Espanta-me que entre tantos absurdos legais e filosóficos que seguem sendo perpetrados nesse ano da desgraça de 2019 tenha vindo à baila a ideia torpe da “Terra Plana”, defendida pela boca de um idiota elevado à quinta potência e empoderado por conluios ininteligíveis.
Voltaire escreveu em sua obra “Questões sobre os Milagres…” uma frase muito interessante: Aqueles que podem levá-lo a crer em absurdos podem levá-lo a cometer atrocidades. É à luz desta frase que devemos analisar este processo histórico presente. Talvez ela possa nos ajudar a entender o que planejam aqueles que pagam ao Oráculo de Cavalos para escoicear e relinchar pelo mundo.
A frase do filósofo francês se refere à crendice popular em dogmas religiosos em geral. A tradução dada acima é uma tentativa de transformar o espírito do original em um provérbio e, embora seja verdadeira em si mesma, não é exatamente o que Voltaire escreveu (uma tradução minha abaixo, a partir de meu parco francês, apoiada no inglês de uma tradução bem reputada):
Houve quem dissesse: “Crede naquilo que é incompreensível, inconsistente ou impossível porque nós vos comandamos a crer nisto; então ide e fazei aquilo que é injusto porque nós vos comandamos.” Tais pessoas demonstram um raciocínio admirável. De fato, quem quer que seja capaz de tornar-vos absurdos é capaz de vos tornar injustos. Se não opuserdes às ordens de crer no impossível a inteligência que Deus pôs em vós; então não resistireis às ordens de desrespeitar aquele divino senso de justiça em vossos corações. Assim que uma faculdade de vossas mentes for dominada, as demais faculdades igualmente se seguirão. Disto derivam todos os crimes das religiões que grassaram pelo mundo.
A crença no absurdo é uma poderosa ferramenta política, porque as pessoas estão mais disposta a matar e a morrer para esconderem seus erros do que para fazerem o que é justo. Não à toa sabemos frequentemente de pessoas de suposta boa índole que se meteram com bandidos cedendo à chantagem. A chantagem funciona porque não queremos destruir a imagem pública de perfeição infalível que construímos para nós mesmos. Então, se uma pessoa certa vez foi convencida a crer em algo patentemente absurdo, essa pessoa nunca poderá admitir publicamente que se enganou, porque verá nisso uma humilhação. Então ela acha mais certo manter a farsa, mesmo depois que já notou o próprio engano, do que dar dois passos para trás.
O efeito desmobilizador da chantagem é ainda mais forte na nossa era digital porque, protegidos pelo relativo anonimato que imaginam ter, há milhões de pessoas dispostas a apontar seus dedos para os vícios, pecados e deslizes alheios. A tal cultura do “cancelamento” e a tal prática de “arqueologia de redes sociais”. Então, aquele que um dia acreditou no absurdo se sente ainda mais vulnerável.
Mas há um antídoto ilusório contra essa vulnerabilidade e ele se chama “validação”. Ser validado por outras pessoas de seu mesmo círculo de amizades faz com que você não considere idiota e absurdo algo que, em circunstâncias normais o faria ter ataques de riso. Se você é parte de um grupo, os valores e práticas desse grupo se tornam normais para você. Sem querer fazer uma comparação excessivamente polêmica, falemos de algo mais corriqueiro: tatuagens.
A tatuagem era originalmente um rito de passagem praticado por muitas culturas do mundo. A tatuagem policromática foi inspirada na cultura japonesa, principalmente. A tatuagem monocromática (ou “tribal”) existiu em diversas culturas do mundo: polinésios, indianos, árabes, certos povos ameríndios, germânicos etc.
A maioria das pessoas nunca procuraria a dor de maneira espontânea. Como diz a célebre consideração de Cícero, em Extremos do Bem e do Mal:
Ninguém rejeita, sofre ou evita o prazer por si mesmo, porque é prazer, mas porque aqueles que não sabem usufruir racionalmente do prazer encontram consequências muito dolorosas. Tampouco há quem ame, persiga ou deseje obter a dor propriamente, porque é dor, mas porque ocasionalmente haverá circunstâncias em que o padecimento e a dor podem resultar em grande prazer. Para tomar um exemplo trivial, quem de nós alguma vez se esforçou laboriosamente senão para obter vantagens disso? Mas quem de nós censuraria àquele que optasse por experimentar um prazer que não tivesse consequências, ou que evitasses uma dor que não trouxesse nenhum ganho resultante?
Então, obviamente, as pessoas não se tatuam porque dói, e, como não há prazer direto em submeter-se à agulha do artista, resulta que as pessoas se tatuam em busca de prazeres indiretos e/ou ulteriores. Como, por exemplo: a aceitação do grupo social a que pertencem. Hoje em dia, como a tatuagem se tornou aceitável na cultura mainstream, como as pessoas não enfrentam mais as sanções profissionais e pessoas que costumavam acompanhar aos tatuados de outrora, então pessoas que normalmente não se tatuariam se tatuarão, não porque anteriormente o desejassem, mas porque agora esse é o novo normal e há muitas circunstâncias em que a tatuagem, uma vez feita, terá consequências positivas. Seja um elogio à beleza do desenho, seja a possibilidade de identificar pessoas (para amizade ou relação sexual) com interesses afins, etc.
