Na semana passada eu comecei a falar sobre o problema de se adotar conselhos sobre estilo originalmente escritos pensando na estrutura gramatical e morfológica de uma língua diferente da nossa. Hoje ponho mais carne nesse argumento, citando os seis conselhos mais nefandos que eu já encontrei até hoje:
- Evitar a voz passiva;
- Economizar adjetivos;
- Evitar os advérbios;
- Show, Don’t Tell;
- Preferir palavras curtas.
A voz passiva soa estranha em inglês exatamente porque já são muito numerosos os tempos e modos verbais expressos através de paráfrases, isto torna o texto um tanto verboso por padrão. Desta maneira, qualquer estrutura que aumente a quantidade de palavras tem de ser usada com bastante parcimônia porque ela tende a tornar a leitura mais arrastada.
De fato o inglês é tão verboso que, embora as palavras em português tendam a ser bem mais longas, não é raro que um texto traduzido fique mais curto do que o original. Isto acontece porque há inúmeras estruturas verbosas que podem ser encurtadas: I’ll come back acaba sendo mais comprido do que “voltarei”. Inclusive na leitura.
É por esse motivo que os autores anglófonos e também os críticos literários tendem a idolatrar a simplicidade da voz ativa, especialmente quando ela pode ser empregada no presente ou no passado simples, porque pelo seu uso é possível obter uma estrutura direta.
A língua portuguesa tem uma relação difícil com os adjetivos porque ela exige concordância entre eles e os substantivos a que se referem. Somando-se isto à relação direta entre substantivo e adjetivo, é bastante complicado empilhar adjetivos, como é comum se fazer em inglês. Uma estrutura como a dirty new black crashed passenger car soa cômica e até distorcida quando tentamos traduzir, porque nosso cérebro rejeita a ideia de que se possa dizer de uma vez só que um carro é “de passeio”, que ele está acidentado, que é preto, que é novo e se encontra sujo. O que em inglês se faz em uma rajada de adjetivos, em português se faria, talvez, em mais de uma oração, substituindo alguns adjetivos por locuções. Em alguns casos nós ainda podemos recorrer à variação de posição do adjetivo para contornar a limitação da enumeração. Assim dizemos mais naturalmente “um novo carro preto” em vez de um “carro preto novo” porque quanto mais distante do substantivo se encontra o adjetivo, menos ligado a ele o sentimos. Neste exemplo, muita gente interpretaria “preto novo” como se “novo” fosse um adjetivo a modificar “preto” em vez de carro. Ainda mais que em português, diferente do inglês, os nomes das cores não são somente adjetivos, mas, também, substantivos, ainda que por derivação imprópria.
Aqui vemos que o conselho sobre economia de adjetivos precisa ser analisado com muita calma. Porque no original ele se refere a evitar esse empilhamento que é tão comum naquela língua. Não é uma proibição de se descrever usando adjetivos onde necessário, mas uma alerta quanto a se diluir o sentido da frase sob um monturo de adjetivos que perdem até a conexão com os seres a que se referem. Trata-se de um remédio contra uma doença que não existe no português — ou não existia antes que maus tradutores a introduzissem em nossos jovens.
Algo parecido se dá com o conselho quanto a advérbios. Em inglês esse conselho se refere basicamente aos advérbios produzidos a partir de adjetivos, por meio do sufixo -ly. Em português o sufixo equivalente é “-mente” e praticamente toda pessoa alfabetizada já meio que pressente o problema do abuso desses advérbios, eis que não há necessidade de aconselhar ninguém a evitar empregar mais de três desses advérbios por página (e empregar menos, se for possível).
