Este é o título de uma coletânea que acaba de ser lançada pelo blog [Entre Contos](http://www.entrecontos.com), contendo 18 textos dos participantes dos primeiros seis desafios literários por lá promovidos. Aparentemente, o critério de seleção se baseou na colocação dos textos nos resultados finais de cada desafio, o que me parece uma decisão acertada, se o objetivo do lançamento é o que penso ser: a divulgação do blog, dos desafios por ele promovidos e dos autores que deles participam. Sendo assim, a coletânea é um retrato muito fiel e apropriado dos desafios literários Entre Contos que, por sua vez, são um microcosmo da nova literatura brasileira, especialmente em sua vertente fantástica, e resenhar estes textos lança luz sobre os valores e ideologias impressos nesses jovens autores que começam agora.
A primeira coisa a se dizer sobre a antologia é que, por se originar das votações efetivamente ocorridas, ela traz uma peculiaridade que pode causar estranheza: os desafios Entre Contos são uma espécie de concurso informal no qual os votos são dados pelos próprios participantes. Esta prática tem lados positivos e negativos, e também sua finalidade prática, e não acho que seja válido criticar este sistema, entre tantos outros: apenas devemos ter em mente que cada sistema produz um tipo de resultado diferente e que, portanto, devemos considerar o sistema de escolha quando consideramos o que foi escolhido, só isso. Já participei de uma concurso na internet em que os vencedores eram pelo número de “likes” que o texto obtinha. Obviamente autores mais conhecidos, ou que não tinham vergonha de convocar um exército de amigos para lerem e deixarem seu “joinha” acabavam ganhando. O sistema do Entre Contos impede isso, visto que para votar é preciso ser participante do desafio,[^*] o que certamente produz uma seleção mais justa do que aquela obtida através de “likes” vazios, que obviamente não significam que o texto foi lido e/ou apreciado.
Este sistema tem um “efeito colateral” muito interessante: a escolha acaba sendo resultado da opinião de outros autores e a seleção acaba refletindo as opiniões dos autores a respeito do que seja qualidade, portanto, ao invés de refletir o gosto do público geral, a seleção permite avaliar, ainda que parcialmente, o gosto e a formação daqueles que escrevem (e no caso votam). Acredito ser óbvio que autores e leitores costumam ter opiniões diversas a respeito da literatura. Normalmente a relação entre o escritor e seu leitor é assimétrica: quem escreve tem acesso a informações e técnicas que faltam ao leitor, sendo que o último tenta interpretar, precariamente, as ideias e intenções de quem escreveu. Mas nos desafios Entre Contos esta assimetria se reduz: o julgamento dos pares, muitas vezes, traz a influência de aspectos compartilhados, como interesses, conhecimentos, relacionamentos etc. Assim, ao ter este livro em mãos o leitor deverá considerar que esta é primariamente uma seleção que reflete a mentalidade predominante entre os escritores participantes. Por esta razão os desafios *são interessantes* de se observar. E eu ainda os observo, embora tenha deixado de participar.
Feitas estas ressalvas, acredito que o leitor que aprecia a temática fantástica encontrará nesta coletânea uma seleção de obras bastante variadas quanto ao estilo. Certamente haverá contos para todos os gostos entre os dezoito, inclusive os há para o meu — ainda que eu considere que vários dos textos que figuraram nos primeiros lugares em alguns dos desafios foram propelidos por razões semelhantes às que motivam as grandes vendagens de autores que eu não curto. Afinal os escritores, sendo um microcosmo da sociedade como um todo, não estão livres da influência da cultura *pop* que tanto nos pressiona e nos atrai a pensar e sonhar com cenas e convenções que fazem parte de uma outra cultura. Mas esta é uma briga velha que não vale a pena eu levantar aqui.
