O comerciante Ali ben-Amin al-Assad el-Hajj tinha uma vida regalada em Basra. Herdeiro de longa tradição de mercadores do Golfo Pérsico, de família aparentada à de uma das viúvas de Maomé, desfrutava de fortuna e de prestígio. Mas nunca cuidou de educar seus filhos nos preceitos do Islã ou nas artes humanas. De sorte que seu único filho homem, Ahmed, ao herdar do pai o amplo bazar defronte o porto, foi alvo de um duro comentário do mulá Omar Ibrahim al-Qassam: “é um depravado, filho de um apóstata e uma infiel, que recebeu dinheiro, mas não sabedoria e será uma desgraça para muitos até que o Juízo de Alá recaia sobre ele.”
Ao ouvir esta admoestação rigorosa, Ahmed deu de ombros e a ignorou. Era uma época decadente aquela, em que filósofos eram mais ouvidos do que profetas e a submissão aos desígnios de Alá era apenas uma preocupação secundária. Ele não sofreu recriminações públicas, não precisou ocultar seu rosto em vergonha e nem fugir da cidade à noite para escapar de um apedrejamento. Tampouco preocupou-se com os pobres, em vez disso até reduziu sua esmola semanal, dizendo:
— Por que devo dar meu dinheiro a gente que se reúne na mesquita cada sexta-feira para ouvir aquele barbudo fedorento falar mal de mim e de minha família? Eles que peçam ao mulá Omar que lhes dê de comer e vestir, e não a mim, já que me odeiam tanto.
E desta forma Ahmed continuou tendo suas ceias fartas de tâmaras do Iêmen, figos de Chipre, queijos da Sardenha e até mesmo proibidos licores trazidos das terras dos povos do Livro.
Aos poucos trabalhar para ele deixou de ser algo respeitável. Mesmo diante da dificuldade de conseguir outros empregos, pessoas que prezavam a salvação de suas almas do mármore do inferno passaram a buscar outra coisa que fazer. Os bazares da família começaram a ser servidos por homens de moral duvidosa, seus navios, a ser tripulados por gente de aparência estrangeira e passado nebuloso, de quem se dizia, à boca pequena, terem sido famosos e cruéis piratas dos mares do Oriente. Não tardou que os lucros declinassem, que navios deixassem de voltar, que mercadorias faltassem. Ao completar seus trinta anos de idade Ahmed ben-Ali al-Assad já não era um homem rico, mas um herdeiro falido que lutava para não ter de desfazer-se de seus palácios de prazeres para pagar os numerosos credores.
Um dia, no auge de seu desespero, uma de suas esposas, que ele fizera vir das distantes estepes da Ásia Central, disse-lhe:
— Meu senhor, por que não trazes sedas do Oriente através da rota que passa pelo Kush? Os mares da China estão infestados de piratas, mas as rotas terrestres estão seguras nas mãos de emires muçulmanos até Samarcanda, minha terra, onde encontrarás as mais finas sedas da China e de Cipango.
Ahmed nunca dera ouvidos às suas esposas, especialmente não os dera àquela estrangeira de olhos amendoados que tão rapidamente perdera sua beleza exótica e se tornara uma matrona precoce de formas gordas, rosto pálido e feições exíguas que pareciam rasgadas a faca. Mas era inegável que aquela mulher de nome impronunciável lhe dera uma boa ideia.
— E onde fica esse lugar, essa tal Samarcanda de que só agora ouço falar?
— Fica na antiga terra dos Tocários, entre a China e a fria estepe da Sibéria, entre o gélido Góbi e as montanhas do Teto do Mundo. Segue a velha Rota da Seda que chegarás a Samarcanda e terás diante de ti as melhores mercadorias de três impérios.
