A primeira impressão de que eu estava no começo de algo estranho foi quando ouvi um tinir metálico vagamente ritmado. Logo acompanhado por vibrações graves e um zunido agudo que ia e vinha, numa oscilação que me pareceu familiar. Eu caminhava por uma rua estranha, muito ampla, com uma linha férrea à minha esquerda e uma linha de edifícios que, parede a parede, muravam o horizonte. As pessoas ao meu redor se vestiam para um frio moderado e não pareciam ouvir as mesmas sensações musicais que eu.
Strange as it seems his musical dreams
Ain’t quite so bad.
— “Amazing Journey” (The Who)
Subitamente dei-me conta de que em algum lugar o mundo executava “The Gates of Delirium” e eu tive vontade de descobrir onde. “Não é possível que ainda esteja vivo algum membro do Yes”, foi a primeira dúvida que tive. Em momento algum alcancei que a improbabilidade maior era que estivesse no Brasil naquele momento.
Lembrei um nome de cidade que logo esqueci. Não sei porque aquele nome em especial voejava pela minha cabeça. Circulei por alguns quarteirões no compasso daquela melodia, entre pessoas desinteressadas, que certamente não a ouviam, até que as notas musicais tomaram outro rumo. Eu ainda “sabia” que era Yes, mas não conseguia saber, ou não consigo lembrar, de qual faixa eram os acordes. Mas a perseguição inútil de sua origem me fez enxergar que a música parecia não estar em lugar nenhum, mas estava, ao mesmo tempo, em cada lugar, como se fosse eu que levasse música àquela paisagem cinzenta.
Quando percebi isso, chegara a uma larga praça, sob a fronde de uma árvore imensa e de copa arredondada. Artistas circenses executavam malabarismos e uma turba de vendedores ambulantes oferecia de tudo, até drogas, entre as moças e crianças que sorriam e atiravam confetes. O vento os fazia voar, e demoravam a depositar-se no chão, como flocos de neve. Uma moça de lábios pintados de vermelho deixava a praça olhando para trás enquanto um grupo de pierrôs e colombinas se reunia sob a torre de uma igreja.
Rodrigo estava sob a marquise de uma padaria, tomando café quente em um copo de isopor e conversando com um grupo de amigos. Aproximei-me, entrei no círculo sem pedir licença:
— Dia mais estranho esse, tenho a sensação de que estou sonhando com esta praça, e com vocês.
— Peraí, Pedro. Deixa o Digo terminar a história.
E o Digo continuou a história que andava pela metade.
“Então imagine, naquela noite o grupo estava com medo de tocar, armava uma chuva cabulosa. Quando desistiram definitivamente, a gente vinha a seguir, subimos no palco mostrando o dedo do meio para a fúria dos elementos. Keith apenas perguntou aos eletricistas se os equipamentos estavam aterrados, então se dirigiu à multidão e quis saber se alguém tinha medo. Ninguém se afastou, começou a cair uma chuva rala, mas de gotas grossas, acompanhada de tanto trovão que o palco, às vezes, parecia silencioso. “Vocês querem rock’n’roll?” A galera gritou que sim e a banda atacou. Então, no meio de “Smoke on the Water”, justamente quando o público cantou “fire in the sky”, um relâmpago poderoso atingiu o palco e atapetou de faíscas o lugar.
“Era como se a gente pisassem em estrelas por um minuto. Senti-me no topo do mundo, poderoso Thor. Renatinho estava sacudindo os dedos chamuscados e as cordas do contrabaixo pareciam avermelhadas. A multidão entrou em pânico e o povo queria dispersar. Começou o grande pisoteio, com o palco totalmente preto e silencioso, tudo queimado. Então aquela garota saltou sobre o palco, para escapar da confusão, e veio sobre mim, sem me ver. Relampejou novamente e vimos nossos rostos no meio daquele clarão. Eu a beijei, ela deixou, ela se abriu, quando a luz da praça voltou ainda estávamos fazendo amor sob a chuva, entre as faíscas e os relâmpagos.
