Tii era um funcionário exemplar e se orgulhava disso. Num país de camponeses que tinham de estragar as mãos na dureza do trabalho para poderem extorquir da terra o seu pão, sentia-se feliz por ter um trabalho afastado da faina e do sol: era escriba.
Trabalhava para Hátor num templo de província, a administrar os cereais. Devia manter sob rigoroso controle o estoque de grãos que sempre devia estar à disposição do povo nos anos de seca, para grande lucro da deusa e gratidão da nação.
Era um templo pequeno, numa cidade sem muita importância. Talvez isto o diminuísse aos olhos dos Grandes Sacerdotes de Luxor ou de Karnak, mas era o que dava ao seu posto o toque especial que a Tii tanto prezava: tinha de acumular uma série de funções — e acumulando-as tornava-se não só mais sábio como também mais feliz. Era quem redigia as cartas, cuidava dos livros, escrevia as orações, mantinha os gatos, ajudava as noviças e cobrava os impostos.
Nenhuma destas funções o desagradava, embora umas fossem mais favoritas que outras. Não era especialmente com ansiedade que ele aguardava o dia de cobrar impostos, mas os rituais iniciáticos das noviças eram algo que valia a pena estar vivo para ver, ainda que apenas de um fresta na porta. Sentia um especial deleite em fazer o estilo correr sobre o papiro, desenhando os hieróglifos com que registrava o movimento das estações e os níveis dos celeiros e devotava especial cuidado a manter boas relações com a sacerdotisa, eventualmente inclusive convidando-a a tomar uma cerveja no terraço ao fim de uma tarde quente enquanto os grous e os íbis voavam sobre o leito prateado do Nilo.
A sacerdotisa era uma mulher excepcionalmente feia e apenas a máscara de Hátor que envergava durante os rituais a salvava de ser deposta de representante da própria deusa da Beleza e da fecundidade. Como muitas mulheres feias, era repleta de recalques e receios; bem como de um forte desejo de poder. Infelizmente para ela, o fato de a necessidade de ser a sacerdotisa da Beleza não ser compatível com sua aparência física a impediam de exercer tão facilmente suas ambições.
Tii sabia muito bem de tais limitações e as ordenhava pacientemente. Mantinha-se sempre próximo e cordialmente atento. Nas tardes quentes, ajudado pela cerveja vermelha do templo, nunca esquecia de respeitosamente elogiar sua sacerdotisa, subornar com receosos elogios as suas hesitações e lentamente assegurar-se necessário enquanto o tempo prosseguia, as estações se alternavam e o resto de fútil viço da sacerdotisa fanava e ela febrilmente se agarrava à sua trêmula decisão de não desistir.
Naquele dia Tii estava especialmente atarefado. As colheitas se aproximavam e era preciso inventariar o estoque de grãos para controlar corretamente a nova safra a entrar. O trabalho mais árduo, o de verificar os armazéns para apurar se as quantidades registradas correspondiam à realidade, esse já fora feito. Então era preciso redigir os extensos relatórios com o montante de cada produto. Depois os relatórios seriam apreciados pela sacerdotisa, que introduziria pequenas mentiras de acordo com seus interesses, e enviado ao grande templo de Tebas, onde os dados nacionais seriam computados pelos Grandes Sacerdotes, que por sua vez produziriam seus providenciais desvios, e postos à disposição do Faraó, que tentaria enxergar através da névoa das estatísticas se seu país estava ou não em segurança.
Mesmo sabendo dos meandros da política, Tii não se deixa levar pela falta de rigor que o poderia distrair das minúcias, criando ainda maiores distorções e potencialmente destruindo a segurança alimentar de Kem. Afinal, um hieróglifo ou mais e erros da casa dos milhares poderiam fazer surgir ou desaparecer o trigo que daria para alimentar centenas de famílias.
Já estava no meio do preenchimento quando uma das noviças entrou no escritório para varrer. Uma núbia de pele escura, cabelos encaracolados, talhe altivo e busto proeminente, negra como ébano, provocante como os Mistérios. Ela lhe sorriu e põe-se a limpar. Pelo ritmo forte de seu braço a manejar a vassoura percebia-se a força bárbara das tribos. E os olhos de Tii interromperam sua atenção ao desfile dos símbolos e a sua boca retribuiu outro sorriso, tentando esconder a cárie do canino superior esquerdo.
A jovem usava um vestido longo de linho drapeado cuja cintura terminava logo abaixo do busto pois, como todas as moças a serviço da deusa, devia trazer o peito nu. Debaixo do saiote de linho Tii se sentiu acordar, mesmo sabendo que era um pobre homem calvo, de mais de quarenta anos, que tinha uma tarefa a ser terminada e apenas um pouco de tempo. O perfume da jovem o embriagava de tão doce e persistente. Impossível não comentá-lo.