O primeiro texto da coletânea seria facilmente considerado o melhor se o critério de qualidade fosse exclusivamente a maturidade estilística, mas não se faz uma obra de qualidade apensa com “estilo”. Felipe Holloway, um autor que admiro bastante exatamente por sua capacidade de transformar qualquer banalidade em um texto delicioso de se ler, parece não ter chegado ao seu melhor em “Assim, Assim”. É um conto que, apesar de todo o arsenal linguístico e afetivo do autor, parece ir se desmilinguindo à medida que o lemos. Isto pode ter ocorrido devido ao espaço curto entre a escrita e a inscrição no desafio, e nem sempre é possível voltar a um texto que já foi “solto” no mundo e mudar tudo o que desejamos mudar — este é um problema que afeta muita ficção que publico aqui no blog, por exemplo. De qualquer forma, se você aprecia autores que praticam a ironia e gostam de fazer o leitor sorrir por dentro, e também chorar por dentro, quando necessário, gostará da obra de Holloway, que procura seguir um estilo mais enraizado na literatura luso-brasileira do que os demais selecionados e tem certos pontos de contato com Machado de Assis e Luís Fernando Veríssimo (e eu não vou acreditar se ele disser que nunca os leu).
Outro texto que dá o que pensar é “Lágrimas São Vãs Sob a Chuva”, de Rubem Cabral. Este é um autor cujo trabalho nem sempre aprecio pois ele, muitas vezes, me soa artificial, especialmente pela leveza com que ele ambienta suas histórias em qualquer lugar, sem valorizar a cor local (nesse sentido nossa diferença é mais ideológica do que de qualidade). Porém eu venho adquirindo certo gosto pelo que ele escreve porque essa leveza problemática vem diminuindo ou porque vem sendo posta de lado por outros elementos das tramas. Ou porque eu venho mudando ou porque ele vem amadurecendo seu estilo e isso nos tem aproximado. Este texto ainda não é da sua fase mais recente, e que eu aprecio mais, porém ele já incorpora a característica central da obra de Cabral: a narrativa em camadas. Cabral é bom nisso, fazer isso é marca de qualidade e eu admito que procuro isso. Cada história sua tem, na verdade, duas narrativas superpostas que, quando se encontram, nos revelam o verdadeiro sentido da trama. Não é um simples “plot twist” engarrafado (à la M. Night Shyamalan) porque, como disse, as narrativas vão superpostas e quando você chega ao final está claro que tudo era previsível desde o início, apenas você, leitor, não conseguiu prever. Algo parecido com as tramas precisas da Agatha Christie. Este talento que o Rubem tem ainda o levará bem longe na literatura.
“O Quatrilho”, de Bia Machado, foi outro texto que me surpreendeu. Normalmente os textos da Bia não me enchem os olhos porque ela tem um toque muito sutil, muito feminino, para narrar, e eu me confesso um casca grossa para essas coisas. O que faz a obra da Bia ser interessante é o fato de que ela conseguiu transformar a ideia bruta do poema de Drummond em uma história que tem pé e cabeça, o que o poema-piada drummondiano não tinha nem pretendeu ter. O que impede este texto de ser melhor (e explica porque o vencedor do desafio “Cemitérios” foi o Holloway) é que ele me parece um tanto “verde” — como costumam ser, aliás, quase todas as obras publicadas nos desafios e também o fato de Holloway conseguir trabalhar melhor e mais gradualmente as emoções dos personagens.
O organizador, Gustavo Araújo, comparece com o conto “Reconstruindo Sarah Parker”, que foi, inclusive, vencedor de uma das edições. Gustavo é um escritor de mão firme, cujas obras me deixam, às vezes, a impressão de que ele sabe o que quer e também sabe o fazer literário melhor do que eu. Este texto, porém, não foi um destes momentos. Pode ser meramente por uma questão ideológica, já que eu abomino o exotismo gratuito (e quando digo “abomino” eu estou sendo eufemístico) e nada nesta história me pareceu exigir que fosse localizada em Londres e com personagens ingleses. Nada a não ser o desejo de ser traduzido e lido pelo público anglófono (esta é a obsessão de boa parte dos autores brasileiros, que seguem a tradição nacional de dar as costas à América Latina e manter o olhar firme e fixo na Europa e na América do Norte). Quem não tenha essas restrições ideológicas encontrará realmente um bom texto, embora um tanto vazio do que dizer, devido justamente à alienação espaçotemporal e ao distanciamento da trama em relação à nossa realidade. Enfim, o defeito do texto não está necessariamente nele, mas no foco através do qual eu analiso, e quem quer que analise com os mesmos olhos verá problemas parecidos. Mas a maneira como eu vejo a questão é claramente minoritária entre o público leitor.