“De repente eu esbarrei um braço num cabo desencapado e fomos atravessados por uma corrente de cento e dez volts. Ela gemeu como se um gozo cósmico a ativasse, eu me larguei como se fosse a primeira vez e lhe disse que não sabia quem era ela, mas que ela precisava ser parte da minha vida, ou eu nunca seria completo. Ela disse que sim, jurou que me amava, mas enquanto eu tinha os olhos ofuscados por mais um relâmpago ela sumiu. Não sei se desceu para a praça ou se subiu ao céu no cabo de outro relâmpago, deixando-me descarregado.
“Depois dessa noite eu fiquei meses sem cantar, e as mulheres nem me interessavam mais. Porque, cara, como é possível querer uma mortal qualquer depois de ter uma deusa nos braços como eu tive?”
Os que ouviam a história concordaram. Era triste, mas fora belo. No refluxo da história terminada todos ficaram em silêncio, como se também alguma coisa lhes tivesse sido puxada para o céu no cabo de um relâmpago. Alguns olhavam em volta, talvez pensando na experiência do Digo e querendo algo, talvez, parecido.
Havia mais o que fazer na vida, mais sensações a explorar. Outras praças, outras canções, outras mulheres. Mas tudo era tão cinza, tão estranho. Não tinha mais certeza de qual cidade era aquela, a canção ia morrendo, e com ela toda definição do lugar, das pessoas, das lembranças. Em qual encarnação eu conhecera o Digo e o Renatinho? Eu me sentia leve naquele lugar, com relâmpagos no horizonte me fazendo estremecer, relâmpagos acima e ao redor de mim, um frio que nem parecia natural.
Acordei. Estava deitado de costas em uma cama de hospital, com soro na veia e dores pelo corpo. O quarto coletivo tinha mais duas camas, mas o meu pescoço doía tanto que eu não conseguia me virar para ver quem estava nelas, se alguém estava. Tossi para ter a certeza de que ainda podia. Pude. Meu ruído chamou a atenção de quem estava na cama à minha esquerda.
— Pedro, é você?
— Sim, sou eu — respondi num fio de voz, como alguém estivesse sentado sobre o meu peito.
— Você a viu?
— Quem?
— A mulher.
Todas as imagens da cidade, da praça, dos relâmpagos. Não tinha certeza de nada. Era como se tivesse sido somente um sonho.
— Não sei do que você está falando, Rodrigo.
Três dias depois tivemos alta. Renatinho, com as mãos enfaixadas, nos esperava à saída, para nos levar de volta para casa na velha Veraneio cinza. A cidade ainda lembrava tanta chuva, com barro acumulado nas sarjetas, galhos de árvores espalhados pelas esquinas e um frescor no ar que parece sempre tão estranho. Eu ainda conservava no nariz
aquele cheiro azedo de elétrons e a minha pele ainda ardia nos lugares onde o raio passara.
Tínhamos perdido quase todo o equipamento no desastre, e também nossa coragem roqueira. Mostrar o dedo para os elementos não fora, afinal, uma ideia boa. O seguro do evento nos indenizaria pelos instrumentos, mas não pela nossa dignidade.
— Antes de ir embora, Renatinho, dá uma volta pela cidade, quero ver se encontro a moça.
Renatinho não sabia quem poderia ser, nem o próprio Digo saberia. Não se lembra no rosto de nenhuma mortal o rosto de uma deusa contemplada à luz de um relâmpago.
Pouco tempo depois eu abandonei as baquetas e passei num concurso público. Renatinho se converteu e hoje toca em coral de igreja. Só o Digo continua, aos trinta anos, na feliz irresponsabilidade da música.
— É por isso, gente, que eu tenho certeza de que ela é a moça daquela noite — disse Rodrigo.
E dito isto se afastou de nós, passou pelos malabaristas debaixo da árvore e sumiu pela multidão em um busca de um rosto fugidio que vira passar. Enquanto isso o resto da banda se perguntava se ele voltaria a tempo da passagem de som. De repente a minha inteligência relampejou brevemente e eu percebi que retornara à banda, dois anos e meio depois, que estávamos prestes a subir num palquinho de bar. Renatinho não estava conosco mais, estavam Jojoca e Marina. A banda era melhor, mas a vida não. A música era mais perfeita, o mundo era uma desgraça acumulada no esquenta para um grande show.
