> Parte da série [A Fazenda da Serpente](/lit/2014/10/nova-serie-a-fazenda-da-serpente)
As chances não pareciam boas. Demóstenes e seus homens conheciam os arredores e certamente a fuga de Rufino não era a primeira. Mas o tenente não queria se entregar tão fácil, nem deixar tantas boas armas e munições nas mãos daqueles miseráveis. A um aceno Maneco o seguiu, mesmo ainda não entendendo nada, porque adquirira a sabedoria que o medo ensina nessas horas.
Correram pelos fundos da casa, mas Rufino sentia nos ossos que seriam cercados. Lembrou então dos espinheiros: não os temeria, lembrou da infância na caatinga correndo atrás de gado com os empregados da fazenda, aferrou os punhos e se atirou nos braços dolorosos daquele abrigo. Maneco hesitou, mas entendeu, e pulou atrás, atirando o improvisado saco antes de si.
Logo ouviram assobios vindos do quarto, e pios de curiangos vindo do terreiro. Sinais combinados entre os capangas, que já nem precisavam de palavras. Pouco depois passaram dois grupos de homens em armas, vindos de lados opostos da casa, como Rufino temera. No escuro a sensação de sua presença era ainda mais assustadora do que teria sido a sua imagem à luz da lua.
Mas a sorte estava do lado de Rufino. A lua começava a aparecer, tímida, entre as nuvens que se abriam. Ouviu-se um relincho na cocheira e todos partiram precipitadamente para lá, por certo imaginando que os fugitivos tentavam recuperar os seus cavalos para ganhar o mundo. Nesse momento a lua clareou em torno da casa exatamente o suficiente para Rufino ter certeza de que ninguém ficara para trás a vigiar. Saiu então de seu esconderijo e apontou para o mato:
— Não tem jeito, Maneco. Não dá para pegar os cavalos.
— Mas vamos tentar, pelo menos, seguir na direção da estrada. Tentar voltar ao Rio de Janeiro.
— Não acho boa ideia. É exatamente essa a direção que eles vão seguir amanhã, em nossa procura. Vamos entrar mais para dentro de Minas Gerais, vamos tentar achar outra fazenda que nos abrigue por um dia ou dois.
— Ninguém conhecido de Demóstenes nos dará abrigo, a não ser para nos entregar.
— Talvez, mas se pudermos achar a família do Jacinto.
— Está louco, Tenente? Bem se vê que o senhor nunca esteve nos Sertões do Leste. Aqui não é como em Pernambuco, com tantas vilas e fazendas perto da costa. Aqui se pode andar dezenas de léguas sem encontrar uma viva alma. Ou pior, encontrando índios.
— O que sugere, então?
— Precisamos de cavalos, Tenente. No mínimo, nós precisamos de cavalos.
Os dois correram pelo emaranhado da capoeira, nunca perdendo a casa de vista. Do alto do morro, à luz do luar que já se deitava sem cortes sobre a terra, viram o rebuliço dos homens de Demóstenes, preocupados com os cavalos. Depois eles se separaram, com alguns grupos percorrendo novamente o entorno do terreiro, em busca de pegadas.
— Foi mesmo boa ideia de saltar no espinheiro, Rufino. Não nos escondemos só da vista, nossos rastos também ficaram confusos com os deles. Não têm como saber por onde viemos. Para todo efeito é como se tivéssemos voado.
— Maneco, não tem jeito — interrompeu Rufino em um sussurro — eles deixaram sentinelas na cocheira.
— Três.
— Não pense bestagem, homem. Podemos matar esses três, mas tem muitos outros além. Não adianta matar ninguém.
— Ah, disso já discordo. Mesmo sem levarmos cavalos, diminuir o número de mãos que podem nos matar.
Rufino assentiu. Retiraram os mosquetes do embrulho e perfilaram-nos sobre uma pedra.
— Será que dá para acertar daqui?
— Três tiros, apenas. Mais que isso e podem começar a adivinhar de onde estamos atirando.
