Dizem que deu na Folha, mas eu não leio jornal mais — então eu só fiquei sabendo através do blog do Rodrigo Gurgel, o polêmico crítico literário, de quem tenho aprendido a gostar (falo do blog e não do crítico, porque conhecer o primeiro não equivale a conhecer o segundo). Para quem não sabe do que estou falando, dou um resumo e deixo o [link](http://rodrigogurgel.com.br/2015/06/a-falha-do-romance-brasileiro/) para quem queira ler o texto inteiro (e eu recomendo, pois vale a pena).
Gurgel recorda Nélson Ascher e Manuel Bandeira que, em momentos diferentes, problematizaram uma suposta carência de nossa literatura: o “romance nacional”:
> onde estão as narrativas que, sem prejuízo da qualidade estética, oferecem um painel amplo e razoavelmente explícito do período histórico e da sociedade em que se ambientam?
Sejamos mais específicos, tanto Ascher quanto Bandeira estão em busca de romances, não necessariamente históricos ou realistas, ou mesmo marginalmente realistas, que ajudem a entender o Brasil como país, com sua história, cultura e idiossincrasias:
> Quais são os melhores romances brasileiros sobre a era Vargas, a construção de Brasília, o golpe de 64, a ditadura militar e a transição para a democracia? Onde estão as sagas que descrevem a trajetória de diversas gerações de uma família italiana, árabe, japonesa ou judia desde sua chegada a Santos no início do século 20 até os anos 90? E as histórias de ascensão e queda individual cujo pano de fundo sejam as transformações de São Paulo ou do Rio?
Tendo exposto o problema, Gurgel admite que existem algumas destas obras, mas elas padecem de dois problemas. O primeiro é que, “parafraseando o Dr. Samuel Johnson, o Brasil produz ficção boa e ficção realista, mas a ficção boa não é muito realista e a ficção realista…” O segundo problema é que as exceções existentes se limitam em seu escopo geográfico (como a obra de Márcio Souza e Érico Veríssimo) ou em seu escopo temporal (como o célebre “Agosto”, de Rubem Fonseca).
Para deixar melhor exposto o caso é preciso citar que o tipo de texto parece faltar em nossa literatura, segundo os autores citados, seria algo maior do que o romance de ambientação histórica (como muito se fez e se faz por aqui), mas um romance histórico em si. Se bem entendi a polêmica, Gurgel deseja saber por que nos falta algo como “Eurico, o Presbítero” (Alexandre Herculano) ou “Guerra e Paz” (Tolstói) — um romance bem realizado, com ambientação histórica rigorosa e preocupado em narrar uma história dentro da história. Não uma fantasia histórica do tipo “o que teria acontecido se…” e não uma micro-história centrada ao redor do umbigo de um personagem só.
Gurgel desenterra um artigo de Manuel Bandeira, no qual enxerga uma possível explicação para a carência levantada por Ascher:
> Sem dúvida, os brasileiros somos bem imaginosos. Mas falta-nos a aptidão de combinar tanta abundância de imagens e, sobretudo, de as exteriorizar artisticamente num entrecho que nos dê a ilusão da vida em toda a sua rica versatilidade.
Como Bandeira não avança muito no diagnóstico das causas do problema, apenas aventa hipóteses, Gurgel se aventura a escolher uma que lhe parece mais apropriada. Para o crítico, deve haver algum “vício de composição, falta de aplicação ou ausência de estímulo.” Nesse ponto eu pretendo cortar a bola levantada por Gurgel e cometer minha própria teoria sobre o caso.
Acredito que não há mesmo a “falha fundamental de capacidade” (aventada por Bandeira, mas descartada por Gurgel), mas tampouco há “vício de composição” (pois tivemos e temos autores muito competentes no seu mister), “falta de aplicação” (acredito que a perseverança na literatura é uma suficiente prova de aplicação) ou “ausência de estímulo” (a arte não precisa ser produzida a partir de estímulos externos, pois, se assim fosse, as artes teriam alcançado nos países mais ricos o seu maior grau de desenvolvimento, porém tal é discutível). Se há vício de composição, falta de aplicação ou ausência de estímulo, estes três fatores não são senão sintomas de outro fator mais profundo: o amadorismo. O problema fundamental de nossa literatura, causador de lacunas, como a ausência do grande romance nacional que Ascher procurou em vão, é que a ampla maioria de nossos autores são amadores.
Preciso explicar antes a dicotomia que emprego: um autor amador é aquele que se dedica à literatura como uma preocupação secundária de sua vida. Alguém que precisa trabalhar para se sustentar e que escreve nas horas vagas. O amadorismo não é um problema em si, mas a sua prevalência causa problemas a uma literatura — entre eles a citada carência de romances de grande foco, como o “romance nacional” que se busca.
