Nenhuma música até hoje escrita faz jus à riqueza do silêncio. As notas musicais podem ser capazes de evocar os mais estranhos sentimentos, mas não conseguem oferecer ao ouvido e à alma a sensação de delicioso esvaziamento que só se obtem na profundidade do silêncio.
Afirmo isso a partir da experiência de ser um raro privilegiado: não conheço muitas pessoas que possam, como eu, orgulhar-se da experiência do silêncio real. Não, não me diga que você já o conseguiu. Pelo menos não antes de refletir se aquilo a que está chamando de “silêncio” o era de fato. Amigo, eu lamento lhe dizer, mas vivemos em um mundo no qual o silêncio é quase inconcebível, praticamente desconhecido, algo à borda da ilegalidade.
Aonde quer que o ser humano vá, encontra o barulho ou o leva consigo. Quando foi a última vez que conseguiu calar-se e fechar os olhos sem que a paz de sua alma fosse interrompida por alguma música, pelo ruído de alguma ferramenta, pelo som de algum aparelho eletrônico, pela voz de pessoas tensas? Quando foi, tente dizer-me? Eu, que ouso me afirmar como um conhecedor do silêncio, tenho de confessar que mal me lembro da última vez que o conheci. Na verdade, meu amigo, há dias em que suponho, lamentavelmente, que este silêncio que eu tanto venero na verdade somente existe como uma lembrança tão distante que pode ser de um sonho em vez de um fato. Mas na maioria dos dias eu tenho a certeza de que, sim, eu sei o que é o silêncio.
O silêncio é quando você consegue ouvir o ruído do sangue passando pelas veias de sua cabeça, quando o canto do mais frágil pássaro parece alto o bastante para chamar-lhe a atenção. Silêncio é quando não há o ruflar de passos, nem o ronco de motores, nem o burburinho de humanos e nem a arenga de animais. O silêncio “soa” em seus ouvidos como um silvo suave que assanha os seus sentidos. Quando você o ouve, tem a impressão de que existe algo além das montanhas, uma realidade qualquer dentro das pedras, atrás das árvores, passando por entre as nuvens. Esta é pressão da natureza contra os seus ouvidos, esta a força dos dedos do silêncio ao redor de sua cabeça.
Nenhuma música até hoje escrita faz juz à riqueza disso, à beleza que existe nisso — e ninguém o compreende. Somente os que enxergam a beleza da tela virgem, que apreciam a textura delicada do papel ainda limpo, que contemplam a pele imaculada da manhã tão logo nasce o sol. A velhice é como a obra dos pincéis, a vida é um ruído na ininterrupta textura original das eras silenciosas. Velhice e vida são conspirações contra a beleza intocada da natureza.
Não. Não existe esse silêncio de que tenho saudades. Aonde quer que o homem vá, encontra o barulho ou o leva consigo. Nossa civilização se esmera nisso: em construir aparelhos produtores de ruído. Para expulsar de toda parte esta simplicidade original que denuncia o agito fútil da civilização cheia de si, avessa à beleza.