Rosana se sentia enterrada cada vez que penetrava o recinto asséptico e formal daquele imenso edifício de cimento e vidro em que trabalhava. Para entrar ali tinha de se vestir com a formalidade que não se usa mais nem para ir a casamentos: terninho, lenço ao pescoço, maquiagem, cabelo preso, sapatos pretos de salto, joias de prata discretas e óculos sem aro. Depois que entrava e mostrava seu crachá na portaria, deixava de ser a Zaninha do André e passava a ser Dona Rosana Couto, gerente do setor de análise de crédito do Banco Vênus. Esta outra pessoa não era mãe de uma criança e nem mulher de um poeta, não tocava guitarra elétrica e nem gostava de equitação. Era, em vez disso, uma fera capitalista temida por suas decisões, sempre precisas, e por seu rigor no cumprimento das metas e das normas. Ela detestava ser a Dona Rosana Couto, mas essa era a única de suas pessoas que tinha um salário de quatro mil reais por mês e, por essa monetária razão, Zaninha vivia com uma enorme mão suja de dinheiro amordaçando sua boca e um pesado pé de sapato preto sufocando seu peito.
Antes de entrar, limpou qualquer resto de sorriso com o lenço engomadíssimo, verificou a precisão do delineamento do batom no lábio, raspou a garganta pela última vez e pisou no saguão de ardósia preta encerado. O Luiz Antônio, um Silva que trabalhava na portaria, olhou-a receoso, como sempre faz quando chega algum dOs Que Trabalham de Terno, mas assentiu, vencido, diante da exibição do crachá laranja e branco. Zaninha talvez tivesse gostado do Luiz Antônio, que era sambista e tocava violão, mas Rosana detestava seu jeito risonho e considerava uma grave falta de caráter a falha que tinha na dentição.
Entrou pelo corredor cheio de portas e fez o salto do calçado ressoar como os cascos de um demônio que vasculha as senzalas do Orco. Ao passar por uma porta entreaberta teve tempo de causar o engasgo de uma estagiária que tomava café e conversava com um contínuo, ambos sorridentes e de camisas meio desabotoadas. Tomou o elevador, endurecendo ainda mais o rosto e desceu até o terceiro piso subterrâneo onde ficava seu pequeno feudo naquele imenso aparato de trucidar números e emprestar dinheiro. Rosana Couto ainda não havia chegado a nenhum lugar em termos de carreira. Ainda tinha muitos patamares de pessoas acima de si, gente com gravatas coloridas penduradas no pescoço, quanto mais cores diferentes, mais um degrau, como se cada cor fosse uma medalha de guerra. Muita gente com abotoaduras douradas, dentes clareados, sotaque cada vez mais descuidado e menos papel para ler e catalogar. Ali em seu cubículo de nove por quatro metros ela ainda estava próxima demais da base da “cadeia alimentar”, tinha apenas nove miseráveis escriturários para torturar.
Empertigou-se, assustada pela concessão de um pensamento irônico. Repetiu sete vezes “organograma institucional” e tentou esquecer quaisquer termos sobreviventes de uma quase pré-histórica graduação em Biologia. Dona Rosana Couto chegava aos seu círculo. Perseverança do gênio, insistência do medíocre, teimosia do incompetente. Infelizmente, só o tempo diz qual é qual. E qualquer das três pode ser recompensada bem ou mal.
Daniel conseguira o milagre de ser o primeiro a chegar. Logo ele, quase sempre o último, tivera o desplante de chegar antes de Dona Rosana Couto. Como castigo, distribui-lhe uma porção dobrada do serviço do dia, de forma que a Ana Mamede pudesse ser isenta de pelo menos metade do seu. Precisava da companhia da horrorosinha para uma visita a um cliente suspeito, por volta do fim da tarde. Daniel resignou-se e começou a destrinchar dúzias de dossiês de documentos e propostas de financiamentos. Logo em seguida entraram Marlene, Quésia (nome pavoroso, de pobre morta de fome) e Francisco. Este avisou que Benedito não viria: sofrera uma disenteria.
Ligou o terminal, não sem antes ter feito notar que percebera que alguém ousar usar a sua estação de trabalho em sua ausência, algo que expressamente proibira.
— Foi o Joílson — denunciaram, como em um coro de galinhas de angola, algumas vozes femininas desafinadas.
Joílson chegou tarde, com olhos fundos e vermelhos. Dante e Pedro Luís também tinham os mesmos característicos indícios de festa, o que era um mau sinal para todos, pois Dona Rosana costumava ficar ainda mais rigorosa em cobranças quando suspeitava que algum dos funcionários ousara reservar algumas das horas de necessário descanso para o trabalho em alguma finalidade fútil. Não havendo motivos para distribuir advertências, era fácil produzir algum. Sempre tem uma coisa qualquer errada, uma assinatura faltando ou um carimbo de cabeça para baixo. Nunca faltam desculpas para punir um funcionário que chega para trabalhar com olhos fundos e vermelhos, mesmo que para isso seja preciso começar punindo algum outro.