Eu digo mais: o amadorismo é uma escola. No meu caso, por exemplo, aos quarenta e dois anos, já não faz diferença se amanhã eu ganharei na loteria e poderei me dedicar a escrever, pelo resto da vida. *Eu já me formei um amador* e a minha literatura sempre será amadora mesmo que eu deixe de praticá-la em minhas horas vagas e passe a fazer dela meu hobby de tempo integral. A literatura será um acessório em minha vida mesmo se eu não fizer mais nada a partir de amanhã senão escrever literatura. Porque continuará sendo uma ocupação de horas vagas, e não o centro de minha vida e de minhas preocupações.
É difícil para eu explicar de que maneiras o amadorismo tolhe e domestica (no mau sentido) o talento de alguém, mas preciso tentar. O amador é alguém que desde a infância está predestinado ou circunstancialmente é obrigado a ser outra coisa que não um autor. Ele não estuda aquilo que formaria um bom autor, mas aquilo que lhe dará carreira e salário e satisfará a família. Ele passa os anos mais criativos de sua vida, a adolescência e a juventude, ocupado com uma profissão (ainda que no fundo a deteste e somente o sonho da literatura o alimente) em vez de ocupar-se em aperfeiçoar a sua escrita. Se algum dia adquire estabilidade profissional e/ou financeira para poder “gastar” algum dinheiro com edições, participações em eventos ou matrículas em cursos, já será tarde para que assimile integralmente tais experiências — e será tarde para ser visto nelas como alguém promissor. *Ninguém é promissor aos quarenta anos*.
O amadorismo prejudica seriamente a literatura quando ele se instala. Uma literatura feita por amadores tende a produzir obras menos extensas e menos complexas. Não é à toa que o mesmo Brasil que não produziu um “romance nacional” digno de nome tenha sido o inventor da crônica literária, gênero tipicamente nosso, e breve, e leve. A crônica nos explica melhor do que qualquer teoria: é um texto fluido, que pode mesclar livremente fantasia e realidade, que tem um desenvolvimento quase necessariamente linear e que brinca na superfície, com as palavras, em vez de mergulhar nas profundezas, estruturais.
Se você deseja romances de amplo foco (ou obras literárias de qualidade altíssima), precisa de um contexto no qual a arte possa ser feita por jovens, e por jovens de todas as classes (não somente pelos bem-nascidos, que voejam em torno de suas torres de marfim, sem conhecer a realidade das camadas subalternas da sociedade). O tipo de romance que Ascher busca é escrito, na maturidade, por aqueles que produziram na juventude obras cheias de ira, de verve, de jogo e de leveza. Em uma tal literatura, os que começam leves adquirem peso ao interagirem com outros, ao assimilarem cultura. Não se produzem autores maduros em faculdades de economia, administração, direito, ou mesmo engenharia. Em alguns casos até se pode produzir algum, se a faculdade tiver um ambiente pouco rigoroso e o aluno for particularmente relapso. Os bons alunos tendem a arranjar boas carreiras, e a literatura continua no fim de semana.
O autor amador não é suficientemente profundo para ter *insights* que o levem a sequer detectar a oportunidade do “romance nacional”, e quando chega a ter essa ideia, tem também a consciência de que é um alvo além de sua capacidade, por não ter adquirido suficiente erudição para atacá-lo. O autor amador, porque se dedica pouco tempo a escrever, demora a aperfeiçoar sua pena, tarda muito em juvenílias irrelevantes, chega aos quarenta anos indeciso e ainda precisando de leitores beta. Não é que lhe falte talento — ele o demonstrará em textos curtos e concisos, nos quais consiga se manter sob controle — o que lhe falta é destreza. Nossos autores podem fazer muita coisa boa, mas eles são essencialmente atletas de fim de semana. É ótimo que haja no mundo tanta gente que pratique esporte no fim de semana, mas o país nada ganha de fato se não tiver ligas profissionais. Autores amadores podem ser interessantes, mas a literatura que realmente importa e que impacta é feita pelos profissionais.
E antes que me digam que estou dizendo bobagem, gostaria de lhes lembrar que todos os grandes nomes de nossa literatura foram amadores, no sentido em que aqui expliquei. Exceções serão citadas, claro, mas algumas não são realmente exceções ou os autores não são realmente grandes. Machado de Assis foi tipógrafo e depois se tornou escriturário do Ministério da Agricultura. Lima Barreto foi “amanuense” do Ministério da Guerra. Carlos Drummond de Andrade trabalhava no Ministério da Educação. João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Vinícius de Morais foram diplomatas. Continue examinando a lista e veja nas biografias de nossos ídolos, onipresente, uma outra profissão não literária. Mesmo os que aparentam profissionalismo ainda são, essencialmente, diletantes. Paulo Coelho hoje ganha para escrever, mas ele só chegou aonde chegou porque já era famoso antes (e rico) e pode queimar muito dinheiro em promoções antes de se fazer conhecido. Alguém que se fez autor depois de ter sido outra coisa (compositor e produtor musical), não é realmente um autor profissional, não é alguém que viveu de e para escrever.
Esta nossa literatura, feita nas horas vagas, com as sobras das energias de pessoas geniais, não tem como produzir algo de grande envergadura, como os romances de Flaubert (maravilhosamente encadeados) ou mesmo algo que nos defina literariamente, como o “Abril Despedaçado”, de Ismail Kadaré.