A mesma divergência ideológica que me fez repelir o texto do Gustavo afetou, na época, a minha percepção do texto de Wilson Lourenço, que, apesar de vários vícios narrativos comuns a obras escritas de afogadilho, concebeu uma fábula impressionante, “Heinzelmännchen”, que não só consegue transmitir um eficaz clima de suspense como ainda cria uma raça de seres sobrenaturais muito curiosa e interessante. Reler agora esta obra, com um pouco mais de boa vontade, me permitiu ver nela qualidades que eu não notara da primeira vez. É realmente uma pena que o texto não tenha sido melhor elaborado quanto ao pulso narrativo (que é frouxo em alguns momentos), especialmente no início, quando a ação demora a pegar, e no final, quando ela se desfecha com muita brusquidão. O mais essencial deste texto é a originalidade da ideia, que não foi trabalhada em todo o seu potencial. Algumas de minhas discordâncias deste texto são, obviamente, de ordem ideológica (a ambientação forçada em um país estrangeiro e o uso excessivo de barbarismos léxicos), mas minha admiração pela imaginação de Wilson é genuína e eu realmente espero que ele evolua como autor e tenha sucesso, pois ele mostrou que tem o “feeling” da coisa (e cá estou a cometer barbarismos léxicos também)…
“Fogo Fátuo”, de Vítor de Toledo Stuani, pertence a um tipo de literatura que eu pessoalmente não gosto de ler porque sou um molenga. Não me agrada a minúcia na descrição da violência e do crime e eu não leria um texto sobre esse assunto se eu mesmo não estivesse participando do desafio e não fosse obrigado a ler tudo. Mas mesmo não sendo aquilo que eu procuro ler, este conto precisa ser valorizado porque o autor mostrou muita habilidade narrativa, ocultando ao máximo do leitor o que realmente estava acontecendo. Contribui para esta qualidade ambientação brasileira e a construção muito crível da protagonista (nem tanto do antagonista, mas em um conto escrito dentro das limitações dos desafios nem sempre há espaço para tanto).
“Zorro”, de Juliano Gadelha, foi um texto que me marcou especialmente por causa das suas referências culturais, apesar do tema “Viagem no Tempo” não me agradar (para este desafio eu participei com um conto totalmente fora do tema). A afetividade da narrativa e o final surpreendente, embora harmonizado com a narrativa em geral, contribuem para o sucesso do efeito e você sai da leitura incensado por aquela gostosa sensação de ter participado um pouco da história. É um texto que eu li e me senti voltando ao meu bairro na infância, comprando pão e balas na padaria da Avenida João Peixoto antes de ir para a escola.
Não me lembrava do estranho, e belo, conto “O Morto e Burumé”, de Leandro Barreiros, com sua riqueza descritiva, no qual ele constrói um tipo peculiar de inferno. Se o li, na época ele não me marcou, mas eu sou outro agora, e outros são os meus gostos, e agora este texto me agradou muito. Demônios e defuntos são apresentados de uma forma direta, mas convincente, sem os floreios das obras do passado, mas sem a grossura de autores que não sabem diferenciar o narrador do próprio personagem. O texto cria um artefato interessante para explicar o mecanismo da sua trama, e o consegue fazer de forma convincente. A coerência da explicação faz com que você entre na “suspensão da descrença” com grande facilidade. E isso é sinal de qualidade.
No quesito criatividade, o “Paradoxo do Adeus em Qubits”, de Ricardo Labuto Gondim, figura entre os primeiros por causa da forma desafiadora com que atacou o tema “viagem no tempo” a partir de uma perspectiva de ficção científica, mas com objetivos mais prosaicos. O texto resultante, recursivo e impactante, é daqueles de dar nó na cabeça. Lembro-me vagamente de ter elogiado bastante este texto na época, mas não sei se votei nele em primeiro lugar. O que sei é que esse texto, com um pouco mais de trabalho de revisão, não faria feio numa antologia como as da revista “Isaac Asimov”.
