Há algum tempo, em 2017, eu escrevi um ensaio intitulado «O Que Fazer com a Arte de Pessoas Execráveis?» que era mais ou menos sobre isto. Minha opinião mudou um pouco desde então, mas permanece coerente no essencial. Devemos ter muito cuidado ao condenar a obra por causa do autor.
Comecemos por uma história contada pelo humorista Millôr Fernandes:
A senhora, uma dona de casa, estava na feira, no caminhão que vende galinhas. O vendedor ofereceu a ela uma galinha. Ela olhou para a galinha, passou a mão embaixo das asas da galinha, apalpou o peito da galinha, alisou as coxas da galinha, enfiou o dedo no fiofó da galinha, depois tornou a colocar a galinha na banca e disse para o vendedor “Não presta!” Aí o vendedor olhou para ela e disse: “Também, madame, num exame assim nem a senhora passava”.
A moral desta anedota é que não devemos julgar aos outros com uma régua moral que não se aplique a nós mesmos, ou seja, temos aqui uma condenação bem-humorada da hipocrisia dos que querem “cancelar” os outros.
Obviamente que seria falacioso exigir que somente os perfeitos pudessem condenar alguma imperfeição alheia. A questão é justamente oposta: por mais que condenemos as imperfeições alheias, tomadas individualmente, não temos o direito de esperar que os outros sejam perfeitos porque estamos exigindo uma condição impossível. Somente uma divindade perfeita poderia exigir tanto.
Esse debate talvez tenha sido feito pela primeira vez de maneira ampla após a Segunda Guerra Mundial, quando várias personalidades do mundo da arte e da filosofia haviam simpatizado com o nazismo: Martin Heidegger, Ezra Pound, Knut Hamsun e Louis-Ferdinand Céline foram autores que enfrentaram graves acusações de “traição nacional” e sofreram com o opróbrio da academia.
Mais recentemente surgiram movimentos para reavaliar a obra de autores do passado considerando a sua “herança” de racismo, machismo ou algum outro “ismo” para o qual a humanidade se tornou mais sensível, supostamente. A nova ideia que se propaga é a de que devemos destruir através do boicote as carreiras dos autores e artistas “execráveis”, tal como se fossem Charles Manson.
Uma das condições essenciais da civilização é a separação entre a pessoa e sua obra. Não podemos condicionar a aceitação de um progresso (tecnológico, científico, filosófico ou artístico) somente porque quem o criou tinha problemas morais e éticos. Afinal, ninguém deixou de usar eletricidade só porque Thomas Edison era racistão, e os Estados Unidos não vão voltar a ser colônia inglesa só porque George Washington e Thomas Jefferson eram escravocratas. Se não vamos desistir dos confortos do progresso tecnológico, por que acha que devemos desistir da literatura?
Observe que a pergunta não é se devemos glorificar pessoas que cometeram crimes, mas a obra de pessoas que cometeram crimes. Uma produção artística ou literária não é um crime.
Houve uma época pouco luminosa da história da humanidade na qual obras foram condenadas porque seus criadores eram judeus, deficientes físicos, comunistas, homossexuais ou negros. Certamente você não gostaria de retornar a essa época.
Uma das características das pessoas essenciais, dos ditos “grandes homens” e mulheres, é que fazem grandes coisas. Ninguém muda a história da civilização dando bom dia ou jogando futebol de botão. A grandeza exige atitudes extremas, que podem ser extremamente boas, extremamente controversas ou até extremamente ruins. A humanidade sempre foi composta principalmente por tipos os mais execráveis. A ética sempre foi a preocupação de uma minoria, muitas vezes a minoria que perecia nos conflitos justamente por não ser capaz de fazer “tudo” para vencer. Na guerra, a lealdade é uma fraqueza. A seleção natural não favorece a razão e nem a ética, por isso o ser humano é selecionado para ser supersticioso e trapaceiro. Com uma demão de falsa moralidade proporcionada pela ideologia, temos o cidadão de bem, religioso e esperto.
Pessoas de belo caráter não costumam estar presentes na terra em número suficiente para influenciar o mundo de maneira decisiva — e também não costumam ter em si a centelha de inquietação que leva o ser humano a aproximar-se do extremo e do sublime. A arte das pessoas execráveis não é, portanto, uma curiosidade dispensável. Dependendo de como classifiquemos “execrável”, simplesmente não haverá nada que reste a ser estudado no passado. Sabe por quê? Porque aquilo que é criminoso e execrável costuma ser definido por pessoas que não ousam ou que procuram manter uma hipocrisia conveniente.
Alguns autores têm a fama excelente, o que basicamente significa que sabemos muito pouco sobre eles. Se soubéssemos mais, alcançaríamos os seus segredos profundos e encontraríamos algo a nos chocar. A diferença entre os “execráveis” e “não execráveis” não está em uma impossível perfeição moral, mas em onde traçar a linha imaginária que separa os comportamentos “execráveis” dos “ aceitáveis”. Não tenho conhecimento de que já tenha se chegado a um acordo sobre onde traçar a linha: cada um a coloca onde quer, conforme seu conhecimento. Os “cancelamentos” ocorrem à medida que os malfeitos vêm a luz, não à medida que são cometidos.
