The band is just fantastic
That’s really what I think
— And by the way: which one is pink?1
O dia 15 de setembro de 2008 fica na história como o dia em que o sonho musical chamado Pink Floyd definitivamente acabou. Poucas bandas mereceram um lugar tão nobre na história do rock’n’roll, poucas tiveram fãs tão fiéis, poucas deixaram um vazio tão enorme no universo do pop. Poucas tiveram uma carreira tão conturbada e cheia de tragédias. A morte de Syd Barrett enterrara um mito, mas não dera um fim ao sonho de uma geração de fãs que nunca viram o espetáculo circense-musical psicodélico do Pink Floyd em ação, especialmente depois do concerto no qual Roger Waters, superando 26 anos de amarga separação, voltou a tocar com os ex-companheiros. Mas Richard Wright significa o fim, significa também que a reunião não fora senão uma homenagem em vida ao amigo moribundo.
Richard William Wright foi o tecladista e um dos co-vocalistas do Pink Floyd. Isto apenas é um currículo que muito virtuoso inveja. Autor solo de composições de sucesso comercial (“Us and Them”, “Summer ‘68”, “Remember a Day”) ou apenas belíssimas melodias ignoradas (“Wearing the Inside Out”), membro do grupo em sua fase “heróica” (1966-1980) e autor de duas pequenas obras-primas em carreira solo (“Wet Dream”, de 1978 e “Broken China”, de 1995).
Um dos poucos pianistas auto-didatas a ter expressão artística, Rich tocava uma infinidade de instrumentos de teclado, sopro e percussão, embora tenha sempre preferido o modesto e sibilante órgão Farfisa (numa época em que Moogs e Mellotrons dominavam a sonoridade pop). Talvez estas duas circunstâncias tenham contribuído para as características únicas que emprestou ao som do Pink Floyd: aquelas lentas progressões de notas, suavemente lembrando o vento erodindo uma duna que abrem “Shine On You Crazy Diamond” seriam impensáveis nos dedos de um tecladista barroco e virtuoso como Keith Emerson ou Rick Wakeman. A suave simplicidade de Wright foi sempre atraente, pelo menos enquanto ela emprestava brilho ao talento vocal e instrumental de David Gilmour.
Ainda nos anos setenta, durante a tormentosa luta pelo controle do nome e da fama do Pink Floyd, Wright e Gilmour “tiraram férias de Roger Waters” lançando, em 1978, dois álbuns solo de qualidade comparável ao que o Floyd estava fazendo na época. “Wet Dream”, o esforço pessoal de Wright, contém faixas que ele compusera ao longo da década mas que Waters nunca permitira que fossem registradas pelo Pink Floyd (a única composição sua pós-1970 que o Floyd Gravou foi “Us and Them”, mesmo assim com letra de Waters). É um album totalmente oposto ao som denso e claustrofóbico do Pink Floyd na época, cheio de melodias delicadas e mediterrâneas, que celebram momentos singelos da vida, abrilhantadas pelo talento de dois músicos que acompanhavam o Pink Floyd na época: Snowy White (Guitarra) e Mel Collins (Sax).
“Mediterranean C” é um instrumental tranqüilo, baseado inicialmente em um tema de piano, que se desenvolve quase como uma canção do Pink Floyd. Não ficaria mal em nenhum álbum anterior a “Animals”. Em “Against the Odds”, uma suave e lenta canção de amor, Rick não está muito feliz como letrista, mas a melodia é absurdamente bela. O instrumental “Cat Cruise” possui uma qualidade muito semelhante à de qualquer canção de “The Dark Side of the Moon” ou “Wish You Were Here”. “Summer Elegy” é a menos “pinkfloydística” faixa do disco, lembrando alguma coisa das baladas do Queen. “Waves” apresenta um belíssimo solo de saxofone de Mel Collins e se desenvolve de forma muito interessante melodicamente, embora ocasionalmente lembre “Shine On…”. É nas faixas finais, “Mad Yannis Dance”, “Drop In From The Top” e “Funky Deux” que Wright manifesta um estilo mais descolado do Pink Floyd e demonstra todo seu talento de composição para a música pop. Sim, “Wet Dream” é pop. Mas é um disco incrivelmente belo, melodioso e delicado. Disco para roqueiro dar de presenta para namorada.
