A primeira obra que eu li de Machado de Assis foi o “Dom Casmurro”. Eu tinha 12 ou 13 anos e esse livro estava entre os que havia na biblioteca de casa.
O que me chamou a atenção foram as cenas do amor juvenil de Bento e Capitolina. Aquilo ali me parecia muito idílico e muito parecido com o que eu desejava. Identifiquei-me muito com o Bentinho e queria muito ter a minha Capitolina.
Acontece que eu não li de uma vez só — certos livros eu tinha por hábito ler aos poucos, alternando com outros. Esse foi um deles. Quando, várias semanas depois, eu cheguei às partes finais, aí eu me senti muito triste pelo Bentinho, muito confuso pela relação entre os dois e confesso não entendi muita coisa dos ciúmes.
O que mais me chamou a atenção, de fato, foi Bentinho, no fim da vida, mandar reconstruir no Engenho Novo, aonde tinha ido morar, a casa rua Matacavalos em que ele vivera na infância, uma casa idêntica à de seus pais, já demolida, e inclusive pintar sobre o pórtico da sala os bustos de César, Augusto, Nero e Massinissa (que não estavam na casa original).
Desde então eu já reli a obra várias vezes (não contei quantas, mas no todo devem ter sido três ou quatro apenas, visto que sempre a reli aos pedaços, depois de já ter lido uma vez por inteiro). Essa parte final da segunda casa em Matacavalos continua o meu trecho favorito do livro.
Hoje, com a minha maturidade, vejo nessa atitude de Bentinho uma tragédia pessoal muito amarga que se abateu sobre o protagonista, vítima de suas próprias obscuridades e também de uma sociedade que impunha ao homem e à mulher papeis muito rígidos.
Ao reconstruir a casa, ele quer recuperar a inocência e a felicidade da infância, uma época em que, paradoxalmente, ele ainda podia amar a Capitolina porque ela ainda era inocente. Ao incluir os medalhões com as figuras das ditas celebridades romanas, ele insere nessa lembrança de uma feliz infância a mau agouro de um futuro que seria frustrante. Dessa maneira, ele nem consegue se desenvencilhar de uma relação que o feriu e nem consegue se entregar ao arrependimento e à saudade do que perdeu.
Essa interpretação, curiosamente, me veio em um momento em que eu também terminei um relacionamento por ciúmes.
Eu estava em má situação financeira e decidi não mais sair, para economizar dinheiro, enquanto buscava um novo emprego. Minha namorada me disse, então, que não se importava que eu ficasse em casa, mas que ela sairia mesmo assim. Quando confirmei que ela realmente saíra, na companhia de outras pessoas, fui até ela e lhe disse que não tinha como continuar o relacionamento. Ela me perguntou se eu não a amava mais e eu lhe respondi: “eu ainda amo quem você era até ontem, mas não amo essa que você se tornou”. Ela então me disse que aquela que existira até o dia anterior era a mesma que ainda existia e que se eu achava as duas diferentes não era porque ela tinha mudado, mas porque eu a olhava de um ponto de vista diferente. Eu lhe disse, então, que não conseguiria continuar se ela não voltasse a ser quem fora, mas, como ela insistia que sempre fora a mesma, isso queria dizer que ela não voltaria a ser quem eu amava. Eu tendo dito isso, ela se levantou e foi embora, e nós nunca mais nos tocamos desde esse dia — embora tenhamos voltado a trocar algumas palavras asmistosamente depois.
Essa frase que eu disse me marcou profundamente quando eu reli “Dom Casmurro” algum tempo depois. “Eu ainda amo quem você foi, mas não amo quem você se tornou” é uma frase que exemplifica muito bem o estado de espírito do Bentinho nos capítulos finais do livro.