Esta semana, entre tantos acontecimentos escabrosos merecedores de meu espanto, me marcou mais por um acontecimento que parecia um final feliz, mas foi mais chocante que muita execução: refiro-me à libertação do ator e representante comercial Vinícius Romão.
Assisti a sua entrevista após libertado e fiquei profundamente chocado com a transformação por ele sofrida no processo, transformação reveladora de muitas coisas que a TV não diz, para tentar lhe convencer que existem finais felizes. A transformação a que me refiro não é exclusivamente física, se bem que seja fisicamente visível. Veja-a por si mesmo.
A comparação entre as duas imagens (antes de ser preso e depois de solto) é tão eloquente que praticamente não é necessário dizer coisa alguma. Mas como há pessoas no mundo que não conseguem ter empatia, tentarei explicar as minhas impressões, para o benefício dos que sofrem de tal deficiência.
Depois de quinze dias no sistema penitenciário carioca, até se provar, finalmente, que a sua prisão fora um engano, este foi o Vinícius Romão que saiu:
Antes de ser preso, Vinícius era uma pessoa normal e ingênua (aqui emprego o termo no seu sentido mais profundo e original, o de quem nasceu livre e jamais esteve submetido à servidão). Sua foto exibe um sorriso largo, expressão da vida feliz que levava, uma vasta cabeleira afro, distintivo do orgulho de sua cor, em um mundo onde o negro ainda não é aceito plenamente. A exibição do uniforme do Flamengo é um distintivo ingênuo de cidadania: uma torcida é uma instância cívica na qual todos estão igualados. O Vinícius de antes da prisão é um homem negro que se julga plenamente inserido na sociedade e apto para sobreviver nela, apesar de algum desconforto ocasional.
Mas então lhe sobrevém a absurda prisão. Apesar de vestido com roupa diferente (conforme evidenciado pelas imagens das câmeras de segurança) ele é identificado como o autor de um roubo, embora esteja desarmado e não traga consigo o que foi subtraído à vítima. A polícia não investiga, apenas o despeja numa cela, sem dar-lhe chance de defesa. A justiça não o ouve, apenas avaliza o justiçamento prévio praticado pelos gendarmes. Quinze dias ele permanece na prisão, apesar da vítima já ter se dado conta do engano (ela supostamente leva quinze dias a conseguir dinheiro para uma passagem de ônibus até a delegacia para retratar-se da acusação). Na certa ela imaginou, no começo, quando o caso ainda não federa nas redes sociais, que Vinícius, se não fosse culpado de seu roubo específico, teria de ser culpado de algum outro, pois negros só andam à noite pela rua pensando em roubar.
Se Vinícius não fosse ator de televisão e uma subcelebridade, amigo de pessoas famosas e algumas delas influentes, ele seria deixado na cela de uma cadeia de subúrbio, junto com outros quinze homens, alguns deles, como ele mesmo disse na entrevista, tão injustiçados quanto ele próprio. Mas Vinícius deu sorte de ter trabalhado na televisão e ter feito os amigos certos. Isto o salvou de ser esquecido no lixo como um Jean Valjean tupiniquim.
Então, graças ao movimento iniciado por seus amigos, e viralizado pela sua vaga conexão com a televisão, Vinícius é libertado e agora está a caminho de ser absolvido de uma acusação que sequer deveria ter sido feita.
Quando ele sai da prisão, vemos no seu rosto as marcas brutalizantes da experiência por que passou, e que ele provavelmente negará ter passado. O cabelo afro foi raspado descuidadamente a máquina, deixando tufos irregulares como o daqueles pobres haitianos e africanos que a gente vê nas tragédias. Está mais magro, o rosto ficou macilento, a pele adquiriu uma estranha palidez (sim, negros empalidecem). Mas a maior mudança está em seu olhar. Reparem na diferença do olhar do Vinícius livre, ingênuo (repito que a palavra aqui está usada no sentido primitivo, romano) para o olhar do Vinícius liberto. Há uma diferença abissal entre ser livre e ser liberto.
O olhar do Vinícius liberto contém séculos de sofrimento e enigma. É o olhar de um Sansão barbeado. É o mesmo olhar vidrado dos marginalizados que sofrem pelas ruas e que, às vezes, nos incomodam com a sua existência. O primeiro Vinícius era um cara com quem você tranquilamente tomaria um chope depois do trabalho, falando dos gols do mengão (eu não sou flamenguista, mas alguns de meus leitores são, então está valendo o contexto). Mas o segundo é um cara que, se você o vê na rua, ainda mais assim vestido, você pensa em atravessar, engole em seco se não puder pelo menos se afastar, tenta se lembrar em quais bolsos distribuiu o dinheiro etc.
Tudo o que foi preciso para transformar o primeiro Vinícius no segundo foi uma prisão arbitrária, quinze dias de humilhações em um sistema penitenciário que não é feito para o bem da sociedade, mas para algum tipo de punição medieval e ineficaz. Tudo o que foi preciso foi botar esse negro em seu lugar. Subitamente, Vinícius, o homem livre, percebe que a sociedade o trata apenas como um “liberto”, alguém que não é originariamente detentor de direitos, mas que os adquiriu condicionadamente. Vinícius enxergou onde a sociedade acha que é o seu lugar. Ver-se nessa posição é o que mudou o olhar de Vinícius.
Não, eu não espero que Vinícius jamais admita a verdade de qualquer frase que eu disse. Eu não sou negro, eu não pretendo entender a dor dos negros mais do que eles mesmos. Mas eu tenho empatia. Eu me pus na pele dele. Eu já sofri injustiças. Eu já vi pessoas que eu amo sofrerem injustiças. Eu posso calcular o impacto que a injustiça exerce sobre a mente do cidadão que se crê livre em uma sociedade livre. Eu compreendi a diferença entre ser livre e ser liberto.
Mas eu espero que você que me lê reflita sobre o tipo de sociedade que prende um homem mediante uma acusação isolada, que o submete nesse ínterim a um processo de desumanização que o emagrece, empalidece e embrutece. E espero que você se pergunte qual é a circunstância específica que transforma um jovem comum e inocente (de péssimo gosto, vá lá, por ser flamenguista, mas isso não é crime, embora devesse ser…) em uma pessoa que merece ser presa e só pode ser libertada após uma mobilização pública de milhares de pessoas. Uma pessoa o pôs na cadeia, foram necessárias milhares para tirá-lo.
E eu não quero nem pensar no que teria acontecido se a mulher o tivesse acusado também de agressão sexual.
Esse texto está muito bom. Quando eu soube desse caso, eu também sofri intensa indignação. Uma das piores coisas da vida é ser acusado injustamente, seja do que for.
Acredito que dê pra entender a verdade sua, mesmo você não sendo negro. Falar da dor do outro é como falar da nossa dor, pois todos somos humanos. A dor de todos os humanos é compartilhada, e só um ser totalmente desprovido de empatia deixaria de entender isso. Portanto, posso não ser o outro, mas falar de sua dor, eu falo, pq eu e o outro estamos no mesmo barco.