados pela ideologia. Este é, aliás, o sinal mais importante de sabedoria: a capacidade de raciocinar corretamente, mesmo diante de dados que contradizem nossas crenças e expectativas.

* Referência a uma anedota contada por Plínio, o Velho, a respeito do pintor grego Apeles. Quando exibiu uma de suas obras, um sapateiro pediu a palavra e observou que o desenho do calçado do personagem estava errado. Humildemente Apeles concordou em consertar a pintura. Vendo-se prestigiado, o sapateiro passou a fazer comentários sobre outros aspectos da cena e então Apeles, furioso, o mandou passear com a frase que Plínio cita em latim: sutor, nec ultra crepidam (sapateiro, não vá além dos sapatos).

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