Rufino disparou primeiro. O estrondo e a fumaça assustaram cavalos e cães, e a bala atingiu um dos homens, que caiu com as mãos sobre o peito. Os outros dois, que não pareciam ter muita experiência de tiro ou de briga, pensaram primeiro em ampará-lo, virando alvo fácil de Maneco, que disparou o segundo tiro. O segundo homem caiu de bruços sobre o primeiro, sem nem estrebuchar, como se a bala tivesse atingido cabeça. Rufino atirou pela segunda vez, mas o disparo mascou. Maneco pegou outro mosquete e atirou, mas a bala se perdeu, provavelmente atingindo o chão.
Os outros todos correram pelo terreiro e se esconderam na quina da casa, sem se aproximarem da cocheira. Era evidente que não eram tão ignorantes quanto Maneco e Rufino haviam suposto, pois perceberam de onde os disparos estavam vindo e se protegeram bem. Também não esperdiçaram balas atirando no mato sem alvo. O terceiro sentinela da cocheira enfim se deu conta de sua estupidez e correu em direção à casa. Rufino pegou seu terceiro mosquete e atirou, mais de troça do que em sério, mirando no ponto futuro da corrida. A bala não o acertou, mas o homenzinho deu uns saltos cômicos e se estatelou no chão, levantando depois e finalmente encontrando abrigo.
— E agora? Não podemos ficar no mato de tocaia. Logo que o dia amanhecer eles nos acham.
— Ah, como eu queria um cavalo.
— Espera, homem. Lembra da carroça?
— Sim!
— Vamos roubar aquela carroça.
— Vamos, vamos! Mas antes vamos deixar uma brincadeira para aqueles miseráveis.
Os dois embrulharam de novo as armas nos uniformes e retornaram pelo mesmo trilho, rumo aos espinheiros, deixando o isqueiro aceso sobre a pedra. Era uma pena abandoná-lo, mas havia prejuízos piores na situação. Chegando aos espinheiros, saltaram sobre eles e logo seus passos coincidiam com o pisoteio dos capangas que haviam circulado a sede. Do outro lado da casa ouviram tiros. A chama cumpria sua função. Decerto os homens de Demóstenes imaginavam que os fugitivos estavam usando a luz para recarregarem as armas.
Apesar da pressa, Rufino percebeu a tempo que a carroça não estava abandonada. Dois homens. Um à boleia, preparado para conduzi-la, e um segundo que terminava de atirar outro fardo para dentro dela.
— Silêncio, Maneco. Esta não é uma missão para mosquete e nem pistola.
Rufino desembainhou a peixeira com carinho. Guardava-a por dentro do uniforme, escondida, aproveitava-se da sua condição de oficial para esconder uma arma irregular. Entregou a Maneco o seu sabre de oficial e os dois seguiram pela sombra do telhado, deixando o pacote atrás de si. O homem que deixara o fardo subiu à boleia junto com o outro. Era a hora, ou nunca mais. Rufino acenou a Maneco que fosse pela direita. Os dois se moveram rápido, aproveitando o gramado baixo. Seus passos foram ouvidos, os dois se voltaram para ver, mas antes que pudessem dizer qualquer coisa já não era possível dizerem coisa alguma. A peixeira de Rufino entrou por debaixo das costelas do condutor, fazendo seu grito agarrar na garganta, enquanto o sabre nas mãos de Maneco atingia o pescoço do outro com tanta força que a lâmina praticamente o decapitou. Um instante depois e os dois guardas já tinham removido dos mortos os seus capotes de chuva e seus chapéus e estavam à boleia.
— Para onde, Rufino?
Em vez de dar uma resposta, o tenente tocou em direção à estrada que levava para o interior de Minas Gerais. Antes, porém, de chegar até ela, divisaram o terreiro todo por detrás de si, e Rufino girou a cabeça para matar a curiosidade sobre a figura misteriosa. Ela não estava lá mais.