— Deve ser apenas coincidência, ele está pirado.
Marina acreditava:
— A coincidência é sobrenatural também, Pedro. Não pode ser de outra forma. Tudo confere. Ela é de São João Nepomuceno, ela teve um filho que não foi registrado com o nome de um pai, e ela deu ao garoto o nome de Thor. O que você acha que explica algo assim?
— Você também viu o rosto dela no relâmpago, Pedro. Você estava sentado diante da bateria, o público à sua frente. Renatinho estava distraído, tinha aquela mania de tocar olhando para as cordas, deixando o cabelão balançar. Então você é a única outra pessoa que pode ter visto o rosto da tal mulher. Você na época disse que viu, mesmo brevemente. Então… Parece?
Lembrei das palavras do Digo: “O que eu vi no relâmpago não foi o rosto físico dela, foi a sua alma imortal, eletrificada, vibrante.”
— Difícil dizer se esta moça é parecida. No fundo, no fundo, todos somos parecidos no escuro.
Os outros riram. Havia uma loucura na história, claro, mas havia também salvação: pelo amor da moça que finalmente julgava ter reencontrado, Rodrigo talvez recuperasse a alegria de viver, talvez a voz, talvez até o interesse pelo sexo oposto; mesmo que fosse exclusivamente por ela. “Como pode o homem interessar-se por uma mulher qualquer, depois de ter nos braços uma deusa?”
Minutos depois Rodrigo voltou. Trazia uma moça pelo braço. Era difícil dizer que era bonita, ou feia. Mulher de amigo meu não tem defeitos e nem qualidades, e só de ver a cara do Digo eu soube que aquela era a mulher dele, ou teria de ser. Ela vinha com uma criança nos braços, uma que parecia ter mais ou menos dois anos… a conta fechava aproximadamente, levando em consideração que era uma conta porca, feita com base em extrapolações. Quanto tempo exatamente dura uma gravidez, afinal? O menino, bem, poderia ter alguma semelhança com Rodrigo, ou não, era difícil dizer, Rodrigo tem um rosto bastante comum e a moça também, e ambos eram do mesmo tom moreno da pele da criança. Difícil era aceitar que ele enxergasse naquela coitada a mesma mulher que vira à luz do relâmpago.
Era uma garota morena, de seios fartos, mas flácidos, pescoço grosso, rosto arredondado, cabelos pretos e muito lisos, não muito alta, de cintura larga, pernas finas, ainda mais evidentes por usar aqueles jeans tão apertados. Nela eu não enxergaria nada de divino, mas quando os dois me deram as costas, num breve momento em que um quis mostrar ao outro alguma coisa em outro lugar, percebi a tatuagem de raios nas espáduas dela, no segundo seguinte vi que não era isso, eram cicatrizes… de raio!
Talvez… Seria? Talvez eu nunca tenha esta certeza, mas a Rodrigo basta que ele tenha. A ela, ainda mais. Marina brincou: “Que mais deseja uma mulher senão um homem que enxergue nela uma deusa?” Tirara a sorte grande, a moça. De pobre e mãe solteira se tornava imediatamente noiva, e logo esposa, de um cara legal como o Digo, filho de uma família importante. Um cara como eu jamais conseguira ter fé em algo assim, não conseguiria enxergar através das cortinas da carne a mesma essência elétrica de uma deusa vista no clarão de um relâmpago, a menos que… que diabos é aquilo brilhante entre os dedos do moleque? Por um momento tive a impressão de que ele produzia faíscas entre os dedos, e quase acreditei na história toda.
Aquele foi o show mais foda da vida de Rodrigo. Ele não recuperou a voz, mas executou um solo tão cabuloso que metade da plateia ficou tapada de silêncio no fim da música.
Talvez seja a nostalgia que a música evoca, se você a conhece.
Muito bom! Gostei em especial da cena do encontro dos dois. Isso, de enxergar o divino no comum ,é algo que sempre me fascina. O conto conseguiu me trazer certa nostalgia que não sei explicar.
Ah, no primeiro parágrafo, como você começa falando em “tinir” (no singular), penso que a frase seguinte ficaria melhor também no singular: “Logo foi acompanhado…”.
Abraços.