“O Romance da Universitária Otária” foi um grande sucesso da Banda Blitz nos anos 80. Falando sobre uma jovem sem rumo na vida que se envolve com um fala-mansa chamado “Abreu”, a canção incluía uma estrofe que ficou marcada para mim até hoje: “Todo mundo quer ir pro céu, mas ninguém quer morrer.” A frase foi usada para ironizar a Aparecida (a tal universitária) que escolhia cursos como quem escolhe roupas e pensava mais nos diplomas do que nos estudos.
A frase também serve para a maioria dos jovens autores que postam seus textos em blogs e no Facebook.
Eles querem ir para o céu (tornar-se escritores publicados), mas não querem morrer (enfrentar críticas, rejeições, contestações e decepções). Acima de tudo eles não gostam de ser “ofendidos” — e que coisa mais difícil é não ofender um jovem que se acha predestinado a abalar as estruturas da literatura universal.
É difícil evitar ofendê-los porque, insegurança típica da adolescência, eles consideram a literatura como algo extremamente pessoal. Acredito que a maioria dos autores começou pensando assim, e eu mesmo juro que foi assim que eu mesmo comecei. Não há nada de errado em ter uma relação muito pessoal com o texto. Mas uma relação “muito pessoal” deveria incluir sigilo, não? Se o texto é tão pessoal, ele não deveria ser exposto.
Assim como não expomos as partes sensíveis de nossos corpos. A principal função das roupas não é, contrariamente ao que se pensa, proteger a moral e os bons costumes, mas proteger lugares de nossos corpos que nos causariam dor, desconforto ou doença se expostos às intempéries, aos insetos e a objetos contundentes, como paus e pedras. Sociedades guerreiras ensejam roupas cada vez mais pesadas, armaduras até. O nudismo é característico de povos pacíficos, que vivem a salvo de estrangeiros violentos.
Um texto muito pessoal é como se fosse uma parte sensível de nosso corpo: ou nunca o publicamos (“Obras Póstumas” existem para isso) ou só o publicamos depois de termos desenvolvido certa tolerância a agressões. Retiramos o curativo da ferida somente quando cicatriza.
Normalmente as críticas que são feitas ao que escrevemos refletem o gosto de quem critica. Gosto é como […], cada um tem um e ninguém acha o do outro bonito, embora ninguém tenha orgulho do seu. Ninguém gosta da ideia de que sua crítica é apenas questão de gosto, todos queremos pensar que temos uma régua para medir o mundo. Mas um autor não tem o direito de achar que a sua régua é a mais reta, e nem de baixar a cabeça para as avaliações alheias.
Algumas críticas são feitas de forma injusta. Algumas são desastradas. Algumas interpretamos mal. Para quem quer se ofender, não há diferença alguma. Tanto faz um agressor, uma pessoa que escolheu mal as palavras ou a própria dificuldade para entender o que pode ter sido dito de forma complexa. Somente não há controvérsia quando o texto elogia. Ninguém rejeita nem discute elogios recebidos. Deveriam. Elogios são fáceis de fazer, por isso costumam ser superficiais.
O texto posto no papel nunca será plenamente compreendido por quem o lê. Existe uma barreira intransponível entre a idealização e a realização. Todos somos melhores escritores em nossos sonhos do que diante da página em branco. Acredito que todo autor imagina que seu texto seja melhor que é. A não ser os que padecem de autoconfiança frágil, e tendem a achar fraco qualquer esforço que levem adiante. Duvido muito de autores que sabem avaliar a qualidade de seus textos. Em literatura, a objetividade é uma ilusão mesmo no outro. Em si mesmo, é uma quimérica ilusão.
Portanto é natural que os leitores vejam qualidades que não planejamos, apontem defeitos que não vimos, valorizem o que achamos secundário, desconsiderem o que mais gostamos. Uma amiga minha certa vez se ofendeu comigo porque eu lhe disse que achava o seu melhor texto um que misturava magos, tédio e uma embalagem de plástico bolha. Era um conto despretensioso, engraçado e fácil de ler. Mas não era o que ela queria escrever. Por isso, na mente dela, meu elogio a esse texto (“escrito em trinta minutos”) era simultaneamente a depreciação de seus melhores esforços. Ela parece não ter me perdoado até hoje por esse elogio. O que só prova que não é preciso criticar acerbamente um texto para que o autor se ofenda.
Mais natural ainda é que nós, autores, interpretemos errado as opiniões dos leitores, especialmente porque elas são escritas rapidamente. Nós podemos dedicar dias e semanas melhorando o texto até que fique do jeito que temos coragem de publicar. Nossos leitores o lerão em uma pequena fração desse tempo e os seus comentários serão escritos ainda mais rápido. Não podemos exigir do leitor a mesma competência que nos atribuímos na escrita. O comentário do leitor tende a ser superficial, exceto se formos agraciados com um leitor sobrenaturalmente cuidadoso.
Para piorar ainda mais tudo isso: o leitor tende a ser ainda mais superficial ao criticar o que não gostou, e especialmente se foi obrigado a ler. Críticas positivas tendem a ser melhor elaboradas. Críticas negativas expressam a frustração de não ter achado no texto o prazer de ler.
O autor tem de desenvolver maturidade suficiente para passar ao largo disso. Não pode se abater somente porque um leitor ou outro o criticou. Se não é capaz de suportar que digam os defeitos da obra que considera perfeita, então não deveria compartilhá-la com ninguém, porque não é justo e nem razoável esperarmos que o mundo só nos reserve aplauso. Mesmo os grandes sofrem com algum tipo de ataque. Ataque que pode, muitas vezes, originar-se de outro escritor, ser movido pela inveja, ou pode ser a mais pura verdade, sob o ponto de vista específico de quem o escreveu.
Isto é especialmente verdadeiro nos desafios da comunidade EntreContos. Eu tenho a má fama de ogro por ocasionalmente criticar certos textos com uma força “excessiva” aos olhos dos autores. Nunca foi minha intenção. Nunca faltei com o respeito a ninguém. Mas as pessoas se ofendem quando o que recebem de volta não é o que sonharam.
Uma coisa, porém, estes autores nunca pensaram: que as críticas negativas que recebem, de mim ou de outros, são, muito provavelmente, provenientes de leitores que não os leriam se pudessem escolher. Sim, é verdade. Os desafios da EntreContos obrigam os participantes a ler os textos alheios. Normalmente o primeiro parágrafo já é suficiente para perceber se um texto tem qualidade ou não, e com três parágrafos, no máximo, o autor já nos fisgou ou nos fez desistir. Mas nos desafios da EntreContos você é obrigado a ler até o fim, mesmo sem gostar, porque não pode simplesmente dizer: “li este texto” e cumprir com a obrigação de ler e comentar todos os participantes. Quem não o faça, poderá ser eliminado do desafio.
Então, quando um autor critica, ele provavelmente é um leitor que aquele texto nunca teve. Não vamos gastar adrenalina com isso, gente! Uma crítica é só uma crítica. Principalmente se dirigida ao texto. O texto pode ser imbecil, mas você não é. O texto pode carecer de mais estudo, mas você não é analfabeto. O texto pode ser rude, mas você pode ser educado. Não passe recibo, não solte merda no ventilador só porque alguém viu defeito no que você faz. Você põe o que é naquilo que faz, mas você não é o que faz.
Ofender-se é inútil, só cria constrangimentos e divisões. Forte abraço a todos que me leem, e levem uma vida leve.