— Que perfume extraordinário!
— Está dando para sentir daí? — pergunta ela, com voz potente e grave.
O escritório era uma sala de chão batido, teto de laje de adobe armado sobre troncos, com paredes grossas e nuas. Era enorme, como tudo lá, feito para sobrar espaço em qualquer circunstância, para nunca ser abarrotado; feito para ser forte e eterno, não para ser belo. Devia ter uns oito metros de lado mas sua mobília se resumia a uma mesa de pernas serradas com um banco sem encosto e uma estante de tábuas onde os papiros eram armazenados em recipientes de cerâmica selados com cera. Enormes janelas davam para o nascente e o poente, permitindo que a boa luz de Rá iluminasse durante o dia todo e Tii pudesse trabalhar do amanhecer ao anoitecer. O único ornamento era uma imagem em basalto da deusa com uns dois metros de altura bem no centro do salão e que na verdade servia como sustentáculo do teto diante da fragilidade do material e o vão livre impressionante.
— Tem certeza de que é o meu? — ela insistiu.
— Só sei que é impressionante.
Ela riu, mostrando dentes brancos como a flor do lótus, e se aproximou deixando o vestido farfalhar no chão, como um mensageiro do além no escuro da noite. E Tii fechou os olhos para ouvir, sentindo seus cabelos e pelos arrepiados como no terror do sexo.
— É o meu? — ela perguntou, aproximando o pescoço forte como uma coluna de Karnak para que ele pudesse sentir o aroma que contaminava o ar.
Seus olhares se cruzaram mas a núbia não sorriu de novo. Tii estava rendido, nem conseguia sorrir. Mas o senso do dever havia despontado nela, primeiro do que no corpo carente do pobre Tii. Enquanto ele permanecia de olhos quase fechados à espera de qualquer coisa ou de nada, ela se afastava, terminava de varrer o chão e saía.
Tii contemplou a página que parecia recoberta de garatujas infantis, esboçou outro sorriso e nem conseguiu distinguir o significado dos símbolos negros que se enroscavam como serpentes.
Com pilhas de velhos livros abertos à frente, Francisco procura os dados para a pesquisa escolar. É preciso eficiência para agradar às exigências estúpidas do professor de biologia que pediu aos alunos que montassem uma “árvore” com os ramos da taxonomia em um belo cartaz acompanhado de um texto explicativo relacionado a cada item.
Não é nem preciso dizer que o nosso pobre Francisco está queimando pestanas em quase desespero, afinal, não é um aluno brilhante, embora seu esforço seja normalmente recompensado por boas notas.
Desnecessário dizer que todos estão aproveitando a tarde de sol no inverno para passear, namorar, assistir à televisão, jogar futebol ou falar da vida dos outros, enquanto o pobre está sozinho fazendo o que deveria ser um trabalho em equipe.
Mas no momento em que mais uma vez resmunga alguma coisa impublicável a respeito dos ausentes. No momento em que a aridez da sala de estudos mais se evidencia e a solidão parece mais insuportável, eis que ela entra, cheia de promessas como uma manhã de sábado. Celena, a bela. Cujos olhos brilham como semáforos, cujo corpo tem o traquejo natural das mulheres que seduzem sem querer. Ela é o que se pode facilmente reconhecer como “a bela”, o alvo da inveja das simples mortais, objeto de adoração dos jovens que nem mesmo ousam pôr em palavras monologadas os possíveis desdobramentos de seus desejos. Em seus quinze anos ainda não teve de passar pelas agruras que vincam a expressão do rosto e fazem aparentar a idade. Toda ela respira frescor e alegria. Sua voz ainda se mantém no tom precioso das mulheres em formação, esse tom único e tímido que as meninas perdiam por volta dos dezoito anos, mas foi definitivamente perdido de qualquer idade a partir de algum triste momento localizado em algum lugar dos anos oitenta.
Ela usa um perfume leve, incapaz de embriagar sequer a uma abelha. Mas capaz de alcançar a profundeza mais recôndita da alma, um aguilhão suave, apavorante e venenoso justamente por sua indefesa inocência. Francisco ergue os olhos do trabalho e subitamente o professor de biologia lhe parece uma criatura fantástica da mitologia grega e as notas do bimestre, tão sem sentido quanto os nomes científicos das criaturas vivas que regurgitam na mente como as imprecações dos profetas que amaldiçoavam Jerusalém: *Canis lupus familiaris, Panthera leo, Zea mays, Cæsalpinea echinatta, Enthamœba histolytica, Rododendrum nordicum, Rattus rattus rattus*!
Então a biblioteca pública deixou, por um momento, de ser o severo templo da sabedoria para ser a praia em que Afrodite nasceu das espumas do Oceano.