Uma das coisas mais curiosas das últimas décadas foi a difusão do terraplanismo, a crença estúpida de que o mundo seria plano. Acompanha-o de perto outra ideia, menos estúpida, porém não menos incorreta, segundo a qual os povos antigos todos creriam em um mundo literalmente chato.
Muitos povos antigos realmente acreditavam que o mundo era uma grande bandeja, com uma cúpula por cima e repousando sobre diversos tipos de suportes. Termos como “firmamento” e “pilares da terra” entraram na linguagem literária exatamente porque os antigos tinham dessas crenças. Mas isso não quer dizer que todos os antigos pensaram assim: houve uma nítida evolução do pensamento humano desde a época em que as pessoas acreditavam que o mundo existia sobre as costas de uma tartaruga. Há uma distância apreciável entre o homem neolítico, que mal conhecia o mundo além de umas dezenas de quilômetros, e um filósofo já bem adiantado como o grego Eratóstenes.
Gradualmente se espalhou a ideia de que o mundo seria uma bola, ou poderia ser. Aonde quer que chegasse essa ideia, por mais que tivesse resistência inicial, ela triunfava porque a esfericidade da terra resolve uma série de problemas, mesmo de ordem prática e imediata. A esfericidade da terra explica o mundo de uma maneira que mesmo antigamente os povos conseguiam entender e aceitar. Afinal, os antigos não eram estúpidos, eram apenas antigos. O que lhes faltava não era inteligência, mas acúmulo de conhecimento e de técnica. De certa forma, eles eram mais inteligentes e habilidosos do que nós, porque tinham de fazer as coisas com menos recursos e menos opções.
Talvez, porém, já não exista mais esse ser humano que sobrevivia pela inteligência, pela rapidez de raciocínio e pela adaptabilidade a um mundo perigoso e desconhecido. O terraplanismo pode ser um dos sintomas disso. O cinismo da modernidade nos faz desconfiar do conhecimento difundido, ao mesmo tempo em que nossa desconexão dos processos naturais da vida nos torna incapazes de exercer nossa faculdade de observação.
O terraplanismo se baseia na crescente desconexão das gerações atuais em relação à natureza. Como sempre, a arte nos ajuda a entender isso. Em seu romance “Fundação” o escritor Isaac Asimov nos apresenta o planeta Trántor, localizado no “Centro Galático” (a região habitável de maior densidade estelar em todo o universo). Ali em Trántor se localizava uma ecumenópole* que era a capital do Império Galático. Ao falar de Trántor, Asimov nos dá, sem querer, um vislumbre do terraplanismo que ainda nem era comum quando ele escreveu.
Os habitantes de Trántor passavam suas vidas inteiras em espaços fechados. Como o planeta não tinha mais uma biosfera para preservar a sua atmosfera respirável, a pouca atividade “agropecuária” lá existente se dava em subterrâneos e todos os espaços abertos eram selados para evitar que o ar respirável escapasse. Nos subterrâneos também ficavam as fábricas que continuamente reciclavam o ar. Tudo isto é apenas aludido de maneira vaga, mas uma coisa é dita de forma clara…
Como os habitantes de Trántor viviam sempre com um teto acima de suas cabeças e sempre tinham paredes a no máximo algumas dezenas de metros (lindo lugar para viver se você é claustrofóbico), não tinham ideia de direções e nem de distâncias. Haviam se tornado todos míopes e desorientados. Somente através de auxílios eletrônicos eles conseguiam encontrar seus caminhos pelo planeta. Como não havia atmosfera acima dos últimos andares dos prédios, era difícil (ou pelo menos muito caro) viajar de avião (ou por qualquer meio voador, exceto foguete) e as naves espaciais eram grandes (e perigosas) para serem usadas tão perto de estruturas habitadas, a maioria das viagens era por uma espécie de metrô.
Isso limitava bastante a extensão das viagens que as pessoas comuns podiam fazer. Imagine um mundo onde só fosse possível viajar de metrô ou por foguetes suborbitais. Périplos internacionais seriam mais difíceis.
