Quando eu era estudante, deparei-me certa vez com uma trova portuguesa, cuja autoria se perdeu nas trevas, que dizia o seguinte: “o tempo não me dá tempo/ de bem do tempo fruir / e nessa falta de tempo / não vejo o tempo fluir”. Como sempre ocorre quando nos deparamos com verdades que ainda estamos verdes para comer, demorei trinta anos para começar a digerir estes quatro versos singelos.
A tristeza do escritor é a de não ter tempo para escrever, não poder desenvolver as ideias que fervem na sua mente, e ao mesmo tempo não perceber que o tempo inexoravelmente se esgota, sem que a obra prima seja completa, o reconhecimento venha e torne-se possível a fruição da vida segundo o sonho. Mas não se limita a isso a tal tristeza. Gradualmente percebemos que não nos sobra tampouco o tempo para fruir de coisas que apenas nos dariam prazer. É como se o mundo em torno de nós conspire sempre contra o prazer e o ócio, que são a essência da atividade literária.
Entre os prazeres citados está o da descoberta. Contrariamente ao que pensam muitos jovens que acham que são escritores só porque escrevem, há no escritor um prazer de achar o novo. Qualquer novidade sempre representa uma oportunidade para aprender o ainda ignorado, para aperfeiçoar algo que ainda é incipiente, para superar o que já deveria estar esquecido. A descoberta é um processo que pode ser longo: muitos autores preferem investir décadas descobrindo antes de começarem a escrever, mas há outros que fazem dela uma ferramenta de progresso depos que já começaram, e há os que a temem porque toda descoberta ameaça um preconceito.
Não sou melhor do que ninguém (de fato sou até pior que muitos), mas amo este prazer pequeno de me deparar com coisas diferentes. Muitas foram as vezes em que eu paralisei a minha vida por horas, ou até dias, embevecido na contemplação de novidades, algumas até singelas. Lembro-me de maratonas de leitura de autores novos, em que mergulhava em universos alheios e esquecia até mesmo a hora do almoço. Foi assim que li Stanislaw Lem, Philip K. Dick, João Guimarães Rosa, José Cândido de Carvalho, Robert A. Heinlein, José Lins do Rego, Manuel Antônio de Almeida, Eça de Queirós, Joaquim Manuel de Macedo, Lima Barreto, H. P. Lovecraft e Nikolai Gógol. Lembro-me de filmes que me deixaram em verdadeiro estado catatônico: RoboCop, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Persépolis, Bonitinha mas Ordinária, Stalker.
Mas o tempo, que não me dá tempo de bem dele fruir, tem cada vez conspirado mais contra esses pequenos prazeres educativos. Trabalhando agora de oito às dezoito, de segunda à sexta-feira, sobra-me pouco estômago, aos quarenta e um anos, para digerir a montanha de novidades interessantes com que o mundo me cumprimenta todos os dias. Nessa situação, é natural que se comece a escolher com cautela. Em vez de me atirar nos braços de toda notícia, tento adivinhar, sei lá como, quais merecem minutos de meu escasso tempo. É uma escolha arriscada, mais baseada em preconceito ou achismo do que em método. Muitas vezes a escolhe é feita com base na reputação do amigo que indica, mas o amigo pode ter indicado por causa de outro amigo, que eu não conheço, e o resultado é que, de fato, eu estou apenas limitando minha exposição ao novo, mas sem nenhum parâmetro.
Ontem tive a percepção exata da crueldade disto quando, num momento de pura falta do que fazer, sob o império de uma densa preguiça mental, resolvi clicar num link oferecido por um amigo que tem por hábito me indicar coisas insanas que nem sempre me agradam. Da última vez que cliquei num link dele eu vi um [videoclipe](http://www.youtube.com/watch?v=bjjuc5v5RoQ) de música dançante em desenho animado, envolvendo um cavaleiro inglês, uma camponesa, lambidas em um cavalo e uma música chiclete difícil de tolerar. Mas este clipe era diferente.
A começar pelo título “Monty Cantsin – I Believe in Neoism”, parte de um álbum intitulado “Ahora Neoismus”. A imagem de capa sugerindo vagamente o realismo socialista, de uma forma aliás análoga à do “Little Red Record” (Pequena Gravação Vermelha, álbum lançado pelo grupo progressivo inglês Matching Mole em 1973). Por incrível que pareça eu, um razoável conhecedor da iconografia socialista e dotado de alguma noção dos movimentos vanguardistas do início do século passado, não dei atenção inicial ao compartilhamento de meu amigo.
É evidente nos dois casos o tom de sátira a ícones da cultura esquerdista pop. A influência óbvia do “Little Red Record” (título que em si satiriza o “Livrinho Vermelho”, de Mao Tse Tung) é o realismo socialista stalinista, mas Monty Cantsin parece misturar um pouco disso, via iconografia norte coreana, com doses de visual otaku e k-pop. Não tenho uma cultura visual suficiente para decodificar todas as referências, e espero que nos comentários os meus leitores me ajudem a esclarecer melhor.
Quando finalmente topei clicar no link, espantei-me ao ouvir uma longa série de aplausos, com um efeito de eco, como se estivesse em um estádio, depois, adicionou-se sobre ela uma espécie de discurso que parecia político, que soava como Hitler em Nuremberg, ou como Stálin falando pelo rádio, ou Getúlio Vargas. Um discurso político antiquado na entonação, mas estranhamente incongruente em seu conteúdo, que é difícil de traduzir justamente por ser vazio de todo conteúdo, como um poema dadaísta, ou um discurso populista de governo totalitário, que começa parecendo ter algum sentido, mas vai derretendo a cada frase, até se transformar em uma balbúrdia ridícula.
> People, here I am standing in front of you and standing with
> you, people. You are part of me, and I’m telling you to this
> day: without me life has no meaning and I’m the best friend
> you’ll ever have. I’ve come to touch myself: No! No! No!
> I’ll never touch myself […] Do you want to know what time is
> it? No! What time is it? I am surprised now to hear this
> question. What time is it? Can you tell me what time is it?
> Have you the time? Tell me, ‘cos I never watch that clock.
> Time is a “figmention.” I never watch that clock, but I can
> tell you what time is it because there is only one important
> time in our lives. Six o’clock. Yes, in our land is always
> six o’clock. It’s six o’clock sharp. Six o’clock is
> happiness. Six o’clock means love, joy. Six o’clock is total
> freedom. Six o’clock is when you do what you like. Ahora
> neoismus. Ahora neoismus. You don’t need the clock, you
> don’t need your watch …
Quando terminei de ouvir a faixa eu estava mudado. Sob a capa de aparente imbecilidade parece haver pulsando algo que faz sentido. Estava determinado a descobrir mais sobre Monty Cantsin e o neoísmo, seja lá o que isso for. E esta busca ocupou o resto do meu sábado e um pedaço do meu domingo. Uma descoberta nova, coisa que raramente acontece comigo nesta fase vazia da minha vida. É uma pena que eu não tenha muito tempo para aprender mais, que os frutos do tempo estejam passados e eu não tenha conseguido tudo o que queria. A morte da escrita é a falta de tempo. Se ele falta, falta a vida, falta a descoberta, e sobre o nada não se escreve nada que mereça ser lido.