Um humorista, não me lembro se britânico ou americano, certa vez definiu “colonização” como o processo através do qual um povo “insere” dentro de outro algo, que pode ser uma comunidade imigrante, uma indústria multinacional, um regime de governo ou outra coisa, e o faz de forma tão profunda que o povo “colonizado” passa a levar aquilo dentro de si, imperceptivelmente. À parte o caráter escatológico e sexual desta metáfora, ela serve bem para mostrar como, em pequenos gestos, as pessoas vitimadas pelo lento e quase imperceptível processo da colonização se tornam incapazes de perceber que se tornaram parte dele, também elas reforçando os mecanismos de dominação. Marx teria dito que estas pessoas, por estarem alienadas de seu papel na sociedade, não conseguem perceber como o seu papel na sociedade passou a ser utilizado por outras forças, sem o seu conhecimento e até de uma forma que elas não aprovariam se soubessem.
Neste blogue tenho frequentemente batalhado por migalhas de uma identidade brasileira, criticando subserviência desnecessária ou imitação sem sentido. Mesmo estas migalhas que eu aponto geram reações inamistosas. As pessoas não gostam que digam que foram “colonizadas”. Reagem, negam, agridem, tentam suprimir. Se possível, ignoram. Em geral, mesmo os meus leitores mais esclarecidos, me acham um paranoico Talvez eu até seja. Mas mesmo um paranoico às vezes tem mesmo alguém atrás de si.
Hoje faço isso mais uma vez, pronto a ser chamado de diversos adjetivos. Quanto mais profunda a inserção do conteúdo estranho, quanto mais “colonizada” a mentalidade do indivíduo, maior seu empenho em negar. O viciado jura que cada gole poderia ser o último se ele quisesse que fosse. O colonizado jura que macaqueia a metrópole porque escolheu esse caminho por algum motivo.
Refiro-me ao capitão da seleção brasileira de futebol de salão que, ao voltar à sua cidade como herói do heptacampeonato mundial do esporte, apareceu no aeroporto trajando um uniforme da seleção estadunidense de pólo, com a bandeira ianque figurando proeminentemente e com as indefectíveis letras “U S A” pontificando acima desta. Ele já não é tão jovem para que digam que foi imaturidade, algo que o tempo supostamente conserta, mas certamente é inocente de uma forma lhe impede de ver além do imediato: ele sofre, como a maioria dos brasileiros, de uma profunda alienação em relação a seu papel no sistema de coisas. Não fosse alienado, ou estivesse assessorado por alguém que não seja, ele não teria usado, em momento tão importante de sua vida, uma camisa que glorifica um obscuro esporte praticado em outro país. Ao colocar aquela camisa sem pensar, o capitão de nosso escrete campeão passou subliminarmente a mensagem de que ele, o vencedor, idolatra, na verdade, um esporte e um país estrangeiros.
Dirão que foi humildade. Digo que foi só ignorância. As duas são muito parecidas na forma, diferem no conteúdo. O humilde recusa homenagens imerecidas, ou as transfere ao grupo. Um capitão humilde não teria desfilado em carro aberto com a taça, como ele fez, visto que esta pertence a ele tanto quanto a todos os demais integrantes do time. O ignorante comete erros que muitas vezes coincidem com as posturas dos humildes. O capitão, ignorando o simbolismo e o significado de sua própria conquista, maculou-a com uma demonstração de colonização cultural, ao usar aquela camisa.
Sim, eu sei que vocês não concordam. A maioria de vocês, mesmo não usando uma camisa como aquela, usaria outra camisa aleatória que poderia coincidir com alguma outra coisa que alguém criticasse. A maioria de vocês não teria a “sacada” de que o desembarque de um campeão é um momento para a história, que precisa ser planejado e que precisa receber um significado.
Esta é uma diferença importante entre nossos campeões e os dos outros. Nossos campeões adoram posar de super homens, reclamando das condições que enfrentaram, mesmo quando tiveram apoios importantes. O simples fato de eles viverem no Brasil já significa que não têm e nem poderiam ter condições semelhantes às dos atletas de países desenvolvidos. Então esta reclamação nem sempre é justa. Mas o que o capitão da seleção de futsal fez foi, para mim, um pouco pior: ele encarou sua conquista como algo que lhe pertence, pessoalmente. Por isso não planejou seu retorno triunfal, vestiu-se de qualquer jeito, com uma camisa que uma figura pública como ele nem deveria ter, e deixou-se fotografar para um momento que pode ficar na história usando uma camisa que alude à nação hegemônica do mundo.
Ficou feio para ele. E não espero que vocês concordem comigo. Afinal, vocês não acharam feio. Só lamento que tantas pessoas tolerem a insidiosa colonização a que somos submetidos.