Esta semana o humorista Sérgio Mallandro foi ao programa “The Noite”, de Danilo Gentilli, e deu uma das mais desconcertantes entrevistas da história da televisão brasileira. Antes de comentar, gostaria que você assistisse, para que eu não estrague a sua experiência com spoilers:
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
— Fernando Pessoa.
Ao assistir a entrevista, especialmente após o seu surpreendente final, fui tomado por uma melancolia inesperada, em vez de meramente rir da engenhosidade de Sérgio Mallandro em tomar para si as rédeas do programa e determinar os termos da entrevista de uma maneira tão genial que merece ser preservada para a história da televisão brasileira. Esta melancolia nasceu de uma incômoda constatação.
Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: “O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.” O homem se desfaz em lágrimas. E diz: “Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci.” Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano.
— Allan Moore
Não será a sinceridade o que torna Sérgio Mallandro capaz de convencer a todos de seu drama, de seu sofrimento pessoal por ser sempre identificado como um molecão que jamais cresce e que vive a repetir desesperadamente as mesmas piadas toscas de quase quarenta anos atrás?
Todo artista vive uma certa dimensão trágica: prisioneiro de sua própria obra, tem a sua carreira determinada pelas expectativas de seus leitores. Assim J. K. Rowling está condenada a escrever livros sobre Harry Potter enquanto viver, porque outros livros que escreva não terão o mesmo sucesso. Assim George R. R. Martin se condenou a escrever Guerra dos Tronos até seu último suspiro de vida. Assim Paulo Coelho extraiu cada gota do filão literário que encontrou. Não somente os escritores e não somente os autores comerciais. Imagino se Mondriaan teria sido tão bem sucedido se tentasse pintar naturezas-mortas — talvez as tenha pintado, mas ninguém comprou.
Sérgio Mallandro não é um adulto que não cresceu, um eterno molecão. Certamente não. Todos crescemos ao longo da vida, todos mudamos. Imagino que ele, se não é um retardado mental, também cresceu e mudou. Que sofrimento não deve ser para um homem, já chegando aos seus sessenta anos, ter de colocar um boné virado para trás e atirar ovos na plateia, gritar interjeições sem sentido e falar com uma eterna voz de adolescente rebelde. O personagem não cola mais no ator, e isso já faz muito tempo. Imagino que Mallandro se incomoda realmente com isso. Sinceridade é algo que não se pode fingir. Ele pode não ter cultura para ser realmente o homem interessado em literatura que tentou fingir que era, mas ele deve ter maturidade e discernimento bastantes para se sentir como alguém que engordou e tenta vestir as roupas de solteiro.
Assim como o poeta pessoa, que fingia serem fictícias as suas dores reais, assim como o palhaço deprimido que precisa fazer rir a uma plateia que quer ver tortadas na cara.
Se já é difícil ser um Mondriaan praticando uma arte respeitada, se já deve ser difícil ser uma Rowling, condenada a um personagem, imagino que grau de incômodo deve haver em ser um Mallandro, forçado a manter um personagem simiesco nascido em uma época em que a maioria de seus fãs o assistia em televisão preto e branco.
Mallandro pode ganhar muito mais dinheiro do que eu com suas palhaçadas, mas eu confesso que tive pena dele. Ele nunca conseguirá me convencer de que ainda é o molecão. Sua trollagem foi muito bem fingida, excessivamente convincente para ser só uma trollagem.
De fato o que ela revela é que realmente o dinheiro pode até comprar coisas inesperadas, como a dignidade de um homem ou de uma mulher, mas aquele que se vende sempre fica com uma certa culpa que um dia rebrota.