Em algum momento, em 1995, eu datilografei em uma página de papel-ofício os seguintes versos: O que seria / de minha rebeldia / se eu não fosse um rapaz da burguesia / acometido pelo tédio da escrita / e um diploma superior?
Decerto eu estava pensando nas polêmicas de Lobão, artista cuja arte pouco me interessa, mas cuja filosofia sempre me instigou. Acho que se João Luís Wönderbag escrevesse logo o primeiro volume de suas memórias produziria uma obra mais relevante que toda sua música junta.
Minhas palavras tinham a ver com algo que já se notava em 1995, mas hoje está tão escancarado que nem se pode mais deixar de ver: a rebeldia se transformou primeiro em uma estética, e hoje é uma ideologia. Primeiro escavou seu nicho na cultura, hoje se tornou a face mais comum do sistema.
Você sabe o que é o “sistema”? Bem, metade dos revoltados do mundo falam mal dele mas parece que tampouco sabem. O sistema é uma entidade abstrata, cada vez mais abstrata. Interessa-lhe que seja abstrato porque nos controla. Você reconhece um falso rebelde pelo simples fato de ele ter a permissão de ser um sucesso.
Dia desses, enquanto lia um artigo surreal do Hermano Vianna elogiando Chimbinha e Joelma eu percebi com toda força o que já se insinuava há quase duas décadas: está havendo uma ideologização da arte, uma politização do fazer artístico. Trocando em miúdos: as pessoas estão analisando as obras de arte (sejam música, pintura, literatura ou outra coisa) não pelo seu valor propriamente dito, mas pela sua “postura” — real ou suposta — em relação ao “sistema”.
Hermano Vianna tece elogios quase sexualmente explícitos a Chimbinha porque a Banda Calypso fez sucesso à revelia do “sistema”, porque ela representa um sintoma de que a as “elites” (outra entidade abstrata que serve de Judas para o esquerdismo cultural) estão “perdendo o controle”. A música da Banda Calypso não importa, o importante é seu papel no combate ao sistema.
Esse bolchevismo substituiu o comentário especializado sobre as características da arte em si, vista como algo “elitista”. O próprio Hermano Vianna lamenta que Chimbinha não seja legitimado como artista, apesar dos milhões de discos que vendeu – o tipo de discurso dos que defendem a prosa rala de Paulo Coelho. Até mesmo o pseudo-funk é tido por ele como um “movimento” (outro termo político) que merecia ser tratado pela Secretaria de Cultura e não pela de Segurança Pública. Talvez porque na opinião do crítico exista algo de cultural nas mortes e na violência que cercam o “movimento”.
Acontece que está na moda ser rebelde, embora o Brasil nunca tenha sido um país comunista (ou talvez exatamente por isto) as nossas elites culturais se travestem de profetas da revolução pela via cultural, já que nunca conseguiram avançar na luta pela via política devido à acomodação (já no século XIX Martins Pena detectava que no Brasil ninguém é mais conservador que um liberal no poder). Esta revolução cultural, é claro, não passa de uma desculpa porque, feita pela via do popularesco, ela destrói mais do que constrói. Talvez alguns líderes de tal ideologia realmente achem que estão limpando o trecho para o nascimento de uma nova cultura ou de um novo país, mas suspeito que muitos querem apenas ganhar dinheiro com isso. Porque hoje em dia a revolução se transformou em uma lucrativa indústria.
Desta forma, a “elite cultural” de nosso país resolveu se apropriar da estética popular e utilizá-la como instrumento de sua influência sobre o próprio povo. Quanto mais vazia for esta estética popular, mais útil ela se torna como instrumento. O pseudo-funk que as elites querem que saia da Secretaria de Segurança Pública não é mais o gênero praticado por Cidinho e Doca, com sua mensagem de orgulho e amor-próprio (“Eu só quero é ser feliz / andar tranqüilamente na favela em que eu nasci”), mas a trilha sonora de acasalamento de brontossauro cantada por pseudo-gente como o MC Créu (“Créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu”).
Da mesma forma, o popular por que se interessam estas elites não são artistas de talento nascidos no seio do povo, como a maravilhosa cantora baiana Virgínia Rodrigues, mas qualquer coisa que seja caricata e popularesca, que apresente o povo como uma massa desmiolada em permanente cio. E mesmo no seio do popularesco (que é a perversão do popular) não escolhem artistas que trazem elementos de choque. Não basta que seja ruim, é preciso que seja um ruim sem discussão.
Em “1984”, George Orwell predisse que no futuro as sociedades totalitárias buscariam o controle do povo justamente pela difusão de música ruim:
Aquela canção estivera assombrando Londres nas semanas anteriores. Era uma das incontáveis canções parecidas publicadas para benefício dos proletários por uma sub-seção do Departamento de Música. As letras de tais canções eram compostas sem qualquer intervenção humana em um instrumento conhecido como “versificador”.
E exatamente de que letra estamos falando? De uma que diz coisas assim:
Foi somente uma ilusão sem sentido
Que passou como um dia de abril
Mas com um olhar e uma palavra
Os sonhos me agitaram
E roubaram meu coração.
E que tal compararmos isso com um dos recentes sucessos de certo cantor popular?
O que posso fazer
Se a vida é assim
Apostei tudo em seus beijos
E assim mesmo te perdi
Não me peça perdão
Não chore, por favor
Suas lágrimas são falsas
De mentira foi teu amor
Não me diz mais nada
Nem sei como me enganou
Se a lua não é queijo
Nem as nuvens de algodão
Para que seguir mentindo
Com amor e ilusão?
Não existe rebeldia alguma nesta letra composta para emburrecer quem a ouvia e manter as massas sob controle. Não existe rebeldia alguma nas letras da música popularesca que toca no rádio hoje. E também não existe rebeldia alguma nas fórmulas de rebeldia que os autores e compositores de hoje produzem.
Em 1991 Lobão já esculachara os rumos do pop nacional dizendo que num futuro não muito distante o rádio estaria inteiramente ocupado por “rebeldes Barbie”: gente de pose rebelde que, no fundo, não têm nenhuma consciência artística e apenas seguem a fórmula da moda.
Segundo o Sr. Wönderbag estaria na moda ser rebelde, falar palavrão, combater “o sistema”, usar drogas, fazer tatuagem, etc. Doze anos depois de suas proféticas palavras já tivemos RBD, hoje temos “Crepúsculo” (com seus vampiros cuidadosamente desinfetados) e o pseudo-funk e o pseudo-calipso: o sistema abraçou a rebeldia e a transformou em mais um departamento.
Imagino que no futuro haverá até associações de anarquistas, clubes de rejeitados, vampiros que não chupam sangue, tarados que não estupram, assassinos que matam apenas em sonhos, etc. Tudo cuidadosamente planejado para que a arte seja sempre algo seguro, tal como os versos do brega Wanderley Andrade, cheios de duplo sentido e de oxímoros que fazem pensar:
Sou um psicopata / Mas eu tenho muito amor / Pra dar, amor pra dar.
Afinal, além dos quinze minutos de fama, todos temos o sagrado direito de sermos rebeldes dentro do curral.