O pobre escritor está há quatro dias sem dormir direito, tentando manter fresca na mente a inspiração genial que teve para terminar seu romance encalacrado há quatorze meses. Enfrenta dias de desespero diante das páginas desafiadoras, tentando transferir para o papel virtual na tela do computador as palavras novas que lhe chegaram. Uma tarefa inglória, uma luta contra todas as artimanhas, armadilhas e arapucas de seu grande arqui-inimigo: a esposa.
A esposa do escritor acorda tarde e arruma a casa ao som do rádio FM tocando música sertaneja e pagode. Os filhos do escritor acordam cedo e dormem tarde. A família atravessa o dia em variados ciclos de ruído, interrompidos por intervalos de silêncio que nunca chegam a ser suficientes para que uma ideia amadureça.
O pobre escritor tem que fazer o próprio café porque somente ele é capaz de preparar com duas colheres e meia de pó. Sua mulher faria com apenas uma colher e meia, resultando em um líquido de cor ligeiramente mais escura que a do guaraná Mate Couro e que não acorda nem neném de dois meses. Ele não reclama de ter que buscar o pão e fazer o café. Reclama da falta de silêncio. Como muitos, gastaria cada centavo de seu patrimônio para comprar silêncio. Sempre que alguém lhe pergunta o que deseja, mesmo no restaurante, ele sempre inclui como último item “algumas horas de silêncio.”
Pobre diabo, silêncio é mercadoria que está em falta. Não vendem no restaurante, nem no supermercado, nem na feira, nem nas lojas especializadas. O ser humano, ao que parece, procura marcar sua presença no mundo com ruídos, ser silencioso é como não existir: somente os barulhentos são notados, e quanto mais alto o grito, melhor. O escritor não compreende porque seu velho toca-discos de 90 watts de potência sonora é visto com desdém por alguns amigos. Mas imagina.
A esposa do escritor mudou a posição de todos os móveis da biblioteca sem o seu consentimento. Agora a luz forte da janela incide diretamente sobre a tela do monitor e o armário cheio de antigos discos de rock e blues está a três metros da escrivaninha, impedindo que ele, sem ter de levantar-se possa ter acesso à sua coleção interminável de inspiração musical. Escrever agora é um ritual que tem que ser interrompido cada vez que um disco termina. E como são curtos os bons discos. “Deep Purple in Rock” tem meros quarenta minutos e nem uma faixa fraca. O último álbum sertanejo adquirido por sua mulher tem uma hora e quinze e vende por causa de uma faixa que toca no rádio.
Nem todas as preocupações quotidianas são desagradáveis. Algumas são, no fundo, inspiradoras. Ontem o escritor saiu para levar o carro ao lava-jato e gastou a manhã lendo o jornal enquanto esperava ficar limpo. Depois foi fazer turismo no hipermercado, tendo o cuidado de não passar pelas tentadoras seções de livros, informática, papelaria e utilidades domésticas. Porém divertiu-se muito na padaria e comprou muitos queijos exóticos para degustar com vinhos baratos. Essas coisas são inspiradoras. Voltou para casa se sentindo renovado e cheio de mais ideias para o livro. A ideia fresca na cabeça, agitada permanentemente para não azedar.
O que prejudicou foi a volta para casa. Ver a mulher reclamando de ter ficado sozinha com as crianças, ouvi-las chorando querendo presentes que não comprou… Trocar a fralda do bebê enquanto a esposa cozinhava, ajudar a menina mais velha a montar o velho castelo de bonecas que já quase não para em pé. Poderiam ter saído para almoçar no restaurante do outro lado da rua, mas gastou muito dinheiro em queijos finos e agora terá que comer o arroz grudento da mulher.
Depois do almoço, como todo sábado, teve de discutir a relação. Toda mulher gosta disso nos fins-de-semana, a menos que tenha ganhado joias, feito algum passeio mirabolante ou cometido uma traição conjugal. Começa com a reclamação de indiferença e sempre termina com lágrimas. O único jeito de abreviar é chorar junto e depois fazerem amor.