Sem procurar uma ideia tão arrojada, mas ainda assim criativa, Thais (Tata) Pereira escreveu seus “Homicídios Manchados de Rosa”, um texto que explora dos contos de fadas de uma maneira irônica. Certamente alguma influência de “Shrek” a inspirou, mas não podemos julgá-la: o filme é realmente muito bom e a realização deste texto acrescenta alguma coisa. Não pude deixar de notar um certo toque feminista na história, como se os homicídios em questão oferecessem algum tipo de libertação (sim, a liberdade assusta no começo). Esta não é uma história para se ler e esquecer, embora, mais uma vez, o ritmo intenso em que os desafios transcorrem tenham impedido um amadurecimento melhor. O tipo de narrativa que ela consegue encetar aqui é claramente um rumo a se seguir e eu torço para que a Thata o esteja seguindo.
Citei aqui somente os contos que me pareceram mais satisfatórios. Os demais podem ser bons, mas não me atraíram tanto quanto estes (por razões que podem ser meramente de gosto pessoal). Afinal, até quem começa mal pode chegar a fazer um ótimo trabalho — e quantos que não partem muito bem acabam ficando pelo caminho! Quem erra e persiste acaba acertando, e é isto que eu desejo a todos os participantes da coletânea, pois todos, com suas qualidades e defeitos, mostram potencial para ir além e que eles são hoje nada diz do que podem vir a ser amanhã. Que persistam, pois.
A principal crítica que o ebook merece é no aspecto da formatação. Há muitos erros de digitação (especialmente espaços comidos) e inconsistência nas divisões dos textos que possuem seccionamento (há até um texto dividido por prosaicos asteriscos alinhados à esquerda. A impressão que passa é a de ter sido rapidamente concebido e amarrado. Na maioria dos textos este defeito não chega a atrapalhar a leitura, mas é um cuidado que o organizador, Gustavo Araújo, deve ter futuramente, para melhorar a impressão dos leitores. Afinal, coletâneas dotadas da qualidade literária desta (que é, em si, muito superior a muita antologia de editora por aí) merecem ser vendidas e não deixadas para download. Para se tornar produto vendável, porém, é preciso aparar estas arestas. Espero que a essa altura as novas versões já tenham corrigido esses erros, que, claro, não afetam intrinsecamente a qualidade, apenas oferecem pequenas irritações durante a leitura para alguém que é perfeccionista como eu.
Gostaria de desejar sucesso a todos os autores participantes, inclusive aos que não citei, lembrando a estes que muitos outros textos de excelente qualidade não entraram na antologia porque não receberam, na época, votos suficientes. Então, mais importante do que estar ou não na antologia, e ser citado ou não neste texto, é continuar escrevendo e evoluindo, para merecer estar na próxima.
Parabéns aos envolvidos.
[^*]: Posteriormente se permitiu que não participantes votassem, desde que lessem e comentassem todos os contos, mas até o sexto desafio eu acredito que esta possibilidade ainda não existia, ou, se já existia, passou a existir somente no sexto.
Gostei da resenha, José. Obrigado por suas palavras de estímulo quanto ao que escrevo. Acredita que conscientemente eu nunca reparei muito em minha tendência em criar tramas em camadas? Achei sua observação muito interessante.
Gostaria de comentar que no caso específico do conto do colega Wilson, eu discordo levemente: ele subverteu os duendes do folclore da cidade de Colônia. Pareceu-me justo, portanto, que a história se passasse lá. Além disso, não é um cenário habitual dos autores nacionais do gênero fantástico.
Pequenas correções: O conto citado do Holloway é o “Algo assim”, mesmo que você o tenha achado um tanto “assim, assim”, :D. O conto “Quatrilho” foi o vencedor do desafio “Fantasmas” e não “Cemitérios” (os temas são semelhantes, daí a confusão).
Abraços.
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