A manhã de trabalho, como sempre, foi agressivamente ruim. Continuavam chegando pilhas e pilhas de propostas, que precisavam ser checadas e financiadas. Empresas que queriam obter créditos, folhas de pagamento que migravam, inadimplentes a serem cobrados. Cento e sessenta dedos teclavam quase sem parar, digerindo aquelas montanhas de papel em um banco de dados que logo cuspia limites de crédito, autorizações de débito, formulários a preencher e a arquivar.
Às dez horas e trinta minutos tocou o ramal telefônico. Era do décimo-segundo andar: Helvécio Guedes, Diretor de Crédito Rural. Com as pernas nervosas querendo tremer e os dedos endurecidos para que não batucassem no tampo da mesa, ouviu-o cobrar sua imediata presença na sala número 1313 para uma reunião com um misterioso Vice-Presidente cujo nome nem conseguiu lembrar.
Levantou-se incontinenti, despejou algumas ordens e saiu trotando pelos corredores luminosos como aço em direção à porta dupla do elevador expresso. Acariciou o crachá pendente de seu peito e pela primeira vez na vida apertou o botão 13.
Subir 17 pisos em um único dia era o tipo de coisa que nenhum funcionário jamais fizera, não que ela soubesse. Funcionários dos níveis subterrâneos nunca, jamais, em hipótese alguma, eram admitidos além do sétimo piso, geralmente apenas para fins de demissão ou de grave humilhação. O tipo de coisa que ocorria com os traidores que, mesmo sendo funcionários do Banco Vênus, ousavam tornar-se inadimplentes com ele. Não conseguia imaginar nenhuma razão pela qual pudesse estar sendo convocada ao décimo terceiro, mas sabia que era algo muito grave.
As portas se abriram e ela viu uma luz forte, sob a qual um homem de uniforme negro trabalhava por detrás de um balcão azul-marinho, usando óculos espelhados. Sim, era verdade, já lhe haviam dito, quase em tom de segredo, que além do sétimo andar a decoração não era nos berrantes tons de laranja e verde escuro a que estava acostumada, mas sim em preciosos tons de azul-escuro, prateado e bege. Sentiu-se uma intrusa ali, o seu espalhafatoso crachá cheio de detalhes em vistoso laranja parecia como uma denúncia inclemente de seu indefensável plebeísmo, que a obrigava a policiar-se na gramática, a cumprir os rituais e a conservar um rosto eternamente vincado de seriedade.
Exibiu envergonhada o mesmo crachá que, na portaria dos escriturários, usava para humilhar o pobre silva de dentes falhados e sorriso torto. O porteiro do décimo-terceiro piso teve quase nojo de tocar aquele artefato subterrâneo, examinou-o apressadamente e denunciou, em uma voz cava e sem brilho: “você é esperada na sala 1313.”
“Arquimedes Albano de Brito — Vice-Presidente de Crédito Rural” a recebeu por intermédio de sua secretária, uma semi-boneca inflável que sabia falar rudimentos de frases feitas e ser sensualmente atraente. Decorava muito bem aquele ambiente, sua pele e olhos combinando com os tons dos tapetes e sua voz rouca harmonizando com a música baixa e convenientemente angustiante que perpassava o lugar. Indicou-lhe um sofá enorme, de couro natural e retornou para seu lugar à frente de um moderno computador impecavelmente limpo. Dona Rosana Couto percebeu que o espaço em que se movia a secretária sem crachá tinha nove por cinco metros.
Pegou uma das revistas para tentar ler, mas percebeu, de cara, que seria inútil. Havia publicações estrangeiras: Newsweek, The Economist, Focus, Der Spiegel, Bild am Zeitung, La Stampa, Bunte, Time… Forçou os ouvidos para tentar entender a música que incomodava o ambiente e apenas percebeu uma voz anasalada tentando cantar algumas vogais concatenadas, certamente em japonês ou alguma língua incomum. Era definitivamente uma estrangeira.
O ruído de uma pesada porta se abrindo a fez levantar-se. O Doutor Brito veio ao seu encontro e a cumprimentou secamente, pelo nome de guerra, isentando-a do título. Mas não a convidou para entrar em sua sala: não atingira tal privilégio. Conversariam ali mesmo, na ante-sala, diante da secretária.
— Rosana, eu a chamei aqui por causa disto.
A um gesto do Doutor Brito a boneca falante desfilou de seu recinto trazendo um dossiê. Ele o abriu e folheou como se fosse algo pornográfico, arregalando os olhos em cada página.
— De que se trata?