Afinal, a eficácia está em ir à raiz do “problema”. Por que queimar os produtos do gênio humano se podemos evitar a propagação deste queimando os próprios seres humanos?
Defender a arte contra a execração moralista é defender, a longo prazo, a integridade física de todo aquele que pode acidentalmente restar dentro de um território a ser destruído. Nunca tenha a plena confiança de que você está seguro, de que a fronteira não o cruzará. São sempre outros que definem se você é “legal” ou não. Gritar e reivindicar pureza (étnica, moral, religiosa) não importa. Ninguém mede a si mesmo.
Durante a maior parte da história da humanidade pareceu razoável supor que a obra transcende o autor. Isto vem desde a mais remota antiguidade, quando o texto era tido como palavras sagradas, passando pela Idade Média, quando o livro passou a ser visto como objeto sagrado e pelas Idades Moderna e Contemporânea, quando o fetiche do livro foi substituído pelo fetiche do fazer literário. O ápice desta ideia de separação foi trazido por Roland Barthes, que decretou a “morte do autor” diante de sua obra: segundo o crítico francês, uma vez que a obra é publicada, perde o autor o seu controle sobre as interpretações que podem ser feitas dela. A obra deixa de pertencer a quem a escreveu e passa a pertencer a quem a lê – e o leitor tem a liberdade de atribuir ao texto significados relativos a si mesmo, o que mais recentemente se reflete no conceito de “shipar”.
Os antigos levavam essa separação tão a sério que muitas obras do passado são anônimas (ninguém assinava) ou apócrifas (um autor podia muito bem atribuir seu trabalho a outro, sem qualquer pejo). Hoje valorizamos de tal maneira o ego que a escrita apócrifa foi invertida e transformada no plágio. Não mais atribuímos o que fazemos a alguém que é melhor do que nós, queremos roubar para nós aquilo que foi feito por outra pessoa.
Mas a separação entre indivíduo e obra tem um outro efeito que se tornou indesejado: o prejuízo ao moralismo. Se podemos apreciar a obra escrita por uma pessoa humilde, por que não podemos apreciar também aquela criada por alguém detestável? O autor, a partir do momento em que se torna “famoso”, adquire a liberdade de agir além do senso comum, praticando atos que os comuns não podem. Esta “aristocracia artística” criada pelo conceito da “qualidade” levou ao surgimento do “autor maldito” e do “astro drogado”. Não seria possível imaginar Rimbaud e Verlaine sem o conceito de separação. Não teria sido possível metade da rebeldia do rock’n’roll.
Black Sabbath em 1969. Quatro jovens pobres de uma cidade industrial, que mal tinham dinheiro para comprar seus instrumentos e que tinham pouca educação formal. Também tinham vários problemas com a polícia (Ozzy Osborne era burglar, “ladrão de residências” e Tony Iommi era um valentão que se metia em brigas) que os acompanharam pela vida toda (todos se envolveram com drogas e bebida, Iommi tentou assassinar sua namorada com uma guitarrada, Osbourne e Ward forma presos inúmeras vezes). Boa parte da cultura roqueira só existe porque as pessoas sabiam apreciar a música sem julgar as pessoas que a faziam.
Para os moralistas isso sempre foi intolerável. Os pânicos morais contra os artistas dissolutos são antigos, datando desde a época vitoriana, quando Oscar Wilde caiu em desgraça por sua homossexualidade, e chegando ao auge nos anos setenta, quando os roqueiros drogados eram vistos como sacerdotes do anticristo.
Quando diluímos a fronteira entre o artista e a obra e passamos a julgar um em função do outro podemos criar situações embaraçosas. Devemos manter a separação entre o autor e sua obra?
Se você acha que sim, então não está obrigado a gostar de Pablo Vittar apesar dele ser atualmente o maior ícone gay da música pop brasileira. Está liberado para dizer que ele não sabe cantar e nem compor, ou simplesmente que não gosta do que ele faz.
Se você acha que sim, então não está obrigado a deixar de gostar dos filmes de Woody Allen só porque ele foi um escroto ao se relacionar com a Soon-Yi.
Mas se acha que não devemos, então não pode criticar o Pabllo Vittar porque ele é gay e os homossexuais se sentem representados por ele. Sendo ele o maior ícone gay do momento, você, se for homossexual, está obrigado a gostar dele, porque não fazê-lo seria algo como “trair o movimento” ou diminuir a “visibilidade” LGBT.
Se acha que artista e obra devem se confundir, então assistir a um filme de Woody Allen é uma falha moral e inadvertidamente gostar desse filme é um pecado mortal.
Numa das opções um arroto de Pablo Vittar deve ser aceito como arte, mas ninguém deve gostar de A Rosa Púrpura do Cairo.