Estamos tomando uma cerveja no Maneira Mineira quando a figura aparece outra vez, envergando o mesmo sobretudo negro de ontem. Tem os olhos mergulhados numa poça disforme de maquiagem borrada, as orelhas pontiagudas adornadas por alguns brincos de prata, a face pálida parece uma tela virgem perdida no meio da cabeleira solta, esvoaçando, de cor morta e penteado inexprimível. Ela não sorri, parece incomodar-se com o ruído selvagem desta praça animalesca onde se acasala a juventude, mas mesmo assim tão deslocada ela está aqui.
Ninguém sabe dizer de onde veio a monstra. Cada um que a vê chegar diz que é de um lugar diferente. Uns dizem que vem da Fábrica, outros a viram subindo da Cotegipe, outros juram que veio da Avenida Getúlio Vargas, há até quem a tenha visto descer do Morro da Panela. Cada noite ela parece vir de uma direção diferente, mas sempre no mesmo passo miúdo e nervoso, com os mesmos olhos serelepes e tristes.
Ela passa lentamente por entre a multidão, deixando um cheiro leve de mofo e de traça misturado com algum tipo de perfume barato, ou sabonete. Sempre com as mãos nos bolsos, com os dentes dentro da boca, com a boca fechada para não entrar mosquito, com a cara amarrada de quem detesta o que faz. Nós a apelidamos de “vampira”.
A vampira de Leopoldina está sempre sozinha quando aparece, no começo da noite. Sempre andando devagar e atentamente, observando com astúcia e com melancolia enquanto as pessoas se empaturram de carne e cerveja. Depois vira uma esquina e não a vemos mais.
Ninguém sabe onde a vampira vive, ou o que faz. Ela não se parece com ninguém que anda pela cidade durante o dia. Talvez exatamente por isso o apelido lhe assente tão bem. Ninguém imaginaria encontrar tal figura vendendo remédios numa farmácia, atendendo numa loja de móveis, ou servindo num restaurante. E por ser branca, e por ter alguma coisa que evoca beleza, ela certamente seria aceita de preferência em qualquer emprego desses. Ela não vende, não atende, não serve. Tampouco se encaixa.
Hoje resolvi seguir a vampira até o seu covil. Dizem que eu sou louco. Acho que sim. Vou seguir a vampira até onde ela for, extorquir-lhe esse segredo. Descobrir quem ela é, apoderar-me de sua identidade.
Para isso vai ser preciso coragem: estou aqui há duas horas bebendo sozinho e ainda não a tenho. Nem a coragem e nem a vampira.
Tenho é medo de que quando ela venha eu não consiga me levantar, de bêbado ou de atônito. Se a seguir descobrirei quem ela é, então ela deixará de ser a vampira e o seu casaco será, sobretudo, apenas uma roupa velha, talvez somente isso. Quando ela deixar de ser vampira, talvez não me fascine, então por que eu devo extorquir-lhe esse segredo? Com que direito quero me apoderar de sua identidade?
Mas eu prometi a tanta gente, afirmei tanto meu desejo. No fundo eu queria mesmo ir com ela, até onde fosse, ser vampiro com ela por uma noite, descobrir o que há debaixo da maquiagem pesada e do sobretudo, despi-la e banhá-la de beijos. Mas ao mesmo tempo eu temo que debaixo da roupa preta e do rímel borrado não senão uma garçonete de bar, uma vendedora de loja, uma caixa de supermercado. Ainda serei fascinado pela vampira quando a vir diante de mim, com espinhas e tudo, com seios que um dia vão cair, ou já caem, com pernas que têm pelos e joelhos que se dobram como os meus, com unhas quebradas, com dentes que amarelaram de sorrisos tristes?
Será que ela sabe que o sobretudo e o rímel e o cabelo e o perfume que cheira a mofo e as mãos nos bolsos e os dentes dentro da boca… será que é de propósito que uma garota comum assim se traveste, se vampira, para ser, pelo menos na noite, alguém diferente? Se eu soubesse disso talvez gostasse mais da vampira. Talvez eu entendesse porque pus esse casaco preto e estes óculos escuros, que fazem os outros me olharem torto e afastam meus amigos da minha mesa. Terei eu seguido a vampira ontem? Faz tantos dias que eu sonho com isso? Terei sido mordido?
Uma nota importante. A referência ao fato de a personagem ter facilidade para achar certos empregos é uma crítica velada ao racismo inerente à regra da “boa aparência”. Não me xinguem de racista.