A necessidade é uma péssima conselheira, mas Ahmed nunca chegou a saber disso. Depois de confabular com alguns de seus amigos mais confiáveis, nenhum dos quais digno da confiança de mais ninguém em Basra, decidiu investir suas últimas economias na viagem sugerida por sua mulher. Como se tratava, realmente, de uma ideia fascinante, conseguiu reunir sócios suficientes para montar uma caravana e no ano da Héjira de 322, uma semana após o final dos jejuns do Ramadã, partiu com eles em sua longa busca.
Nenhum dos caravaneiros jamais estivera em Samarcanda. Eram todos loucos como Ahmed, ambiciosos da riqueza fácil que fariam ao trazer para Basra lotes e lotes de pura seda. Eram todos gananciosos e imprudentes jovens, alguns viajando com o consentimento de seus pais, na esperança de aprenderem coisas úteis no mundo. Alguns poucos eram de fato pessoas cujas famílias obviamente desejavam manter afastadas por alguns anos ou, com um pouco de sorte, definitivamente.
Esperavam, no entanto, conseguir ao longo do caminho guias que os levassem através dos desertos chamejantes da Pérsia, das montanhas traiçoeiras do Kush, dos altiplanos frios e desolados do Pamir e até mais além. De fato encontraram muitos que se diziam antigos guias da Rota da Seda, gente que dizia ter antepassados báctrios ou sogdianos, gente que jurava ter visto não apenas Samarcanda, mas também Timbuctu e al-Andalus. Gente que, mediante uma ração de comida e algumas moedas, se dispunha a acompanhar a caravana até o Pamir ou até o Tártaro, desde que não permanecessem vagabundos e famintos em sua cidade.
E assim, guiada por incertas opiniões, seguia a caravana, ocasionalmente em círculos, através dos complicados caminhos do Oriente. Todas as noites os viajantes se reuniam em torno da fogueira para aquecer-se do intenso frio dos desertos, enregelados e tristes por estarem tão longe de casa e sem noção de chegar a algum destino.
A conversa nessas ocasiões girava, invariavelmente, em torno do que fazer quando chegassem. Era preciso economizar todo o dinheiro, para que pudessem adquirir bastante seda quando chegassem a Samarcanda. Era preciso manter a esperança, porque apesar das dificuldades do caminho, em breve lá chegariam e banhar-se-iam em suas piscinas de água limpa, teriam suas costas massageadas por jovens de olhos amendoados e quando voltassem, carregados de seda e de especiarias, seriam celebrados nos bazares como homens bem-sucedidos.
Sempre havia alguém que expressava desagrado pela demora, que ameaçava desistir. “Não podes desistir” — diziam. “Se nos deixas morrerás de frio ou fome, ou nas mãos de algum ladrão que ronda estas estradas. Quem sabe que feras não haverá por estes caminhos?” Quando chegavam a algum lugar habitado, a tentação crescia a ponto de ser necessário organizar-se rondas para impedir deserções. Tal precaução começou a se tornar muito necessária desde que um maldito circassiano entrou em delírio dizendo que os guias eram incompetentes, que estavam todos perdidos. “Samarcanda não existe, é só uma lenda que lhes contaram para fazê-los sair do conforto de suas casas!” Infelizes como ele não podiam ser tolerados em um grupo coeso, têm de ser mesmo sacrificados. Tal foi o destino do circassiano, e suas vestes e suas provisões e seu dinheiro, tudo foi distribuído entre os demais. Deixar o seu cadáver nu para que os leões o devorassem foi visto como exagero por alguns, mas naquela ocasião a medida extrema foi aceita como um ato de defesa contra a insídia de um inimigo.
E assim, ao longo das estradas esquecidas, seguia a caravana. Apesar da contínua insistência de todos em afirmar os objetivos da viagem, os guias não puderam evitar certas confusões. Esta situação foi a mais difícil de todas que enfrentaram durante a viagem, pois não apenas divergiam sobre que caminho seguir até Samarcanda, como não sabiam tampouco o que dizer sobre o que lá fazer. Por fim, Ahmed, que ainda desfrutava de uma posição de relativa liderança, tomou o que todos chamaram de “uma medida sensata”, anunciando em voz grave:
— Amigos, me parece que os guias já não estão mais tão seguros se querem levar-nos a Samarcanda ou se foram corrompidos pelo desejo de continuarem comendo a comida que compramos com nosso dinheiro. Parece que já nos disseram tudo que sabiam, do caminho e da cidade. E agora, ou não sabem mais nada ou não querem mais dizer nada. Por que precisamos, então, continuar pagando guias inúteis? Sigamos com o que já aprendemos e vamos aprender o resto no caminho.
