Dizer que “os escritores de hoje enfrentam dilemas diferentes dos de antigamente” é uma platitude. Cada época tem seus desafios, gostemos ou não, mas algumas coisas são mesmo novas, outras só parecem. Uma das que me espantam é que tantos autores de hoje se imponham uma cota diária de palavras, como um infeliz sujeito obrigado pelo médico a pagar flexões e puxar ferros para entrar em forma.
A ideia de que o autor precisa escrever com frequência e quantidade não é nova, mas a obsessão com isso é.
Vários autores do passado mantinham um ritmo de produção impressionante até para os padrões modernos. Dickens, Machado de Assis, Balzac, Daniel Defoe, Alexandre Dumas, Dostoyevski… Autores de obras extensas e numerosas. Porém nenhum deles escreveu em seus diários sobre a obsessão de manter um ritmo regular de escrita. Não escreveram sobre isso porque para eles escrever todo dia era tão normal como é normal para um professor “dar aulas todos os dias”.
A primeira verdadeira conclusão a que se chega, portanto, é que o conselho de escrever todo dia é para os amadores e não se aplica aos profissionais: esses já escreverão todo dia por força da profissão.
Você deveria escrever todo dia para manter disciplina.
Você deveria escrever todo dia para adquirir prática.
Você deveria escrever todo dia para ser mais produtivo.
Você deveria escrever todo dia para encontrar ideias.
Você deveria escrever todo dia porque inspiração não existe.
O que ninguém realmente comenta é que esses conselhos são ideológicos e tautológicos e que a ideologia da disciplina cabe mais no exército do que num escritório. A ideia de manter a disciplina, mais do que aterradora, promete transformar a arte em uma obrigação dolorida, um emprego como outro qualquer.
Além do mais, só vale a pena praticar aquilo que está no rumo certo. Repetir um erro não é aprendizado, é reforçar o traço equivocado. A ideia da repetição como aperfeiçoamento é falaciosa de diversas maneiras:
- Lembra o apelo à misericórdia: “me amem porque eu escrevo muito, o que terrível é a sina do escritor!”;
- Tem relação lógica com a abordagem perdulária, a ideia de que o problema pode ser resolvido se investirmos cada vez mais dinheiro e recursos nele;
- Conecta-se com o apelo ao número, a velha ideia de substituir qualidade por quantidade, ou de, pelo menos, achar que a quantidade leva à qualidade.
A arte é um dos campos de atividade humana onde a repetição não ensina muito, porque a “prática” não é uma atividade de repetição. Um artista pode praticar de muitas maneiras, escrever todos os dias é apenas um esforço físico. A ideia de que é essencial escrever todos os dias transforma o fazer literário em um trabalho braçal.
Se o volume ensinasse, Corín Tellado seria a melhor escritora de todos os tempos, por causa de seus milhares de romances publicados. Mas a produtividade não é um fim em si, e Corín Tellado segue sendo uma autora de livros horríveis, como normalmente são os livros escritos pelos que escrevem em profusão. É melhor produzir um diamante do que quilos de carvão.
Na verdade o que importa é que as ideias não estão espalhadas sobre a mesa de um escritório, por mais que estejam disponíveis na internet. Possivelmente você as encontrará com mais facilidade caminhando pela rua ou pensando na morte da bezerra. Se escrevemos sobre o mundo, o melhor lugar para encontrar ideias é claramente no mundo, não no escritório. O autor que acredita sentar e escrever intencionalmente está vivendo um auto-engano (ao ignorar que esse momento regular de escrita é sustentado pelo que faz quando não está escrevendo) ou, muitas vezes, produz obras vazias, que são baseadas em obras que os outros escreveram.
Os antigos autores não precisavam de força de vontade e nem métodos para escreverem muito, eles simplesmente escreviam muito porque escrever era o que eles faziam. Hoje, porém, como há uma quantidade expressiva de autores que, na verdade, detestam ler e escrever, e que só pensam na literatura como um possível veículo de sucesso e fama, é natural que surjam “métodos” para que os autores tenham a “força de vontade” para se começar e se obrigarem a continuar escrevendo, tal como uma pessoa que precisa emagrecer deve encontrar métodos e forças para frequentar uma academia, caminhar todos os dias, etc.
Esse fetiche pela quantidade reflete, de fato, a profunda aversão que muitos dos futuros literatos têm pela literatura. Se realmente amassem escrever e vissem a literatura como uma arte e um prazer haveria mais discussões e mais blogues com matérias do tipo “olha que livro do caralho eu li hoje”, “o que vocês acham do autor fulano que eu li semana passada”, etc. Haveria bem menos postagens do tipo “dicas dos escritores famosos”, “como manter ritmo de escrita”, “plot whisperer para autores”, “método fácil para estruturar uma história etc.”
Porque a obsessão pela quantidade leva ao método. O método substitui a vivência e o prazer. Aquilo que se faz com método é essencialmente algo que se faz sem prazer. A quantificação de tudo não é resultado, porém, dos defeitos dos escritores, mas da mercantilização da cultura no seio do capitalismo.
Tudo mesmo, até o sexo, a arte, até a caganeira. Para tudo existe um produto, um método, um guru, um sistema e um mercado. A mercantilização inclui a alienação dos produtores, que, no caso da literatura, quer dizer a perda da voz autoral. É preciso que todos sigam as dicas, que todos mantenham o ritmo, que todos leiam os mesmos autores, os mesmos sites. Porque a mercadoria deve ser igual. Aquela que não seguir o padrão será a defeituosa, menos valiosa. Então, no fundo, o que você está vendo é a transformação do escritor em um robozinho que somente reproduz os padrões e os processos implantados pelo capitalismo. E esse escravo feliz, que só sabe abanar o rabinho quando alguma campainha metafórica é soado por um Pavlov invisível, se sente um mago no alto da montanha para dizer aos resto dos mortais, “me critica? então faz melhor!” e “eu vendo e você não”. Talvez em um futuro não tão distante existam para as artes, assim como há para outras atividades produtivas, uma organização a impor padrões, ABNT ou ISO.
