A pizza é um alimento dos deuses. Não digo isto porque seja excepcionalmente deliciosa, mas porque são necessários atributos (e equipamentos) verdadeiramente divinos para prepará-la. Equipamentos que só existem em templos sagrados onde vermelho e verde combinam. Tentar organizar um culto doméstico desta iguaria é um sacrilégio recompensado com desastre.
A humanidade desenvolveu várias tentativas de retirar a pizza de seu caráter sacro e permitir o preparo profano, mas todas estas tentativas redundaram em vão. A menos que você tenha um sacerdote pizzaiolo na família e adquiriu algum tipo de forno sobrenatural que queima fogo mítico.
Inicialmente surgiram as receitas de pizza caseira. Provas suficientes de que os pizzaiolos são uma espécie de camorra de sabotadores, que não se importa com as consequências de seus conselhos enviesados, como mecânicos de uma marca que aconselham no Facebook que o melhor aditivo para o motor da concorrência é uma mistura de açúcar e sal na gasolina.
Nenhuma receita de pizza caseira jamais funcionou. Bem, algumas até produziram pratos palatáveis quando não preparadas com a intenção de pizza. Tenho uma amiga que faz um bolo salgado de legumes que é uma delícia. Segundo ela, preparado conforme uma receita de massa de pizza, com a adição de picles e alguns legumes picados. Ouvi falar de gente que fez de tudo com massa caseira de pizza. Desde macarrão a discos de frisbee, passando por pratos descartáveis (e comíveis) para festas.
Quando todo o público da culinária caseira já havia se desiludido com tais massas, quando cada dona de casa sorria diante dos livros de receitas, oscilava o dedo e resmungava “nananinanão que nessa eu não caio mais” apareceu no mundo a tentativa 2.0 de pizza caseira: a “massa pronta”.
A ideia da massa pronta é simples: você traz para casa uma mistura idêntica à da pizzaria, cobre com os seus ingredientes favoritos e leva ao forno. Não se tem notícia de ninguém que tenha conseguido produzir por este método uma pizza idêntica à da pizzaria, mas os deuses da pasta nos castigaram muito por tal ato de heresia. Dizem que foram nas horas diurnas e impróprias em que leigos e sacrílegos não tementes ao azeite e ao pomodoro manipulavam ingredientes de recheio em desacordo com os princípios divinos, nestas horas foram inventadas as mais profanas combinações, que depois foram levadas aos templos e se proliferaram em confusão: Quatro Queijos, Lombo Canadense, Frango com Requeijão, Atum com Milho, Mortadela com Palmito, Goiabada com Queijo, Chocolate Branco! Que os deuses nos perdoem!
Vendo que grande estrago era causado no mundo, os deuses destruíram os lucros dos infames que produziam as massas prontas, sustando essa fonte de heresia antes que inventassem combinações ainda mais grotescas. Assim o mundo foi poupado da pizza de Miojo com Queijo Minas Frescal ou Macarronese com Sardinha. Surgiu, então, das profundezas do inferno gastronômico, a terceira tentativa de tornar a pizza um alimento abominável: a pizza pronta e congelada.
Ninguém jamais conseguiu produzir por este método uma pizza comparável à que se prepara em um ritual adequado, misturando os ingredientes nas mãos suadas do pizzaiolo e girando a massa na ponta do dedo como um Harlem Globetrotter, e depois assando em um cavernoso forno, a lenha ou elétrico ou a gás, mas apropriado. Mas o gosto público já estava tão destruído que este produto se estabeleceu, proliferando em detrimento do paladar e da conta de gás dos crentes.
São muitos os incômodos de se preparar pizza em casa, mesmo trazendo-a pronta para assar. Começa pela vingança dos deuses, que, no trajeto entre o mercado e sua cozinha, dão vida à pizza para que ela se erga do fundo do porta-malas, fique de pé, pule corda, faça polichinelos, vire cambalhotas e brinque de pular carniça entre as outras compras, até o seu formato ficar apenas remotamente “arredondado” e os ingredientes se distribuírem sobre a massa com a mesma uniformidade com que se distribui a participação nos lucros da empresa em que você trabalha. Mas não para por aí.
Toda receita de pizza, desde os livros de culinária até os nossos tempos de massa pronta e congelada, sempre incluíram instruções que envolviam “preaquecer o forno a 180° de deixar a pizza assar durante quarenta minutos em fogo médio”. Os cornos que descrevem estes modos de preparo agem como o médico que lhe aconselha, no caso de sua mãe desmaiar no meio da rua, “medir imediatamente a pressão arterial”. Tal como ninguém carrega um medidor de pressão para descobrir se o desmaio da mãe é um enfarte, ninguém tem em casa um forno com termostato preciso e temperatura tão regulável.
Então você conclui, por interpretação das instruções, que o fogo médio seria uma temperatura inferior aos 180° citados. Faz sentido: você preaquece em fogo alto porque vai assar em fogo médio. Se fosse preaquecer em fogo médio e assar em fogo baixo você demoraria metade da noite, pois a 90° nem se ferve água, a menos que você viva na Bolívia.
Quarenta minutos depois a sua fome já está negra e a pizza deve estar pronta. Você abre a porta do forno, testa com o garfo e a merda do queijo está mais firme que aquela massa de pão que você foi amassar e precisou pedir ajuda do vizinho para livrar as mãos. Depois de xingar mentalmente você resolve esperar mais cinco minutos, e a droga do queijo, que só podia ser feito do leite de uma vaca chifruda, continua tão firme que se fosse em formato de projétil você poderia usar como munição. Você fecha o forno mais cinco minutos e o raio do queijo parece um russo que acabou de nadar num lago congelado. A essa altura você está xingando a vaca e todos os seus ancestrais. Resolve deixar a pizza no forno por dez minutos, e quando volta a porcaria do queijo mal começou a derreter e a casa está empestada com um cheiro de plástico queimado. Você retira a pizza do forno para comer mesmo assim, vê que está meio crua por cima, ainda congelada por baixo do recheio, ressecada nas bordas e grudou no protetor de isopor que você esqueceu de tirar antes de pôr no forno.
Da vez seguinte em que você tenta assar uma pizza você resolve ser mais esperto. Preaquece o forno a 90° (“fogo baixo”) para assar a 180° (“fogo médio”). Nem passa pela sua cabeça preaquecer a 180° para assar em 260°, talvez por receio de que algum diabrete se instale no seu forno achando que é quitinete, já que o inferno decididamente anda cheio.
Então você deixa o forno “preaquecido” e coloca a pizza por quarenta minutos. Quando volta e abre a porta, a massa esturricou, o maldito queijo não derreteu por inteiro e o tal diabrete lhe pede licença e fecha a porta do forno na sua cara.
Achei o tom do texto muito leve ao mesmo tempo que compartilhei do fervor da pregação.
A superanálise do mundano é o que funciona perfeitamente para mim nesse texto. O que é meio obsessivo,mas também trás o aspecto divertido.
Obrigado pela recomendação. Vou deixar a aba aberta com o blog e assim que tiver tempo livre ler mais.