Os mais exaltados, inclusive alguns que haviam sido punidos por duvidar dos guias, não perderam tempo em aderir à proposta ousada de Ahmed. Na manhã seguinte, quando a caravana partiu havia mais alguns cadáveres nus para os leões.
Em Fergana, cidade mítica a que chegaram depois de dois duros anos perdidos no Teto do Mundo, tiveram oportunidade de ouvir muitas histórias mais sobre as cidades do Oriente, e de contratar outros guias. No entanto, estes não foram tão bem-sucedidos quanto os primeiros, visto que suas informações não apenas contradiziam tudo que se sabia sobre Samarcanda como ainda desiludiam os viajantes: “Samarcanda está perto, mas não é tudo isso que dizeis. É uma cidade importante, mas já não mantém boas relações com a China e nunca houve lá sedas de Cipango.” Por fim, diziam que a cidade não estaria mais a leste, rumo à China e ao deserto de Gobi, mas sim mais o Oeste, além de Chach, quase nos próprios confins da Pérsia!
Por fim os caravaneiros decidiram partir de Fergana levando apenas o que já sabiam, sem guias, para cruzar a última parte da viagem, confiantes de que Samarcanda estaria a poucos dias de caminhada:
— Vê-se pelo ar e pelos rostos das pessoas — dizia o mercenário sírio — que já estamos na Terra da Seda.
Seguiram por vários meses ainda, sem chegar a nenhum lugar que se parecesse com Samarcanda. Aos poucos, o clima ficava mais frio, não apenas porque se aproximava o inverno, mas também porque se aproximava o temível deserto de Góbi, onde a morte punha incontáveis armadilhas e apenas os mongóis eram senhores relutantes.
Já não mantinham mais calendário, já não sabiam que mês ou estação era, lá onde o clima era tão diferente e parecia não haver um verão de fato. Sabiam apenas pelo ciclo do sol no céu que deviam ser passados sete anos desde a partida de Basra, e que àquela altura já deviam ser dados como mortos por seus parentes e credores.
— Se de fato Samarcanda existe — a contragosto murmurou o sírio — deve ser um lugar triste e frio, perdido nessa planície interminável.
No dia seguinte ficou mais um corpo nu na estrada, mas por lá não havia leões para devorá-lo: os nobres tigres não se rebaixam a devorar carcaças mortas, exigem a iguaria fina da carne quente, do sangue que jorra. E não se intimidam com pequenas fogueiras ou armas de fio estreito. Por uma sorte imensa não atacam em bandos, por uma felicidade extrema um homem é manjar suficiente para uma noite.
Somente a ajuda preciosa e cara dos caçadores uigures permitiu que os audazes viajantes cruzassem o trecho final, e mais cruel, de sua incrível viagem. E provavelmente foi por volta do Ramadã do ano 330 da Hégira que os nove sobreviventes, dos quarenta que haviam partido de Rages na Pérsia, entraram em um lugar que os taciturnos uigures lhes disseram chamar-se “Karamay”, que os viajantes entenderam ser o nome local para Samarcanda.
Era uma cidade, mas que não tinha nada da glória esperada de um grande entreposto de comércio na Rota da Seda. Estava localizada, de fato, à borda desta, mas a bacia da Dzungaria, nome dado pelos uigures ao lugar onde estavam, era desolada e pouco populosa. Raras caravanas passavam, levando poucos produtos. Parecia ser uma época de pouca atividade, de fato. Em Karamay isto significava decadência. A cidade parecia muito mais descuidada do que qualquer outra onde tivessem estado. Os habitantes viviam preguiçosamente à espera das estações, criando camelos e ovelhas, plantando milhete, rábanos ou sorgo vermelho.