A validação social da tatuagem contribui para exacerbar ainda mais a sua popularidade. Prevejo que chegará um momento — e ele nem está tão longe — em que as pessoas considerarão antiquado, ou no mínimo esquisito e antissocial, quem não faça uma reles tatuagem. Então, em vez de ser uma marca de “personalidade” (como eram as tatuagens roqueiras de antigamente), a prática se tornará um imperativo cultural. Isso quer dizer que muitas pessoas já não se tatuarão pelas oportunidades de prazer advindas da validação, mas para fugir aos sofrimentos resultantes de não estar inserido na cultura mainstream.
Espero que tenha conseguido abordar o tema sem ser agressivo nem preconceituoso. Mas, mesmo que tenha sido, espero que tenha, pelo menos, conseguido construir uma analogia válida e reutilizável. Agora transponha essa analogia para os fenômenos citados.
Ninguém busca crer em coisas absurdas, afinal, são absurdas. As pessoas creem porque são ignorantes (então não conseguem perceber o absurdo inicialmente) ou por pressão social (estão em um ambiente em que são forçadas a acatar o absurdo). Uma vez que você aceitou o absurdo inicial, tal como explicou o Voltaire, a sua racionalidade começa a cair como um castelo de cartas. A única coisa que poderia salvar sua funcionalidade seria a humildade, mas, como explicou Nietzsche, o ser humano não deseja ser humilde, ele deseja triunfar. Todos temos em nós uma “vontade de potência” que nos leva a acatar mais facilmente o que nos valida do que aquilo que nos questiona. Não queremos descobrir que somos fracos, mas ouvir que somos mais fortes do que pensávamos.
“Fiz isso,” diz minha memória racional. “Não posso ter feito isso,” diz o meu orgulho. Eventualmente a memória cede.
— Aforismo de Nietzsche em “Além do Bem e do Mal”.
A dor da descoberta da própria limitação e falibilidade é um obstáculo que somente os mais estoicos conseguem superar. A maioria morrerá em negação. Por isso as religiões, notadamente as mais absurdas, dependem tanto do proselitismo junto às crianças. São os pequenos os ignorantes naturais, porque nasceram há pouco e ainda não aprenderam quase nada. Se forem obrigados a aceitar desde cedo crenças absurdas, passarão por toda a vida buscando maneiras de revalidar os absurdos, em vez de admitirem o dolorosos: que ouviram mentiras de gente que amavam, que perderam longos anos de sua vida em ritos e relações sem sentido.
O confronto com essa situação causa dor. Para evitar essa dor; que é permanente porque se refere a tempo perdido, dinheiro pago em dízimos e ridículos passados em público; as pessoas se tornam capazes até de suportar dores objetivamente maiores, mas percebidas como de curto prazo.
Finalmente há que se dizer que nem todas essas crenças são iguais.
O monarquismo não é necessariamente uma crença absurda, apenas ligeiramente ingênua e obsoleta. Pessoas muito respeitáveis e racionais podem desenvolver teses aceitáveis explicando que, mesmo que não seja aconselhável hoje voltar à monarquia, teria sido melhor nunca tê-la abolido.
A rejeição a vacinas decorreu de um pânico moral criado por um médico inescrupuloso pago por um laboratório (cujo nome é proibido mencionar em notícias sobre o assunto, porque o processo judicial que vem em seguida é impiedoso e tonitruante) para desacreditar a vacina gratuita contra o sarampo a fim de justificar que o governo gastasse milhões comprando uma nova vacina, patenteada. As pessoas acreditaram porque, com o apoio desse laboratório poderoso, o médico (cujo nome também é bom não mencionar) conseguiu publicar estudos até em revistas renomadas (revisão por pares falha de vez em quando, especialmente quando empresas milionárias presenteiam os revisores com lentes muito especiais…). Depois a crença persiste porque existe uma tendência atávica de desconfiança da ciência (a Revolta da Vacina, por exemplo).
O anarco-capitalismo é uma ferramenta de guerra híbrida desenvolvida pelos EUA a partir dos escritos de Ludwig von Mises e de autores, como Rothbard e Rockwell, autores de textos delirantes que defendiam o direito de deixar os filhos morrer à míngua ou de dirigir embriagado. O objetivo ainda me parece obscuro, ou pelo menos não cabe nessa resposta. Mas, diferente dos outros, foi uma construção gradual, que tardou décadas.
Finalmente o terraplanismo é agora introduzido como “shibboleth” do conjunto de crenças do neofascismo. Aqueles que já aceitaram o pacote de crendices iniciais precisam provar sua fidelidade dando o passo final, aceitar a terra plana, ou oca, ou em formato de biscoito. A essência aqui não é a justificação da crença, mas a obediência do fiel. Crer na terra plana é “subir um grau” na confiança do sistema. Haverá um dia em que aqueles que não forem capazes de afirmar que a terra é plana serão vistos como um tipo de esquisitos.
Como George Orwell previu, o regime exigirá que os cidadãos creiam simultaneamente na validade de duas ideias mutuamente excludentes. Devem crer, por exemplo, no Google Mapas, que usa dados de satélites, mas acreditar na terra plana.
O objetivo, claro, adestrar essas pessoas para cometerem absurdos.