Wright nunca foi citado como uma peça fundamental do Pink Floyd, no entanto, sua saída logo antes de “The Wall” destruiu a delicada harmonia que sustentava a “poção sonora” do grupo, tornando-o mais agressivo e mais depressivo. Sob a batuta dos pesadelos e manias de Waters o Floyd se torna ainda mais soturno e arrítmico, até desembocar no beco-sem-saída estético que foi “The Final Cut” (tido por muitos como o canto do cisne do grupo). O efeito de sua saída claramente mostrou a importância de sua presença – e de seu senso musical – na construção da sonoridade que todos amavam.
Talvez por isso, entre outras razões, ele acabou tendo a chance de sair da cena musical de forma honrada, com dois trabalhos nos quais pôde se resgatar artisticamente: o derradeiro álbum do Pink Floyd, “The Division Bell”, cuja faixa final É a definitiva e melancólica despedida de todos, e o álbum solo “Broken China”, no qual destila seu amor conjugal e os dramas de sua vida particular de forma sensível e sem a revoltada depressão que marcava os trabalhos de Roger Waters. Wright consegue ser romântico sem ser passional, consegue ser progressivo sem ser rebuscado e ser sério sem ser negativo. Escrevendo sobre um tema difícil, a longa depressão vivida por sua mulher, que muito afetara a vida de ambos, Wright produz um álbum que não fere o ouvido nem induz à tristeza. Os vocais sussurrados contribuem para um clima intimista. De forma geral, “Broken China” é um álbum perdido do Pink Floyd, graças à produção e às letras de Antony Moore (que colaborara nos dois álbuns anteriores do grupo) e à participação de vários músicos que haviam participado das turnês anteriores: Tim Renwick (guitarra) e Kate St. John (vocais). A presença de Sinnéad O’Connor nos vocais de duas faixas é outra razão de interesse por esse soturno álbum que, no entanto, destila uma simplicidade que induz à contemplação – e não à tristeza.
De lá para cá Wright esteve muito pouco ativo musicalmente, mas já não precisava. Seu lugar na história do rock e no coração dos fãs já estava conquistado. Certamente Rick não será lembrado como o maior tecladista da história do pop, mas dificilmente será esquecido, enquanto virtuosos como Rick Wakeman e Keith Emerson perdem prestígio com o tempo.
A razão disso é que, do alto de sua econômica simplicidade, a música do Pink Floyd é mais durável e eterna do que as loucuras do ELP ou as viagens místicas do Yes. Além do que, o grande tema do Pink Floyd é o melhor de todos os grandes temas: o ser humano. Não anõezinhos verdes, deuses orientais, unicórnios brancos ou personagens literários, mas o ser humano em sua densa e complexa personalidade.
Num mundo em que a música se tornou um deserto de idéias, talvez valha a pena lembrar dias passados em que éramos mais jovens e ainda livres para brincar com a vida sem ter medo de que a noite viesse. Ou então sucumbiremos a esse mundo de ruídos aleatórios onde ninguém tem escolha e vivem querendo puxar nossos cordões e alavancas.2
-
A citação em inglês é da música “Have a Cigar” (de Roger Waters e David Gilmour), do álbum “Wish You Were Here” e se refere à falsa impressão de boa parte da imprensa nos anos 60 de que “Pink Floyd” fosse uma pessoa. ↩
-
Os dois trechos em itálico ao final são traduções de trechos das músicas “Remember a Day” e “Night of a Thousand Furry Toys”, de Rick Wright. ↩