Tem-se por inquestionável verdade que a concepção dos personagens é o elemento central da literatura de ficção em qualquer gênero. Sem personagens dotados de credibilidade e de motivações a história, por boa que seja, tende a fluir de uma maneira desconexa, de forma que os acontecimentos não apresentam sequencia lógica. Tanto é assim que não é raro que certos personagens adquiram um relevo cultural muito maior do que o das obras em que apareceram originalmente. Exemplos desse fenômeno são Romeu e Julieta, Hamlet, Cyrano de Bergerac, Tartufo, Gargântua e Pantagruel, Lolita, Sherlock Holmes, Bentinho e Capitu, Fausto, Madame Bovary etc. Alguns personagens possuem uma força própria tão intensa que transcende os limites das obras individuais e os traz de volta não só em outras obras do mesmo autor mas até em obras de outros autores.
A ficção fantástica, de uma forma geral, tem certa dificuldade para construir personagens dotados de força semelhante pois, em sua essência, possui uma outra dinâmica. Enquanto nas histórias realistas o elemento de interesse se encontrará sempre na excentricidade do personagem ou no inusitado de uma ou mais circunstâncias nas quais eles se inserem, na ficção fantástica já existe um tal número de elementos povoando o texto, entre eles a construção do cenário e a concepção da trama, que o desenvolvimento de personagens ricos pode significar uma extensão extraordinária do texto ou, pior, em prejuízo à legibilidade. Diferentemente do autor de ficção realista, que parte de elementos que são conhecidos do leitor, ou sobre os quais poderá se informar com relativa facilidade, o autor de ficção fantástica concebe uma série de elementos que não fazem parte da experiência imediata do leitor e sobre os quais ele, na maioria das vezes, não tem nenhum meio para informar-se. Cabe, então, ao autor de ficção fantástica prover ao leitor a informação necessária para vislumbrar adequadamente estes elementos, sob pena de não conseguir o desejado efeito. São vários os estratagemas empregados pelos autores de ficção fantástica para abreviar a quantidade de informação que é preciso transmitir.
Uma das técnicas para isso é começar a história em um ambiente familiar ao leitor e depois fazer a ruptura com a introdução de elementos fantásticos, sem nunca, porém, perder de vista a relação com o mundo real. Este tipo de história costuma receber a designação (ofensiva e muito imprópria) de “baixa ficção”. O cenário realista fornece ambiente seguro para fazer a construção dos personagens e estabelecer conflitos que podem ou não ser significativos na ambientação fantástica. Exemplos de “baixa ficção” na literatura clássica são Drácula (Bram Stoker), A Guerra dos Mundos (H. G. Wells), Tarzan dos Macacos (Edgar Rice Burroughs), A Sombra Sobre Innsmouth (H. P. Lovecraft) e A Luneta Mágica (Joaquim Manuel de Macedo), A Nova Califórnia (Lima Barreto) e A Casa dos Espíritos (Isabel Allende).
Quando a história transcorre, no todo ou em na maior parte, em um cenário integralmente fantástico, temos a assim chamada “alta ficção”, na qual a liberdade do autor não encontra limites a não ser os da coerência interna. Exemplos desse tipo de obra são O Senhor dos Anéis (J. R. R. Tolkien), Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), Fundação (Isaac Asimov), Canções da Terra Distante (Arthur C. Clarke), Viagens de Gulliver (Jonathan Swift) e As Brumas de Avalon (Marion Zimmer Bradley). Este tipo de história costuma ter um fôlego maior (requerendo centenas de páginas ou uma pluralidade de volumes), sendo raramente encontrado na ficção curta (contos, novelas e noveletas). A necessidade de desenvolver um cenário ficcional completo exigirá do autor algumas decisões sobre prioridades na hora de escolher os elementos que desenvolverá, ou terá de escrever milhares de páginas. Nem todo autor está disposto ao desafio de Tolkien…
Há vários tipos de limitações a que o autor recorre para abreviar o tamanho e complexidade resultantes. A maioria dos autores abrevia a tarefa simplesmente abreviando as descrições do cenário. Assim, mesmo o cenário sendo fantástico, ele acaba sendo parecido com a realidade, e o desvio é apenas o suficiente para o autor não ter de fazer uma pesquisa acurada. Poder-se-ia dizer que esse tipo de “alta ficção” fica, de fato, mais “baixo” do que uma “baixa ficção” que inclua elementos fantásticos abundantes e bem construídos. Esse, também, é o tipo mais popular de “alta ficção” atualmente, embora eu não vá citar nomes para não perder leitores… Outra via de simplificação é a dos personagens, que pode ser de duas formas: estruturando-os a partir de arquétipos ou de clichês. Pode, também, ocorrer uma decisão deliberada de não desenvolver os personagens, reservando toda a proeminência da história ao desenvolvimento dos elementos de fundo. É uma decisão rara entre os ficcionistas de nossa tradição neolatina e relativamente mais comum entre os autores anglo-saxônicos, uma tradição que remonta aos primórdios da ficção gótica e passa por nomes como Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft. Este é o tipo de opção a que Ashton-Smith recorreu.