Porém, os habitantes de Trántor ainda poderiam, em certas situações, ter que sair do planeta para executar missões militares ou diplomáticas em planetas onde ainda houvesse espaços abertos. Por isso, era lei que todo cidadão tinha de, pelo menos uma vez por ano, passar uma hora em um mirante alto, acima da linha média dos prédios, contemplando a distância.
Para os habitantes de Trántor, esse momento que passavam ali, forçados a olhar para a distância com seus olhos míopes, era uma coisa pavorosa, uma tortura terrível. Seria o equivalente a pegar uma pessoa comum, colocar de pé no alto de uma torre de energia, a mais de 200 metros do chão no alto de um morro, sem qualquer equipamento de proteção. Uma pessoa comum facilmente surtaria em tal situação, teria tonturas e vertigens, talvez vomitasse, entraria em pânico.
Alguns de Trántor conseguiam dominar esse medo e assim se capacitavam para as referidas missões. Em sua maioria, porém, sucumbiam a ele e tinham de receber dispensa médica e deixar de ir. Alguns chegavam mesmo a morrer de pânico.
Asimov não nos diz que a gente de Trántor poderia ser terraplanista, mas é razoável supor que muitos não teriam noção de que o planeta seria esférico — ainda mais que Trántor é descrito como maior que a Terra em volume, o que significa que sua curvatura seria mais difícil ainda de discernir, mesmo por quem estivesse em um mirante altíssimo e diante de um horizonte quase plano.
Como os habitantes de Trántor na ficção, os habitantes da Terra de hoje estão piorando de visão por passarem a maior parte do tempo olhando para perto, através de telas de computador. A ideia de que no passado se fazia astronomia a olho nu nos parece absurda. Como os habitantes de Trántor, muitos de nós perdemos a capacidade de orientação geográfica (pelo sol, pelas estrelas ou por marcos locais). Não sabemos encontrar caminho pelas estradas, ou não temos paciência, então precisamos da ajuda de aplicativos. Temos dificuldade para caminhar longas distâncias — a tal ponto que fizemos da caminhada um esporte, que nem todos praticam. Embora alguns ocasionalmente façam longas viagens, muitos passam a vida inteira circunscritos a regiões pequenas, em que se deslocam a pé ou de carro.
Como a gente de Trántor, nos deslocamos orientados por guias eletrônicos que nos parecem bastante planos nas telas. Mesmo os modelos mentais através dos quais organizamos os aspectos abstratos do mundo são bidimensionais:
Os diagramas de orientação política, como este da esquerda, organizam o mundo em duas dimensões. A informação da esfericidade do planeta, que foi percebida como concreta e evidente pelos povos da Antiguidade, vem se tornando um dado abstrato e cada vez mais questionável porque não é mais algo que podemos experimentar, é algo em que temos de acreditar conforme a palavra de alguém que nos ensino. Adicione a isso o cinismo de uma geração que progressivamente perde a fé, eis que temos agora a dúvida razoável de que o mundo não seja uma grande pizza.
É a limitação de nossas experiências sensoriais que transforma em questão de crença aquilo que antes era tido como fato quotidiano. Haverá um momento no futuro em que outros aspectos hoje evidentes serão também considerados controversos. Chegará o dia, talvez, em que as pessoas também se questionarão se a Lua e as estrelas existem — para isso basta que a terra venha a ser envolta em uma cobertura semipermanente de nuvens por algum cataclismo. Talvez haja nesse mesmo momento comunidades isoladas no interior que duvidem que o mar exista porque nunca puderam vê-lo a não ser na televisão.
A falta de conhecimento do mundo faz com que duvidemos de tudo aquilo que nos ensinam sobre ele. Em geral, medimos o mundo pela régua de nossa ignorância e somente os mais imaginativos conseguem conceber que a realidade continua a existir além do horizonte. O terraplanismo é a coisa mais parecida com materialismo que uma pessoa ignorante consegue conceber.
* Uma cidade que abrange todo um planeta.