— Calma, Rosana. Calma… — pediu o burocrata enquanto saboreava o ato.
Rosana se sentia quase despida ao imaginar que aquele pervertido estava escrutinando um trabalho seu daquela forma irônica. Por fim, ele passou-lhe a pasta e decretou:
— Isto foi uma fraude.
Zaninha fez um esforço amazônico para tentar arrancar a manopla que cobria sua boca, mas Rosana Couto ainda teve forças para questionar:
— Fraude? Mas eu segui todos os procedimentos e políticas do Banco?
— Exatamente. Eis a beleza de tudo. Você conseguiu fazer com que uma óbvia fraude se travestisse de ares de verdade, impolutos ares de sinceridade. Nem mesmo a mãe desse mutuário desconfiaria de qualquer coisa. Acredito que se ele tivesse analisado a documentação toda que aí está ele mesmo se convenceria de que não estava fraudando o Banco.
— Doutor Brito, não entendo o que o Senhor quer dizer. Da forma como fala até parece que foi algo de bom eu ter deixado passar uma fraude.
— Mas é claro que foi, claro que foi. Você ajudou um de nossos melhores clientes a obter empréstimo subsidiado pelo governo, e fez isso de uma forma tão competente que não há como, legalmente imputarem qualquer responsabilidade ao Banco Vênus. Nós cumprimos as regras, como sempre. Não temos culpa se as regras são falíveis…
Rosana ainda não sabia se estava sendo elogiada ou se estava prestes a ser mandada embora.
— Muito bem, e o que eu devo fazer agora?
— Agora? Nada. Saia para almoçar que já está na hora. Mas ainda esta semana eu quero que você nomeie alguém para sua comissão e se apresente no sexto andar, onde você vai assumir uma gerência de crédito nível três. Quero que saiba que uma promoção assim tão rápida, queimando um degrau do organograma, é algo que normalmente não fazemos. Mas você é um talento especial, que precisamos preservar.
— Sinto-me muito honrada por receber essa promoção, Doutor Brito. Mesmo ainda não tendo entendido muito bem o que especificamente eu fiz para merecê-la. Mas prometo dar o melhor de mim para, inclusive, merecer outras, em breve.
— Assim é que se fala, Rosana. Agora me diga com sinceridade? Você quer o meu cargo?
Rosana respondeu sem pestanejar que queria.
— Então você precisa me empurrar para cima ou me derrubar. Lembre-se disso. Tenha uma boa tarde. Ah, a propósito. A partir de agora você deixará de ser efetiva em cargo de oito horas e passará a ser comissionada em caráter extraordinário. Queremos mais de você, e pagaremos muito bem por isso.
E tendo dito isto, girou nos calcanhares e adentrou de novo sua imperscrutável sala.
Rosana saiu de lá sentindo-se ainda aérea, sabia que sua remuneração mais que dobraria, mas sabia também que teria imensas responsabilidades, seis andares e três subsolos de responsabilidade sob si, além do térreo, aquele inútil espaço onde vagavam sem rumo os malditos clientes pessoa física com seus minúsculos problemas.
Chegou em seu setor a tempo de ver a horrorosinha da Ana Mamede saindo para almoçar, trotando suas pernas tortas e sua bunda flácida. Entrou na sala e contemplou todos aqueles terminais executando a proteção de tela institucional, todas aquelas pilhas de papéis cuidadosamente desordenados e tomou consciência do cheiro de resina e de fungos que tomava aquilo ali: cheirou a si mesma e quase não acreditou que tivesse podido suportar trabalhar em lugar tão detestável.
Sentou-se em seu trono elevado, no ângulo nordeste da sala retangular e começou a chorar. Rosana, a impassível, se comovia diante da iminente agonia, agora definitiva, da pobre Zaninha amordaçada e triste. Rosana antevia, impiedosa, um classificado de jornal “vende-se guitarra elétrica”. Levantou-se trêmula e olhou de novo seu pequeno feudo de computadores, papel, gavetas e escriturários. “Qual dos idiotas vou nomear para meu lugar?” Resolveu o óbvio: o maldito do Dante, aquele empertigado de uma figa que tinha tanta dificuldade em sorrir quanto tinha em fazer com método as coisas que lhe mandava executar. Apesar de distraído e carrancudo, era o único que conhecia o serviço de cabo a rabo e tinha competência suficiente para mandar cada um fazer o que devia.
Em algum lugar de sua mente morriam os últimos acordes de “Purple Haze.” Então notou um quadro torto na parede, justo o que expressava a missão da empresa. “Malditos faxineiros porcos”, xingou e foi até lá retificar sua posição. Notou então que havia algo por trás. Movida pela curiosidade, deslocou o quadro e viu uma portinhola de cofre.