Somente às onze da noite o escritor teve paz, mas também sono. As crianças e a mulher estavam dormindo, mas sua mente estava obtusa. Limitou-se a garatujar algumas idéias desconexas numa folha de papel, usando uma caneta verde subtraída da mochila da menina. “Amanhã termino” — ele pensou.
A esposa do escritor acordou cedo este domingo, mas exigiu o computador durante a manhã para atualizar seu Orkut. Ele foi compreensivo e deixou, afinal queria ver a corrida de fórmula um. Mas depois de terminar a atualização e de checar o horóscopo em trinta sites diferentes, ela comunicou que desejava passear. Compreensivo, ele cedeu, afinal é domingo. Conformou-se em deixar para a noite o que já vinha deixando para depois a semana inteira, desde que a ideia ressurgira.
A esposa do escritor gastou exatamente quatro horas aprontando-se e fazendo ruído pela casa. Ruído de secador de cabelos, ruído de xingamentos a cada tentativa mal-sucedida de fazer uma trança, ruído de coisas caindo, xingamentos para o bebê que chorava, para a menina que incomodava querendo atenção.
Quando, finalmente, ficou pronta, desistiu de passear porque já havia ficado muito tarde. Mas talvez se desse por contente por ter conseguido impedir que ele se concentrasse durante aquelas divertidas horas em que passou molhando e secando o cabelo enquanto ele tentava pescar idéias. Em vez de exigir um passeio que exigisse o carro, ela saiu com as crianças e foi visitar a mãe, deixando o escritor com duas horas de tempo livre: “vou te deixar sozinho agora, você vai ter o reeesto da tarde para trabalhar” — disse ela, condescendente, olímpica, como se duas horas e quinze minutos fossem tempo suficiente para traduzir Guerra e Paz para o turco, incluído o tempo para aprender a língua, com fluência de nativo.
Sozinho em casa, verificou, espantado, que a ideia batera as asas, como uma borboleta — que é lenta, mas não permanece no jardim pela eternidade. Raivoso diante da página em branco que zombava de sua urgência de terminar o romance, o escritor se vinga torturando os vizinhos com heavy metal enquanto lê piadas idiotas em um blog escrito por um adolescente nerd. Talvez uma sacudida nos neurônios faça a ideia “pegar” no tranco, como um velho fusca de bateria arriada. Como não dá para sacudir a cabeça, bota música em alto volume para sacudir o prédio com a bateria de John Bonham. “Vamos ensinar bom gosto a esses aborígines”.
Em algum lugar alguém reage usando armas cruéis, proibidas pela convenção de genebra: um grupo de pagode gospel. E finalmente o escritor entende porque 90 watts são pouco, mesmo sendo mais do que seus sensíveis ouvidos aguentam. A única coisa a fazer é desligar o heavy metal e ir assistir futebol. A desgraça se completa com a derrota de seu time, que perde a liderança do campeonato.
Terminado o domingo, finda a ideia, morta a inspiração. A esposa retorna e lhe pergunta, ternamente, como foi a tarde literária: “conseguiu terminar o romance, querido?”. Ele a contempla desolado, quase indiferente. Tem vontade de perguntar se ela teria conseguido aprender a cozinhar durante o passeio na casa da mãe, mas lembra-se que não tem dinheiro para pagar um advogado de família.
“Querido, quando vai sair o novo livro? Conseguiu um bom contrato?”
Quando ele responde que não há novo livro (são já quatorze meses sem novo livro) e que não há contrato (a editora rescindiu por não cumprimento do prazo) ela sobe nas tamancas: “Mas o que você fica fazendo quatorze horas por dia nesse computador, vagabundo? Fica vendo pornô, aposto! E o que foi que fez hoje? Assistiu futebol?”
O escritor ainda está pensando se é mais barato divorciar-se ou cometer um assassinato.