Em que medida a opção pelo cenário em vez dos personagens reflete uma limitação do talento literário do autor, é injusto especular, visto que ele nunca encontrou um meio adequado para a difusão de sua obra, e o público ao qual se dirigiu, através das revistas pulp, não aceitaria uma profundidade muito maior. Ademais, Ashton-Smith possuía um temperamento artístico peculiar que lhe fazia dar atenção minuciosa às descrições. Sua inclinação às artes plásticas naturalmente já o impelia a um detalhismo acima do normal. De certa forma, as obras de Ashton-Smith são pinturas verbais de cenários imaginados, sobre as quais se movem, de forma ritualizada, personagens que não passam de bosquejos ou bonequinhos-palito. Nesse sentido, é muito importante estudar aquela obra que talvez represente, mais que qualquer outra, a epítome da sua ficção: A Paisagem com Salgueiros.
Desde o seu título esta obra evoca a subordinação da figura humana ao cenário em que a ação se inscreve: pode-se dizer que o personagem principal deste conto não é o mandarim Shih Liang, mas a pintura da paisagem com salgueiros que ele tanto ama. Além do protagonista, apenas dois nomes são citados em toda a história: Po Lung, seu irmão (Ashton-Smith não conhecia suficientemente a cultura chinesa para entender os costumes onomásticos), e Mung Li, um colecionador de arte. Além destes personagens nomeados, só temos conhecimento de mais dois, citados en passant: o imperador e a donzela de vestido rosa que habita a pintura (e que, de certa forma, é um personagem).
Nenhum destes personagens recebe a atenção de uma descrição. De Shih Liang, tudo que sabemos é que “como seus ancestrais, era um erudito, um poeta e um amante da arte e da natureza”; que “era sozinho e não tinha parentes nem amigos”; “herdeiro de muitos débitos e pouca propriedade ou dinheiro, a não ser por um número de tesouros artísticos inestimáveis”; que “se aproximava da meia idade” e que “sua vida era cada vez mais triste e oprimida pela má saúde e pela pobreza” pois seu salário como funcionário da corte era dedicado principalmente à educação do irmão mais novo. De seu irmão nada sabemos, a não ser que era mais novo e se dedicava integralmente aos estudos. De Mung Li, nada a não ser que era “um conhecedor que comprara outras peças de sua antiga coleção”.
A pintura, porém, recebe uma atenção extraordinária: nada menos do que em cinco dos dezenove parágrafos do conto o autor se detém a descrever ou a relembrar os detalhes da paisagem. Pelo menos um destes, o segundo, é integralmente dedicado a descrevê-la em detalhes. Outros parágrafos se detêm a analisar a relação de Shih Liang com a pintura, em termos equivalentes à descrição de um namoro. É claro, então, que o conflito central da história não é entre personagens: ainda que Shih Liang não tenha bons sentimentos em relação a Mung Li, é difícil considerarmos este homem como um antagonista, visto que o seu interesse por antiguidades é o meio através do qual o desgraçado Shih Liang consegue se sustentar em sua velhice.
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