Compartilharam no Facebook o conselho dado por dois autores americanos (de que nunca ouvi falar) segundo o qual devemos perder o medo de escrever sobre “what we don’t know”. Os demônios da tradução criaram a ambiguidade entre “saber” e “conhecer” e assim surgiu um ótimo tema para debate. Em inglês tal conversa seria impossível, pois os dois verbos se amalgamam em um único. Mas em português há uma rica semântica na oposição deles, e podemos tergiversar sobre o proveito de escrever sobre o que não conhecemos ou o que não sabemos.
> O desencanto é uma forma besta de liberdade, mas como é eficaz!
> Anônimo mineiro
Sabendo que o conselho, de toda forma, seria irrelevante para autores brasileiros, não só pela citada ambiguidade, mas também porque entre nós o difícil é convencer os jovens a escreverem (e lerem) sobre sua realidade imediata, resolvi fazer uma simples ironia na postagem. Mal sabia que resultaria num bate boca virtual que inclui muita deselegância de parte a parte, inclusive minha, que não sou santo quanto estou dado a polemizar. Minha observação foi:
> Na verdade é ótimo que os jovens autores sejam estimulados a escrever sobre lugares e temas que não dominam. Significa que a maior parte do que vão escrever será ruim pacas. Fica menos concorrida a fila para quem conseguir passar por entre a floresta de “conselhos” e buscar o seu caminho.
Eu não concordo exatamente com isso, porque é péssimo que a literatura seja dominada por obras ruins, mas é uma realidade, ainda que eu deteste. Tampouco é válido supor que no meio da mediocridade os que consigam se sobressair terão um lugar ao sol. O que sabemos da vida é que a mediocridade impõe um padrão e que, portanto, muito ótimo autor terá que se passar por apenas “bom” para poder ser aceito, como o profissional pós-graduado que cria um currículo “emagrecido” para, no desespero do desemprego, poder obter uma vaga para a qual está superqualificado. Não concordo mas disse, porque o tópico andava morto e o fantasma de Nero estava soprando coisas na minha orelha. Fui lá catar uma lira imaginária e postei isso.
Como ainda não haviam respondido, achei que não tinham entendido. Resolvi então esclarecer. No [artigo linkado](http://www.nytimes.com/2014/03/30/books/review/write-what-you-know-helpful-advice-or-idle-cliche.html) os autores eram bem claros em discernir que não estavam aconselhando ninguém a escrever sobre o que não domina:
> Você pode minerar sua vida, sim. Mas também pode observar atentamente as experiências de outras pessoas. Pode ler e pesquisar. E pode usar sua imaginação. O que os bons autores sabem sobre os seus temas é normalmente extraído de uma combinação destas fontes.
> Zoë Heller
> Pode ser que o DNA da ficção, como o nosso próprio, seja uma hélice dupla, um animal de duas cabeças. Um filamento nasce do que os autores experimentaram. O outro nasce do que os autores gostariam de experimentar, do impulso de escrever para conhecer.
> Mohsin Hamid
Não há nada de novo nesses conselhos. O que há de novo é um título sensacionalista: *”Escreva Sobre o que Conhece/Sabe” — Um Conselho Útil ou um Clichê Preguiçoso?* Pela lei do menor esforço todos os leitores apressados interpretariam que é um clichê preguiçoso (em títulos, o último item é sempre favorecido subconscientemente).
Sabendo, então, que os autores não propunham nada de novo a não ser uma explicação do célebre conselho, postei que:
> Esta parte do “pesquise e tente conhecer” é a que falta na maioria. A maioria dos jovens autores alimenta o sonho de ser escritor sem ter que ler muito, ou pelo menos, tendo que ler apenas o que lhe interessa de forma mais imediata.
Aí, finalmente, minha provocação foi notada. Surgiu uma resposta irada. Engraçado como a ironia produz a ira em vez do riso. No calor da discussão, eu acabei reexplicando várias das coisas que estavam ditas no texto, mas que não teriam sido lidas por alguns que liam o tópico e as minhas conclusões finais ficaram tão bacanas, em minha inadequada opinião, que resolvi fazer este artigo.
É verdade que só conseguimos escrever bem sobre o que conhecemos. Alguns autores têm a ilusão de que “inventam” mundos, mas tais mundos inventados nada são além de versões repaginados do mundo que conheceram. Boa parte da ficção científica americana ecoa temas de faroeste, por exemplo, ou da Guerra Fria. Transformar os bisões em monstros alienígenas e os índios em civilizações interplanetárias não muda a dinâmica da história. Então, é necessário que sob a capa de “outro mundo” e “outro tempo” (ou de “há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante”, se preferir) exista uma experiência humana real para se escrever sobre, ou seus personagens serão bonecas de plástico em um cenário de castelinho, encenando batalhas de mentirinha.
Certas informações podem ser supridas pela pesquisa. Você facilmente saberá a cor do uniforme do Exército Brasileiro na Guerra do Paraguai, por exemplo, mas o drama de estar em um campo de batalha a milhares de quilômetros de casa, lutando uma guerra genocida em um terreno insalubre e comendo péssima comida, isso não são muitos os que conseguirão alcançar. Talvez não seja preciso ter combatido uma guerra específica para escrever sobre ela, mas algum tipo de experiência análoga é imprescindível: um acampamento, uma caminhada, uma briga de gangue, uma fuga da polícia, seja lá o que for. Mas se você transformar os paraguaios em andromedanos e travar sua guerra em Omicron Persei 4, poderá prescindir de saber a cor real dos uniformes (pois poderá inventá-los), mas não poderá prescindir da noção humana real de estar em um conflito.