— Esta não pode ser Samarcanda!
A afirmação, peremptória, causou a última grande briga dos caravaneiros. Ahmed tentou em vão segurá-los, mas na manhã seguinte, além de dois corpos nus numa viela, o amplo céu de Alá viu seis homens, em direções diferentes, enfrentarem os caminhos traiçoeiros do Tarim e do Taklamakan, para nunca mais se ouvir falar deles.
Em Karamay, tendo gastado suas últimas moedas, Ahmed ben-Ali al-Assad tornou-se um vagabundo, um esmoler. Sem a caridade do pobre povo, tornou-se um salteador. Sem a complacência dos governantes, evoluiu para um condenado. E graças a um lance de sorte, foi vendido como escravo a um comerciante de olhos estreitos que falava em língua persa.
Somente depois de deixar para trás as montanhas do Pamir foi que Ahmed ousou contar ao desconhecido quem realmente era. Seu proprietário, com um sorriso amável no rosto, respondeu-lhe:
— Eu já ouvi falar de Ahmed ben-Ali al-Assad, de Basra. Mas tu, tu não podes ser ele. Faz já nove anos que ele deixou sua terra, seus amigos e sua família, em busca de Samarcanda, onde queria comprar tecidos e ganhar glórias. Desde então tudo que se soube dele foi que andou com mercenários, piratas, ladrões e escroques de toda espécie, aterrorizando as estradas.
— Sabes que isto não é verdade, amo. As pessoas costumam culpar os estrangeiros por todo o mal que acontece em sua terra. Eu mesmo juro que nunca matei nem roubei ninguém.
Era uma mentira, obviamente, pois mesmo não sendo culpado de aterrorizar as estradas do Oriente, Ahmed matara e roubara. Não apenas aos habitantes da Transoxiana, da Bactriana e de Fergana, mas também aos próprios companheiros de sua malfadada viagem, guiada por estúpidos que nada sabiam.
— Na verdade — disse o homem que falava em persa — é bem apropriado que Ahmed ben-Ali al-Assad esteja morto, pois se fores tal homem e eu o anunciar em Basra, não escaparás de ser vergastado cruelmente por seus credores, pelos pais de suas esposas. Há circunstâncias na vida, estranho, em que melhor é ser escravo e estar vivo do que seres quem és, ou dizes ser, e pagar com a vida as dívidas desgraçadas que não pagaste com honra.
Há palavras que amargam na boca quando dizemos, outras que saem sem deixar gosto algum, outras que trazem a doçura venenosa do escárnio. Nem sempre o seu som, quando chegadas ao ouvido, traduz a mesma intenção que a língua emprestou-lhes. Estas, ditas pelo homem que falava persa, pareceram extremamente cruéis a Ahmed ben-Ali al-Assad que as ouviu naquela língua docemente fluida. Em outras épocas ele não teria se importado, pois não tivera nunca honra alguma. Os nove anos de vagar pelo mundo lhe haviam mudado, porém, e a perspectiva de que era impossível retornar ao antigo lar, pelos exatos motivos explicados, abateu demais o seu semblante.
Quando saiu para um canto do acampamento, para ouvir o rosnar dos tigres na noite, como gênios do mal conspirando nos desertos, ele já não era o mesmo. Mal sabia ele que há vezes na vida em que palavras duras são usadas como açoite porque o carrasco, por amor ou outro tipo de afeição, prefere vergastar a alma e absolver o corpo.
Quando amanheceu e o triste espetáculo se revelou, com os raios do sol iluminando através do pórtico do velho templo idólatra a sombra pendente ali, desesperou-se o homem que falava persa, a ponto de chorar diante da cena:
— Meu pai, por que fizeste tal loucura?