O mercado editorial brasileiro se caracteriza, desde há muito, pelo seu conservadorismo. Não me refiro aqui que o mercado seja avesso ao novo, mas que ele seja fechado a questionamentos. Existe uma estrutura de poder, e o autor brasileiro, se quiser chegar à notoriedade, precisa de abdicar de liberdades que deveriam ser essenciais à arte. O establishment literário precisa se proteger de questionamentos, precisa desqualificar quem questiona, precisa infantilizar o discurso desviante. E como ele não ousa fazer isso pela boca de seus membros mais notórios, terceiriza o discurso para jovens autores recém aparecidos para o mercado.
De vez em quando um texto desses sobe à tona de minha linha do tempo e eu sou forçado a ler de novo a justificativa desse establishment literário sobre si mesmo. Hoje foi no blog da Rebeca Melo.
Esse texto é mais um entre dezenas que há em diversos blogs literários reproduzindo uma ideologia “de cima para baixo” que subordina a criatividade do autor à iniciativa do editor e coloca a literatura nacional como um apêndice pobre da que as editoras importam pronta. As ideias aqui podem até ser aparentemente de quem o escreveu, e ela afirmará isso, mas são fruto de um pensamento coletivo ao qual ela tem estado exposta.
Uma das razões para a terceirização da defesa é que ela se faz com argumentos que não caem bem na boca de um medalhão. Qualificar como “mimimi” os argumentos de que discorda não é uma maneira muito recomendável de reivindicar razão. Fica parecendo que você não respeita quem pensa diferente de você. Infantilizar a opinião diferente me parece o jeito errado de sensibilizar quem você questiona. Pode render pontos junto a quem já concorda com você, mas só serve para criar mais animosidade. Os medalhões não querem aparecer em polêmicas, eles têm sua guarda pretoriana para isso.
Tanto a questão dos booktubers quanto a do profissionalismo online é abordado de uma maneira superficial. Não se questiona nada, de fato, apenas se aceita como legitimada e correta a realidade. Parece que já foi o tempo em que a arte era contestadora, a onda agora é se encaixar o mais rápido e perfeitamente possível nas novidades.
O problema com os booktubers é que eles não são realmente autores a priori, mas pessoas que se tornam “webcelebridades” e depois se tornam autores para preencher uma fama prévia. Estão na mesma categoria das subcelebridades televisivas que lançam livros. Defendê-los equivale a defender a literatura como algo acessório e posterior à fama, como um apêndice, um “afterthought”. Como se a literatura, por si, não fosse capaz de produzir um autor e fosse necessário que o autor criasse fama prévia por outros caminhos. Criticar os booktubers é criticar pessoas que acrescentam a literatura como um detalhe a mais de seu currículo. Legitimá-los é colocar os autores em desvantagem perante a quem começa com a fama de outras áreas.
A questão do “profissionalismo online” é outro contencioso perigoso. É preciso muito cuidado ao recomendar “profissionalismo” aos jovens escritores para não recair no “caretismo”. Recomendar “profissionalismo” pode facilmente resvalar para recomendar conformismo, falta de ousadia, robotização. Não se pode esperar que autores em formação ajam previamente como profissionais. A infância da escrita precisa de liberdade (inclusive a liberdade de errar) para que o jovem teste seus limites, cometa seus erros, desista se for preciso. Profissionalismo deveria ser exigido apenas de profissionais. Dos amadores, o amadorismo já deveria ser suficiente. Por isso me parece que essa pregação de profissionalismo é uma evangelização castradora e careta. E que tem muita utilidade quando quem a faz tem telhados de vidro e algum poder para atirar em quem joga pedras. Cuidado, crianças, não tentem dizer que o Rei está nu, ou ele pode prejudicar vocês no futuro…
Uma coisa que me deixou intrigado é haver pessoas no mercado editorial brasileiro que acham mais fácil lidar com autores estrangeiros. Esta informação me parece difícil de digerir.
É verdade que há muitos autores que se relacionam mal com os seus editores, mas isso só significa que muitos autores não estão prontos para publicar. Que não sejam publicados, então, enquanto não chegarem ao ponto. Há uma obsessão de publicar todo mundo? Só se esse autor for visto como “fonte”.
Por outro lado, quero ver evidências materiais de que os autores nacionais são piores que os estrangeiros nisso. “Já ouvi de várias pessoas no mercado editorial” não é prova, é boato, é “weasel word”. Com que autores estrangeiros essas “várias pessoas” do mercado editorial se relacionam? Existem autores estrangeiros que publicam inéditos por editoras nacionais? Ou as tais pessoas do mercado editorial só tem contato com autores que já são profissionais e a respeito de obras que já foram publicadas? É justo, ou mesmo honesto, comparar jovens incautos com autores experientes e que, ademais, como a própria autora do artigo admite, trazem já uma boa carga de marketing? Não estamos colocando o obstáculo muito alto para o autor brasileiro?
Autores imaturos devem existir em todos os países — e parte do trabalho do editor é justamente educá-los. Vários desses autores estrangeiros com quem “várias pessoas” do mercado editorial se relacionam provavelmente começaram um dia tão ingênuos e tolos quanto os nacionais. Então será que o “mimimi” está somente do lado dos autores? Não haverá, também, um “mimimi” dos editores, que querem que nossos jovens talentos apareçam prontos, com atitude profissional e tudo, ombreando-os com autores estrangeiros que já nos chegam após um filtro? Será que esses editores não estão com preguiça de “editar” e ficam reclamando que os jovens não trazem as obras prontas? E, por fim, há justiça em julgar a literatura nacional pela sua adequação a um padrão de best-seller imposto de fora?
O resuminho final é, por sua vez, uma mostra de certa arrogância e didatismo. Trata os leitores com uma superioridade que não me parece autorizada pelo nível dos argumentos. Se recapitular o que já fora dito já me parece uma certa atitude “de cima para baixo” em relação ao leitor, a afirmativa número 3 me parece um tanto perigosa de se fazer — especialmente se o texto é, como me parece ser, dirigido a jovens autores. Dizer-lhes “você não é Shakespeare” é uma forma de lhes negar a priori a capacidade de produzir uma obra relevante por sua iniciativa. Completar isso com a afirmativa de que “precisa aprender a dar ouvidos ao seu editor” sugere que é o editor, afinal, que faz Shakespeare. Embora eu realmente acredite que o bom relacionamento com um editor é proveitoso e que bons conselhos nunca sobram nesse mundo, não vejo em que agredir a auto estima de um jovem desta forma possa ser útil. Especialmente porque “você não é Shakespeare” traz de contrabando a ideia de que “ninguém é Shakespeare”.
Essa atitude decadente em relação à literatura, a descrença de que o presente ou o futuro possam produzir algo comparável ao passado, é uma maneira, também, de justificar a falta de criatividade de um mercado que se baseia na reprodução de clichês e no “quadradamento” (sic) de toda uma geração de jovens autores conforme “nichos”. Por isso eu acho tão engraçada a ideia de que este texto recomende que os jovens pensem fora da caixa, quando justamente o que mercado mais tem e mais quer são pessoas que aceitam entrar em caixas e categorias as mais diversas. Afinal, “você não é Shakespeare”, então jogue fora esse texto que escreveu e faz para mim uma obra seguindo a Jornada do Herói, que é isso que o mercado quer.
Valeu por esse texto, J.G.
Eu estava precisando ler algo assim. 🙂