Não tinha segredo, apenas uma fechadura grosseira, do tipo que se usava no século XVII ou antes. Com o grampo de cabelo e a experiência de líder estudantil que já fora presa em greve, abriu em dois segundos e viu o que havia dentro: uma moeda. Pegou a moeda, fechou o cofre, arrumou o quadro, foi sentar-se outra vez.
Era uma moeda curiosa, com uma efígie indistinta de um lado e um desenho emaranhado do outro. Nenhuma indicação de origem ou valor, apenas uma inscrição a.d. mccc … taxis et tass princ. hanseat. Era de prata, obviamente, prata de lei. Seu formato ligeiramente irregular sugeria muita antiguidade. De posse da moeda Rosana Couto perdeu a vontade de ir em casa comer. Ligou para a empregada que não almoçaria com a família e depois pediu uma marmita no restaurante da esquina. Ficou sentada na penumbra daquele cubículo subterrâneo adorando a possibilidade de subir para o sexto andar.
Comeu na cantina do subterrâneo, revendo planos, sonhando com férias sempre adiadas usando as gordas reservas que teria graças ao salário de oito mil reais por mês (“quanto mesmo ganha um gerente de nível três?”). Em algum lugar Zaninha chorava, Rosana porém se enrijecia cada vez mais. “Será por pouco tempo, em quatro anos no máximo já terei um bom pé-de-meia e então vou poder reunir de novo as meninas e tentar gravar nosso disco” — mentia para si enquanto Zaninha morria.
Quando terminou de comer, contemplou a moeda e viu, espantada, que a efígie ali estampada era parecidíssima com a sua própria. Guardou de novo a moeda no bolso pensando em mostrá-la para o Roberto. Zaninha tentava respirar, mas uma manopla quebrava seus dentes.
Quando Dante chegou para o turno da tarde, chamou-o a um canto e comunicou-lhe sua decisão. Deu-lhe insinceros parabéns, pensando apenas na própria ascensão.
— Deixo-o com a responsabilidade de continuar com competência o trabalho que era feito aqui, competência que me levou a subir. Siga firme e venha para cima junto comigo.
Dante assentiu com a cabeça e Rosana saiu mais cedo para compensar a hora de almoço não vivida.
No dia seguinte, pela manhã do centésimo quarto dia sem sexo no casamento, após uma noite infernal de cólicas, beijou maquinalmente a face do pequeno Artur e despediu-se secamente do Roberto. Sequer tivera tempo de mostrar-lhe a maldita moeda.
Chegando ao prédio, certificou-se de que tudo não fora um sonho: sobre sua mesa jazia um envelope pardo contendo seu novo crachá: branco, não mais laranja. Galeno Borges, um dos gerentes do sétimo andar veio dar-lhe boas vindas e uma recomendação segura:
— Leva apenas objetos pessoais. Esta fase de sua vida morre aqui.
Subir o elevador naquela manhã foi como abandonar cinco anos de sua vida, ao preço de quatro mil reais e uma guitarra por mês.
Ao lado de sua mesa agora havia uma janela, fosca mas ainda assim transparente o bastante para que ela pudesse contemplar a paisagem mórbida do formigueiro humano de onde imergia cada manhã, maquiada e vestida. De vez em quando via o dorso de um pássaro que passava voando e sentia um desconforto no braço, uma tosse no peito, uma vontade incongruente de ter sido outro o rumo de sua vida.
Tomou um anti-ácido e começou a manipular canhestramente o terminal, mas o desconforto não cedia, parecia confundido com as cólicas e com a morte de Zaninha, finalmente. Até que, de repente, sem outro aviso além dos que tivera ao longo de cinco anos e uma guitarra de vida, uma dor pungente apertou seu peito e os olhos começaram a faiscar como se mil demônios riscassem o ar no meio de uma noite escura. Quando gritou, não conseguiu saber se ouviram. Não havia equipe de primeiros socorros a tempo, Rosana Couto virou uma estatística médica, uma apólice que sofreu sinistro, um processo por danos morais, uma pensão da previdência privada e um pote de cinzas espargidas, conforme o confuso desejo de um testamento redigido nove anos antes e quase esquecido em um tabelião suburbano, sobre as águas de um regato rural desconhecido do Doutor Brito, um lugar onde certa noite dois jovens fizeram amor sob o luar e se apaixonaram tocando músicas dos Beatles em um violão empenado, avô de uma guitarra que ficara por três anos sem dar ao mundo um acorde.
Mas o Doutor Brito, que de nada disso poderia saber, teve a iniciativa inteligente de homenagear a valorosa funcionária falecida nomeando no cargo que deixava vago o seu designado braço direito, Dante Flores da Costa, um jovem que exemplarmente mostrava a cara de um novo Banco Vênus, um funcionário que, por sua competência e dedicação, atingia uma gerência de nível três com meros doze anos de casa, tendo recebido em dois dias seguidos duas promoções.