Eu tinha meros vinte e dois anos quando adquiri de um vendedor ambulante, em visita à faculdade onde cursava História, um exemplar da «Obra Poética» de Fernando Pessoa, publicada pela Aguilar. Na época achei caro, demorei a compreender que havia comprado um dos tesouros mais valiosos que possuo. A edição é cuidadosa, acompanhada de biografia com fotos e de extensos comentários. Tudo muito dispensável, claro, quando você entra no que interessa, que é a poesia. Sempre que ouço um babaca falar alguma coisa contra a poesia eu respiro fundo, rememoro algumas das tiradas fantásticas do poeta português e me asseguro da constatação inicial: «é um babaca mesmo». Ainda que haja muitos péssimos poetas pelo mundo, a manchar o bom nome da poesia, alguns, como Pessoa, parecem produzir com seus versos um efeito sanitário que arranca o limo de mediocridade que afeta o resto. Só depois dos trinta anos fui entender Fernando Pessoa. Só quando doeu.
O poema que me convenceu da absoluta e inquestionável genialidade do autor não é nenhum dos famosos. Não me identifico no nacionalismo místico de «Mensagem», detesto boa parte dos heterônimos (ainda que alguns poemas de Álvaro de Campos me agradem muito) e compreendo que muito do que está na Obra Poética são rascunhos que o autor dificilmente teria escolhido publicar. Mas este poema, «Hora Absurda», escrito em 1913, quando Pessoa tinha meros vinte e cinco anos e ainda tinha certo flerte com o simbolismo, foi como o murro na cara que nos acorda para a realidade da luta. Muitos de seus versos são fracos, mas a força da maioria deles é tanta que quase rasga o papel. Em um poema de apenas vinte e cinco quadras de versos bárbaros podem ser achadas pelo menos oito trechos que nenhum poeta brasileiro vivo seria capaz de igualar. O poeta nos atinge com simplicidade: «Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro» ou complexidade: «A doida partiu todos os candelabros glabros,/ sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas…/ E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros… E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?…» Como não ser aceso pela sugestão de que «Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente»?, Esta sensação de ausência chega à perfeição absoluta quando o poeta diz: «Ah, deixa que eu te ignore… O teu silêncio é um leque — / Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,/ Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque.» Como qualificar a beleza maior que existe no leque fechado, potencial, face à decepção de o leque aberto não ser à altura da expectativa construída? Existe camadas e camadas de sentido que escapam nas primeiras leituras. Precisei ler o poema mais de seis vezes ao longo da vida para entender que a singela frase «É preciso destruir o propósito de todas as pontes» possui mais sentido do que parece: se pontes existem para unir o que está separado, destruir o propósito delas consiste em acabar com todas as separações. Em um mundo onde ninguém estivesse separado não haveria necessidade de pontes. A mais bela das utopias é que as pontes fossem desnecessárias. Não somente as materiais, mas principalmente as metafóricas. Tal como o poeta eu lamento: «Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!…» Sim, confesso: amo paisagens e pessoas que não existem, amo as que já existiram, mas não as diferencio das que são somente criações e crenças de minha mente insatisfeita com as paisagens que existem, essas que todos veem e que tantos amam. Esses que, como Pessoa e eu, amam as paisagens que não existem, acabam confessando-se: «Eu sou um doido que estranha a própria alma» (e como, às vezes, ela e eu nos estranhamos). A única diferença é que, ao contrário de Pessoa que, cônscio de sua própria genialidade, previa num futuro pretérito que teria o reconhecimento que a vida lhe negava, eu jamais poderia dizer que «fui amado em efígie num país para além dos sonhos». Ou será, melhor, que Pessoa ao dizer isto sugeria que somente em um lugar ainda mais profundo e longe que o próprio sonho haveria de encontrar o reconhecimento?
Somente a leitura de «Hora Absurda» me gastou quatro horas nestes dias. Este é um daqueles textos que não vale a pena ler com pressa. Quem vive com pressa, e depressa, não pode seguir o conselho mágico: «Vive o momento com saudade dele já ao vivê-lo…» Mesmo o poeta, porém, em outro momento, reconheceu que esta contemplação é perigosa. Ao aproximar-se da famosa ribeira do rio, musicado por Danilo Caymmi e gravado por Maria Betânia, o poeta percebe que a vida, o rio, tem por maior propósito justamente engambelar-nos: «Porque o bem dele é que faça / Eu não ver que vai passando.» Passei anos de minha vida sem perceber que o rio estava realmente passando. Por isso só entendi este poema aos trinta e nove anos.
Cada dia acho um tesouro diferente. Para além dos famosos poemas que todo mundo conhece. Tardei quase vinte anos para saber o que seriam as «calhas de roda» nas quais o coração, esse «comboio de corda» chamado coração gira a entreter a razão. Aos poucos percebo as sutilezas do vocabulário tipicamente português (muitas vezes mais belo que o nosso, tão afrancesado e anglicizado). As calhas de roda (trilhos) por onde gira sem destino o comboio (trenzinho) de corda chamado coração são semelhantes ao rio, que passa a tentar nos fazer ignorar sua passagem.
E assim, enquanto leio o poeta, enquanto amo lugares que não existem, enquanto lembro tempo em que comemoravam o dia dos meus anos etc., tal como ele me perguntei em certa época «porque fiz eu dos sonhos a minha única vida. » Depois eu achei que tinha saído dos sonhos e suas brumas e construído uma vida real onde habitar. Terminada esta tarefa, descobri que andara atrás do alvo errado: nem eu nem pessoa vivíamos de sonho pela falta de uma vida de carne onde habitar. Segue verdade, na vida e no verso, que por mais vida que tenhamos, resta-nos um «Rosebud» que ninguém conhece, habitando no fundo de um sonho, que é o único lugar onde nunca erramos, onde realizamos todos os nossos planos importantes, e onde podemos passar a limpo todos os maus passos. Quando compreendi isso, compreendi junto que os sonhos eram a única vida do poeta simplesmente porque os sonhos são o único lugar onde o ser humano realmente vivo: fora deles cada um de nós é um animal a reproduzir-se e comer. Ou, como famosamente disse o poeta: «cadáver adiado que procria».