Uma das coisas que parecem escapar aos escritores amadores brasileiros é que a língua portuguesa, nossa ferramenta de trabalho mais essencial, possui um caráter próprio. Fugir ao caráter da língua pode ser um objetivo interessante para um artista da palavra, mas ignorá-lo é apenas ignorância.
O grande problema que nos aflige enquanto cultura literária é que, desde há pelo menos cinquenta anos, por obra e graça da ditadura, a influência da literatura estrangeira — notoriamente da literatura comercial americana — se tornou prevalente. Nossos jovens crescem lendo obras escritas por estrangeiros, principalmente por norte-americanos ou, pelo menos, por autores anglófonos. Para além do problema da autoestima, criado pela dificuldade de se reconhecer em obras ambientadas em lugares distantes e cujos personagens têm nomes estrangeiros, há o problema da língua.
Repito que a língua portuguesa tem um caráter próprio, que é, inclusive, bastante diferente da língua inglesa. Sem entrar em jargão ou descer a minúcias, as duas línguas, de saída, apresentam modelos completamente incompatíveis de conjugação verbal e de colocação pronominal, empregam estratégias muito diferentes para o manuseio dos adjetivos e divergem significativamente na abundância e regularidade das flexões.
Quando um texto é traduzido, corre-se sempre o risco de contrabandear para a língua alvo alguma coisa da língua original. Tradutores inexperientes padecem mais, frequentemente cometendo calques, traduções preguiçosas que espelham a estrutura do original, sem respeitar a semântica. Tradutores bons adquirem a habilidade de expressar na língua alvo os conceitos do original sem precisar replicar estruturas gramaticais. Ambos os lados prejudicam a qualidade do trabalho quando exageram. Uma tradução excessivamente servil e cheia de calques fica sempre parecendo preguiçosa. Uma tradução muito ousada e focada na semântica vai se afastar demais do estilo do original e se torna tão “autoral” que pode até adquirir vida própria, como o recente caso de uma tradução islandesa de “Drácula”, de Bram Stoker, que introduz novos elementos na trama, retira capítulos inteiros, muda a interpretação de vários símbolos e hoje é considerada, no geral, como dotada de uma prosa melhor.
Entre uma tradução servil e uma “recontagem” fica o terreno pacífico da “tradução ideal”, que soa tão natural quanto um texto originalmente escrito na língua alvo, mas conserva o necessário estranhamento para que o leitor reconheça que o material pertence a outra cultura. Desta maneira, é aceitável substituir frases feitas por outras equivalentes, mas não é certo traduzir nomes…
Em todos os casos, quem lê uma tradução não tem o benefício da leitura do original e tampouco usufrui da plenitude dos recursos da língua alvo. Porque há muitos aspectos em que o inglês oferece mais possibilidades que o português, tornando a tradução imprecisa, mas há ainda mais casos em que é o português que oferece mais recursos. Um bom tradutor emprega esses recursos que nossa língua tem e consegue usá-los para melhorar o seu trabalho. Um mau tradutor não consegue ver onde as ferramentas gramaticais e semânticas do português caberiam e produz, então, um texto que fica limitado pelas insuficiências do inglês.
Isto é particularmente nocivo nas estruturas verbais, uma vez que o português se caracteriza por ser abundante e versátil na morfologia verbal e na conjugação das formas flexionadas enquanto o inglês é paupérrimo em flexões e em morfologia verbal, preferindo fazer uso de estruturas analíticas (isto é, paráfrases) para obter equivalência dos tempos verbais. Não chega a ser restrito como idiomas isentos da própria noção de tempo verbal — como o chinês, o malaio, o japonês e algumas línguas ameríndias — mas apresenta uma lógica verbal que não deixa de estar desconectada do português em quase todo aspecto.
Um dos principais sintomas de uma tradução servil, feita por um autor que não domina a gramática do português, é transcrever essas paráfrases sem se dar conta do sentido verbal que elas expressam. A longo prazo, gerações que cresceram lendo estas más traduções começam a naturalizar estruturas alienígenas e menos expressivas. Más traduções deseducam seus leitores.
Não existiria o gerundismo (“vou estar ligando de volta”) se os tradutores soubessem que esse futuro gerúndio do inglês (I’ll be calling back) indica uma ação que continua até um futuro próximo, diferente do futuro simples de I’ll call. Dizer I’ll call não cria compromisso. Vou ligar quando der, se calhar ligo dia trinta de fevereiro. Mas I’ll be calling back indica que eu não ligarei para mais ninguém enquanto não lhe ligar de volta, sugere que meu retorno ocorrerá pouquíssimo tempo depois de nos desligarmos porque a minha ação, a de ligar de volta, não se interrompeu, então não precisará reiniciar. Em alguns contextos, esse futuro gerúndio também indica uma ação iniciada e contínua no futuro, uma espécie de futuro imperfeito, noção que não existe no português. Na maioria dos casos, esse futuro imperfeito é, de fato, um futuro contínuo e isso pode ser expressado em português sem necessidade de gerúndio usando a mais simples das estruturas: o presente do indicativo, afinal, nada é mais contínuo do que uma ação presente. Eu ligo de volta é uma promessa mais segura do que eu vou estar ligando.
Este exemplo pitoresco do gerundismo serve para alertar para a necessidade de se atentar para as diferenças estruturais entre as duas línguas ao se traduzir, mas, também, para enxergarmos uma obviedade: se as línguas possuem diferenças estruturais profundas, não necessariamente os mesmos recursos estilísticos funcionarão em ambas. Tentar construir sua prosa a partir do entendimento de autores americanos e ingleses, por mais que eles sejam competentes no seu fazer, não o tornará um bom escritor em português, no máximo o tornará um fazedor de pastiches.
O que não quer dizer que não haja um excelente mercado para pastiches. Milhões de moscas não podem estar erradas: coma merda.
Na próxima semana eu detalho cinco conselhos estilísticos perversos que nós copiamos de autores americanos e ingleses.