Tudo isso reflete a violência verbal de um mundo que odeia o diferente e que quer matar a pauladas quem não tenha sido martelado dentro da forma. Como assim? “Fazer melhor”? Quem define o melhor? Se for o Deus Mercado, então é claro que nenhuma obra do crítico será melhor que a do criticado, porque o mercado precisa legitimar sua mercadoria. Como na lenda de Mársias e Apolo. Mársias, o sátiro, inventou a flauta e sentiu tão bom nela que disse, levianamente, que até Apolo, o deus da música, teria inveja dele. Apolo então o desafiou para uma disputa (“me critica? faz melhor”). Mársias aceitou, mas os deuses indicaram para juízes as nove musas (filhas de Apolo) e o Rei Minos. Quem você acha que recebeu a maioria dos votos no desafio? Claro que foi Apolo. Mársias, por sua coragem de afirmar o próprio talento, foi amarrado a uma árvore, esfolado vivo e depois empalado com um galho dela. O Rei Minos, único dos juízes a votar em Mársias, recebeu orelhas de burro.
Toda vez que virem alguém dizer “me critica? faz melhor!” vocês estarão ouvindo Apolo irado. Preparem a pele e o traseiro.
A outra frase, “eu vendo e você não”, é a expressão mais simples do capitalismo. Se algo não é vendável, então não vale nada. Para o capitalismo, a montanha é inútil, útil é a pedra que dela se extrai e deixa um buraco na paisagem. Para o capitalismo, a prostituta tem mais valor que a namorada, pois, afinal, ela “vende” e a namorada não. O capitalismo substitui o amor por uma relação de prestação de serviços. Por que a literatura seria diferente? Por que a arte seria diferente? Se eu vendo, e você não, o que há de mau nisso? Bobo é você que ainda não pôs uma etiqueta de preço em você mesmo.
Desculpem a ira. Estou escrevendo bêbado.
A sinceridade de um bêbado.
Que anseia pelo asteroide.
Porque se não for o amor, será a bomba o que nos unirá.
PARA QUE, COM MIL DEMÔNIOS, EU ESTOU PERDENDO MEU TEMPO A ESCREVER?
Se eu acho que só estou recontando as mesmas histórias que outros já contaram antes, então por que eu não largo o computador e vou cuidar de uma horta? Por que devo me obrigar a uma quota diária de palavras se eu no fundo acredito que eu não tenho nada a dizer?
A Jornada do Herói, por exemplo, reflete a mercantilização da literatura. A mercadoria tem que ser adequada à máxima quantidade de consumidores. Se a Jornada do Herói apela à maioria, então o autor de literatura mercantil deve usá-la. Seu produto (livro) precisa atender ao mercado majoritário. Precisa estar conforme o padrão.
Aqui temos um outro problema: os autores de hoje veem mais filmes do que leem livros. Voltamos ao problema inicial de que em sua maioria os jovens autores detestam ler e só fazem isso se forem obrigados a porrete. Eles nem leem os próprios livros, pagam leitores beta e revisores para isso. Eles não leem os livros dos outros, cobram para lê-los.
Eles veem mais filmes do que livros, é natural que façam de seus livros filmes romanceados.
E se sua experiência de cinema está restrita ao enlatado de Hollywood, então você vai escrever somente coisas nesse sentido.
A ideia de que a literatura está há milênios repetindo histórias é típica de quem leu pouco, ou leu com pouca variedade. Não é nutritivo comer só macarrão, assim como, literariamente, não é nutritivo ler só best sellers.
“Ah, mas Campbell”
Mas a Jornada do Herói é útil para mercantilizar a literatura.
São muitos os que desejam confirmar que a literatura seja realmente repetitiva. Afinal, a repetitividade da literatura é um álibi para a própria repetitividade. É fácil e confortável acreditar que não existe criatividade, que tudo se resume a uma fórmula milenar que eu estou fadado a repetir. Se eu creio nisso, eu me desobrigo de desafiar os limites, de tentar a novidade, de dizer o que eu penso e sou. Eu me relego e me relaxo no papel de um mero montador e remontador de peças anteriormente escolhidas. É um trabalho alienado e sem sentido, mas há quem ganhe dinheiro fazendo isso. E se dá dinheiro, então é moral.
E se a literatura se torna apenas um trabalho, a produção de uma reles mercadoria, é natural que se apliquem a ela as restrições impostas pelo modo de produção capitalista a todas as atividades humanas. O autor precisa ser massificado, assim como o artesão antigo o foi. O livro no futuro tende a ser como as roupas e os sapatos, feitos em tamanhos e estilos predefinidos, fabricados por operários que não controlam a produção.
Na cadeia de produção de uma fábrica, nenhum operário é dono do processo. Na cadeia de produção da literatura, o autor deve seguir os ditames dos gurus, entre eles a Jornada do Herói e os plot whisperers, deve submeter seu trabalho a leitores beta, revisores, editores etc. O produto final é um sapato literário, com números de 36 a 46 e seguindo os modelos dados antes.
É por esse futuro que você luta toda vez que legitima a Jornada do Herói e outros discursos impositivos.