Às vezes bate um desânimo grande, a sensação de desperdício de um tempo precioso que poderia ser usado em tantas coisas. Afinal, quem lê e lerá nossos escritos? Para quê eles servem? A sensação de desânimo é parte da psique do escritor em qualquer lugar do mundo, mas é especialmente presente se você é um autor que pratica uma literatura de resistência. Desperdício de tempo é praticamente uma definição abrangente de “arte”, mas isso é mais evidente quando você pratica a sua arte à revelia do “mercado”, pois esse teria o poder de legitimar qualquer desperdício ao propor-lhe preço. O desânimo é mais evidente quando percebemos que estamos no lado “perdedor” de uma grande luta. Não é fácil fazer uma literatura de resistência: requer caráter e comprometimento, em vez de um preço e de um prazo.
A maioria dos autores brasileiros ainda não percebeu que, no contexto da civilização globalizada, a literatura em língua portuguesa é uma literatura de resistência. Está marcada como secundária, será colonizada, seu destino é ser atacada, acuada e, se possível, destruída. Continuar a escrever em português, no mundo de hoje, é um ato de resistência política. Envolve a esperança de que, se conseguirmos reverter a onda, poderesmo reconstruir as nossas pontes com o passado, e seguiremos um povo dotado de identidade própria.
No contexto de uma cultura globalizada, intermediada em inglês, o papel de todas as demais literaturas tenderia a ser subalterno. Então só há duas posições possíveis: aderir ou resistir. Não se engane: fazer arte é fazer política. Alguns dirão que não, mas não ligue para eles: fazer arte sem entender seu aspecto essencialmente político é ser um ignorante. Assim como tem gente que não sabe que é imune a doenças por causa das vacinas que tomou em menino, há quem pratique a arte e não perceba o fazer político que está envolvido.
Algumas literaturas, pelo seu tamanho e pela própria natureza de sua cultura, tendem a sobreviver e crescer espontaneamente, mesmo que, sob certos aspectos, ainda sejam tuteladas ou, pelo menos, influenciadas pelo inglês. Outras conseguem ter um diálogo mais dialético com a influência acachapante do global e, embora seja difícil dizer se sobreviverão a longo prazo, pelo menos ainda apresentam vitalidade. Na terceira categoria estão as literaturas pequenas demais para terem “escala” (odioso termo econômico que contaminou a arte) ou que já estão avançadamente colonizadas. Nesse grupo há literaturas antigas e respeitáveis; entre elas… talvez… a brasileira.
A subalternidade de uma literatura se torna evidente quando os principais autores que nascem no(s) país(es) onde ela é praticada começam a escrever em língua estrangeira — fato que ocorre devido a uma estratégia de mercado (ambição global) ou à simples “colonização” (que leva a língua a se tornar minoritária em seu país de origem). Swift, Yeats e Joyce escreveram em inglês, não em irlandês. A literatura irlandesa floresceu entre os séculos VIII e XVIII, mas hoje praticamente não tem praticantes e a língua é falada por menos de 3% da população da Irlanda. Entre os autores sul-africanos, você provavelmente ouviu falar de Nadime Gordimer e J. M. Coetzee. Ambos são africânderes (descendentes de europeus e falantes nativos de ‘afrikaans’, um dialeto holandês), mas escrevem em inglês. Você provavelmente conhece V. S. Naipaul, mas não sabe que no país dele (Trinidad y Tobago) a principal língua vernácula não é o inglês. Se você conhece três autores romenos, provavelmente são Eugene Ionesco, Tristan Tzara e Mircea Eliade. O que têm em comum foi terem escrito em francês.
O fenômeno da subalternidade já começa, devagarinho, a afetar a literatura brasileira (não sei até que ponto a portuguesa). A subalternidade tem duas direções: a colonização do mercado local por uma literatura estrangeira e o foco dos autores locais voltado a um público estrangeiro.
Esse segundo aspecto não é necessariamente coisa ruim. Sempre houve, mesmo nas mais sadias literaturas, o fenômeno do autor que escreve em língua estrangeira. Ele pode fazê-lo para exibir erudição; como certos ingleses dos séculos XVIII e XIX que escreveram em árabe, persa e línguas da índia e até se tornaram tradutores destas literaturas; ou porque uma obra específica entre as suas tinha um público mais amplo que o local, como o alemão Humboldt, que escrevia em francês, que era a língua das relações internacionais até 1850.
O problema da subalternidade começa quando uma literatura começa a ser rapinada pela sua relação com a cultura global. Isso ocorre de duas maneiras:
1) Quando a literatura estrangeira (no original ou em tradução) começa a competir com os autores locais e
2) Quando os autores locais começam a mirar leitores estrangeiros.
A competição da literatura estrangeira silencia as vozes locais, rompendo a continuidade da identidade nacional. Os novos autores deixam de se espelhar, ou mesmo de conhecer os nomes anteriores de sua cultura e passam a se formar com base em autores estrangeiros. Frequentemente a ponte se faz através de traduções ruins, o que tem impacto severo na qualidade literária das novas gerações.
A necessidade de competir em um mercado externo leva os autores a se adaptarem a gostos alheios — o que acaba alienando esta literatura de seu povo.
A literatura subalternizada perde a condição de consciência nacional e passa a ser um instrumento de desinformação e estupefação do povo, ao mesmo tempo em que retira do autor a capacidade de diálogo com sua cultura local. Quem vai querer saber do que se passa em Quixeramobim ou Cataguases? Quem levará a sério um herói chamado Eleutério?
Esse texto não teve por objetivo consolar ao autor desanimado, nem fazer qualquer recomendação de natureza moral. Quem o lê está livre para ainda agir e escrever como quiser. O objetivo é dar contexto, para que o autor, especialmente o desanimado, se enxergue no mundo e aja conforme a realidade, consciente de seu papel nela.