Um autor consegue perfeitamente imaginar lugares e situações que não viveu, extrapolando a partir do que viveu. Mas se os seus leitores foram aos lugares mencionados e às situações descritas, o autor perde credibilidade. Por exemplo, um americano escreve um romance ambientado no Rio de Janeiro, com personagens que falam espanhol, encontram onças nos subúrbios e passam por pontos turísticos que ficam em outras cidades brasileiras. Por mais que o autor tenha uma ótima história, seus leitores brasileiros não vão levá-lo à sério, e logo isso vai se espalhar pelo mundo. Mas se vai escrever sobre um lugar ou uma situação inventados, onde ninguém nunca foi ou que ninguém viveu, aí tudo bem. Os detalhes fáceis poderão ser todos inventados, restará apenas a tarefa de humanizar seus personagens, para que não pareçam bonecas de plástico.
Um bom exemplo de como isso pode ser feito é a obra “O Iluminado”, de Stephen King. Não imagino que Stephen King tenha se trancado com a família em um hotel mal-assombrado do Colorado para viver a história de Jack Torrance, escritor como ele, mas sabemos de várias coisas a respeito de King que nos explicam como ele criou o contexto do livro:
1. Stephen King é americano,
2. Fala inglês.
3. Já havia estado no Colorado.
4. Neva muito no Colorado.
5. Nevascas costumam isolar cidades inteiras.
6. Pessoas isoladas contam histórias para distrair.
7. Sempre tem um mala que conta histórias de terror.
8. Sempre tem outro mala que diz que conhecia a história.
9. Certos hotéis do Colorado são considerados mal-assombrados.
10. Em todo hotel já morreu alguém. Em hotéis centenários pode-se dizer que já morreu pelo menos uma pessoa em cada quarto.
11. Ficar isolado num lugar nevado deve ser aterrorizante pacas.
Não é preciso ser gênio para inferir de onde saiu a história do Hotel Overlook, e nem para entender a razão de sua força literária (talvez seja o melhor romance do King). Obviamente não acho que o autor precise matar alguém para escrever sobre um assassinato, mas que só pode escrever com “força” sobre a morte aquele que conviveu com ela de perto.
O mesmo pode ser dito sobre o que é considerado o melhor romance de Hemingway, “O Velho e o Mar”. Hemingway viveu vários anos em Cuba, no fim da vida. Até comprou casa lá. Sabia falar espanhol desde a época da Guerra Civil Espanhola. Fez amizade com pescadores, ouviu suas histórias. Não pescou o peixe, mas ouviu histórias de quem pescou. Isso lhe deu proximidade com o tema. Isso lhe deu autoridade para escolher as palavras certas.
O que não acontece com quem escreve sobre o que não conhece. A história fica distante, fria, artificial. Bonecos de plástico em um castelinho de brinquedo.
Mas, de fato, antes mesmo de chegarmos a esse nível mais visceral, temos o problema da ambientação. Há quem acredite que se possa escrever um romance ambientado nos Estados Unidos usando exclusivamente como referência os romances lidos e os filmes vistos na televisão. Engraçado que nem mesmo os escritores americanos fazem isso. Deveríamos estar cansados de ver nos filmes como escritores se mudam para cidades distantes para aprender sobre elas e ambientar histórias lá. Dia desses mesmo assisti um filme assim, chamado “A Entidade”.
Nunca ter ido a um país e escrever sobre lá é algo que funcionava nos séculos passados, quando as pessoas pouco viajavam e versões fantasiosas não se distinguiam da realidade. Bastava ambientar uma história num “país distante” para ganhar certa liberdade com a censura. Hoje em dia há muita gente que viaja (e são os que mais leem, cuidado!) e eles podem facilmente rir de você por sua ignorância sobre um país que eles conhecem. Eu procuro evitar isso. Já há motivos demais para os outros não gostarem do escrevo.
Infelizmente, minhas ideias não têm legitimidade porque eu ainda sou um desconhecido (e não tenho saco para minerar dois ou três autores famosos que concordem comigo). De fato, eu não acho que isso seja relevante: o sucesso não vem para quem segue conselhos, mas para quem alcança objetivos. Se os conselhos servem, isso só pode ser decidido por quem os segue.
“Se conselho fosse bom, ninguém dava, vendia”. A frase continua válida, e continua cabendo a quem recebe o conselho avaliar se é bom ou não. Quem dá o conselho sempre acha que é ótimo. Eu apenas tenho a humildade de dizer que meus conselhos não são bons, mesmo porque eles só me trouxeram até onde cheguei. Mas o Facebook está cheio de autores de best-sellers e roteiros de Hollywood, capazes de dar conselhos muito melhores que os meus.
Os conselhos que eu dou servem para quem pensa como eu, ou gosta do que escrevo. Ou servem para que os que pensam diferente tenham um contraponto para criticar. Não me incomoda se discordam de mim, eu até me faço de advogado do diabo, às vezes, já aprendi que nesse negócio de literatura, se você se deixa bitolar demais e segue todas as etiquetas você acaba um sujeito careta que escreve coisas segundo encomendas (explícitas, do editor, ou implícitas, “do mercado”) e não se realiza no que faz. Eu penso é nesta realização pessoal. Gosto de ter orgulho do que faço. Mesmo que os outros não gostem. Hoje entendo gente que se tornou detestada por amor da autenticidade. É duro querer ser autêntico sem ser um poeta laureado.