Mas o conselho também se refere a uma flexibilidade que o inglês tem e que o português originalmente não tinha: a possibilidade de substituir advérbios por adjetivos. Trata-se de mudar come speedily para come soon. No primeiro caso temos um advérbio, derivado de speed (velocidade, rapidez), e no segundo um adjetivo que significa “súbito” ou “imediato”. A língua portuguesa vem adquirindo esta mesma função nos últimos séculos, mas a maioria dos gramáticos ainda acha errado dizer “venha rápido” em vez de “venha depressa”. O problema é que o português também possui muitos advérbios que faltam em inglês e que costumam ser bastante expressivos.
Uma outra aplicação da restrição de advérbios está em se evitar o uso de termos comuns, como very, little, many, etc. Trata-se, talvez, de um bom conselho, mas que em português tem pouco valor, porque nós já possuímos as flexões de adjetivo, como “rapidíssimo” para dizer “muito rápido”, e isso nos permite evitar esses advérbios de intensidade.
Show, Don’t Tell é um conselho que se baseia na ideia de que o leitor deve descobrir por si mesmo o significado da ação. Desta forma, o autor não deve interpretar os acontecimentos e nem contar sua versão dos fatos. Deve, em vez disso, narrar os fatos com distanciamento, permitindo que o leitor os entenda como quiser.
Este conselho é o mais problemático de todos, porque ele envolve uma ideologia. Para quem propaga esse conceito, a obra literária não deve ser de nenhuma maneira um veículo de ideias, mas somente um passatempo. Usar esse conceito para podar a interpretação do autor pode tornar o texto sem alma, vazio de ideias e frio. Talvez por isso ninguém segue estritamente esse conselho, afinal, é impossível que o narrador não interfira na narrativa. Aliás, é característica da narrativa moderna que justamente o autor quebre a “quarta parede” e interaja com o leitor.
Desta maneira, Show Don’t Tell é um conselho que, embora possa ser uma boa estratégia para nos lembrar de aliviar a carga de ideias no texto, deve se analisado com muita parcimônia, para evitar que a gente perca tempo descrevendo portas trancadas, cadeados nas janelas e muros altos quando poderíamos simplesmente dizer que o personagem vivia isolado em sua casa e com medo. O problema não é “contar em vez de mostrar”, mas fazer isso (ou o oposto) de uma maneira desinteressante.
Deixei para o final a questão da preferência por palavras curtas porque esse é o conselho mais pernicioso.
A língua inglesa padece de uma “dupla personalidade” por incluir duas tradições morfológicas discordantes. De um lado, o inglês é uma língua germânica que forma compostos através da justaposição e flexiona empregando umlaut (ainda que em inglês isto tenha quase se perdido e não tenha sido nunca chamado por esse nome). Do outro lado, é uma língua que importou mais de 50% de seu vocabulário do francês, do latim, do italiano e do espanhol — e de contrabando trouxe estruturas morfológicas, como o plural com “S” em vez do plural germânico.
As palavras “latinadas” também tendem a ser em média duas vezes mais longas que as palavras germânicas, quando não são ainda mais. Pegue qualquer par de termos sinônimos e compare o termo germânico ao latinado e verifique isso: water fowl e aquatic birds são quase a mesma coisa, assim como wood carver e carpenter, fiddler e violinist, dancer e ballerina, spin e rotate, lich e corpse, duck e mallard.
Devido a esse caráter duplo, a preferência por palavras curtas tende a equivaler a uma preferência por palavras germânicas, que têm mais longa história e são mais conhecidas, resultando em um texto mais acessível; enquanto a preferência por palavras longas tende a escolher mais neologismos e termos técnicos, fazendo o texto soar pretensioso.
Esse problema não existe em português.
Estes dois artigos foram só dois arranhões no problema da inadequação das dicas de escrita quando adaptadas e ou adotadas a partir de conselhos dados por quem escreve em língua diversa da nossa.
Seria propício se a gente repensasse nossa escrita em nossos próprios termos, buscando o que serve ao caráter de nossa língua. Seria ainda melhor se não julgássemos nossos autores pela sua capacidade de imitar conteúdos e estilos estrangeiros.