Em português as coisas têm nomes diferentes conforme o contexto. Nem toda coisa é a mesma coisa na mão de qualquer um, ou em qualquer lugar. Este é um guia rápido para estrangeiros ainda não acostumados aos nossos modos.
Mulher rica, quando se veste bem, fica elegante. A pobre, quando consegue, vira perua. Mau gosto de rico é kitsch, bom gosto de pobre é brega. A mulher do pobre o trai, a do rico adultera. O marido pode ser corno ou um traído, e a depender da outra parte, fica até agradecido.
Quem usa drogas pode ser um viciado ou um adicto, tudo depende de onde nasce e o nome que assina. Quem vende pode ser traficante ou contrabandista, o que muda é a quantidade. Se você tem vinte gramas pode tomar vinte anos, mas com meia tonelada a prova é anulada e o juiz até se desculpa pelo incômodo, o mau jeito e o prejuízo. O pobre que vende droga acaba morto bem cedo, e vive cheio de medo, o rico se enche de amigos e escolhe amantes a dedo. Pobre vadio se deita com putas, rico tem garota de programa. Rico tarado é chamado de sadomasoquista e ninguém que seja rico jamais será veado.
Pobre quando bate na mulher, é Maria da Penha, rico é Cinquenta Tons de Cinza.
Quando afana o alheio o pobre vira ladrão, o rico comete um desvio, esse também é mestre em apropriação, mas o coitado do pobre só ouve falar em desapropriação. Na mão do pobre o roubado é dinheiro, na do rico são fundos e mensalão. Ladrão é sempre de pouco, se rouba muito é fraude, é malversação. Pobre rouba de safado, rico é cleptomaníaco. Pobre rouba de ruindade, rico rouba mas faz.
Nem na religião são iguais. Rico muda de igreja e é chamado de converso, o pobre é um vira-folha que não sabe o que quer. Protestante pobre é crente, rico é evangélico.
O que vale para pessoas também se estende aos países.
Se um pobre invade o outro, temos guerra, é invasão. Mas se o rico invade o pobre, é só uma intervenção. Governo rico faz bombardeio “cirúrgico” quando ataca cidades, governo pobre faz terrorismo de estado. Se o exército do país pobre termina a guerra roubando recursos do território inimigo, isso é pilhagem (e é crime de guerra), mas um país rico exige reparações de guerra, espólios etc. Se uma catástrofe faz pobres fugirem desesperados de suas casas, eles se tornam refugiados. Se ricos padecem do mesmo destino eles são desabrigados ou deslocados (a menos que sejam muçulmanos, nesse caso são refugiados também).
Nunca há golpes de estado em países ricos, há apenas mudanças de governo. Isso geralmente acontece quando os cidadãos se manifestam e as instituições agem. Em um país pobre é o povo que protesta e as instituições reagem. Aliás, país rico tem cidadãos, povo é coisa de lugar pobre.
Um país rico pode ter várias minorias linguísticas e religiosas que isso só o torna diverso (etnica, religiosa ou culturalmente). País pobre facilmente se torna instável nesses casos. Guerra civil em país risco são distúrbios. Rivalidade religiosa só produz sectarismo se o país é pobre. E claro, genocídio fica mais chique quando chamado de limpeza étnica. Em um genocídio em geral morre gente de cor (os únicos genocídios de brancos foram os dos judeus e dos armênios). Branco de olhos azuis no máximo corre o risco de sofrer uma limpeza étnica. A sensação deve ser muito melhor.
Se uma eleição em país rico é muito disputada, ela se gera “resultados controversos”. Se o país é pobre, temos uma eleição suspeita. A fraude eleitoral praticada em um país rico é, no máximo, uma controvérsia.
Faz uma diferença muito grande para a terminologia política onde você está: países pobres costumam ter presos políticos, não importa se a acusação é de traição à pátria e as provas são robustas. Países ricos tem dissidentes e traidores. Corte marcial de pobre é julgamento sumário, e o país rico tem pena capital em vez de pena de morte.
Quando você se dá conta desta inumerável sequência de abusos léxicos, começa a perceber que existe algo mais profundo operando no mundo. E tudo se torna perigoso.
Ponto final. Que já falei demais por hoje. Quia habet audes audiendi audiat.