A literatura europeia dos séculos XIII a XIX está repleta de obras com títulos curiosos em latim e versando sobre problemas espirituais, feitiçaria, alquimia, magia e coisas afins. Entre estas obras encontramos os livros de feitiçaria propriamente ditos, os “grimórios”, os tratados de teologia escritos por gente supersticiosa e também algumas primitivas obras de investigação anteriores ao método científico — entre estas incluídas obras de alquimia.
Dos grimórios há muito a se dizer, mas não é deles que eu pretendo falar. Com toda sua superstição e heresias, esses livros eram, em geral, bastante inofensivos — exceto pela sua capacidade de fazer as pessoas perderem tempo em estudos infrutíferos.1 Se você se interessa por esse tipo de literatura, procure por obras com títulos curiosos como Picatrix, Livro de Abramelin, Grande Chave de Salomão, Lemegeton ou Pequena Chave de Salomão (às vezes também chamado de Goécia ou Goethia, por causa de uma edição em inglês organizada por Aleister Crowley), Livro de São Cipriano, Franga Preta, Clavícula de Salomão etc.
Entre os tratados de teologia que tratavam de assuntos sobrenaturais, o Formicarius, de Johannes Nieder, e o Magnalia Christii Americana, de Cotton Mather são os mais notáveis — ambos, inclusive, citados por H. P. Lovecraft em suas obras. O primeiro é mais interessante, por comparar a sociedade humana a um grande formigueiro. Essa obra contém um capítulo inteiro que descreve de que maneiras Satanás procura corromper a igreja, mas este não é o seu assunto principal.
Esses tratados se caracterizavam por ser geralmente impressos, enquanto os grimórios tendiam a ser manuscritos, e por receberem edições bem cuidadas, semelhantes às de bíblias e outros textos litúrgicos. Se você encontra um livro antigo bonito que fala de demônios, o mais provável é que se trate de uma obra com imprimatur da Igreja. Entre os livros mais perturbadores desta categoria, o Pseudomonarchia Daemonum, de Johann Weyer.
As obras de investigação anteriores ao desenvolvimento do método científico incluem estudos alquímicos e astrológicos e também certas obras muita próximas do que seria, séculos depois, a antropologia. Entre estes o mais interessantes é o De Masticationes Mortuorum in Tumulis (“Sobre as Mastigações dos Mortos nos Túmulos”), de Michaël Ranft, que, apesar do nome pomposo, é apenas uma tentativa de documentar as lendas de mortos-vivos da Europa Oriental. As obras de investigação científica ou pré-científica tendiam a ser impressas com menos luxo, em formatos mais baratos, como se pode ver na diferença entre o frontispício do Formicarius, mais acima, e o da obra de Ranft.
Apesar de eivados de ignorância, esses livros chegavam até a trazer lições importantes. Ranft, por exemplo, que era bastante cético em relação aos eventos que investigava, contribuiu para a conscientização a respeito dos enterros prematuros (o que foi um progresso) e para a criação do mito do vampiro moderno (o que é uma prova de que o ser humano é uma criatura besta que consegue perverter a interpretação das obras mais bem-intencionadas).
Alguns livros, porém, eram perniciosos porque iam além da ignorância e do preconceito, naturais de uma época em que as ciências ainda eram muito incipientes, e adentravam o terreno perigoso do ódio.
Entre essas obras que exploravam o ódio preconceituoso, nenhuma é mais deprimente ou foi mais influente que o Malleus Maleficarum (“Martelo das Feiticeiras”), de Heinrich Krämmer, com prefácio de Jacob Sprenger.
O “Martelo das Feiticeiras”, às vezes reeditado em alemão como Hexenhammer, é um livro misógino, obscurantista, irracional e cruel. Eu já tive esse livro em mãos (em uma edição da Rosa dos Tempos) e o ódio que ele me despertou por todas as pessoas e instituições que estiveram envolvidas na “Caça às Bruxas” foi definitivo. Você não consegue mais usar inocentemente o termo “Caça às Bruxas” depois de ler uma obra como o Malleus.
Ao contrário da doutrina normal da igreja, que até então era cética sobre a existência real de feiticeiras (estas eram consideradas como pagãs ou hereges, não como servas literais de Satanás), esse livro consagra uma reviravolta e passa a pregar abertamente a existência de feiticeiras, de pactos com o diabo, de missas negras, de hóstias sangrentas, de unguentos de gordura humana e toda coisa odiosa que é normalmente associada à bruxaria europeia. O livro parece, acima de tudo, ter uma obsessão com a ação de bruxas para tornar os homens impotentes ou fazer seus pênis encolherem até desaparecer. Tamanha obsessão que fica até parecendo que a impotência de um pênis diminuto era algo que incomodava pessoalmente a Krämmer.
A misoginia do livro é tão evidente e extrema que se alguém resolvesse denunciar uma mulher como bruxa seria impossível escapar. Qualquer sinal de felicidade, beleza ou sucesso pessoal podia ser “prova” de bruxaria. No entanto, infelicidade, feiura e fracasso também podiam ser, devido aos castigos de Deus contra os satanistas. Ou seja: a única maneira de não ser culpado de bruxaria seria nunca ser acusado de bruxaria.
Enquanto a Europa vivia o apogeu da alquimia, praticada principalmente por homens, o Malleus dirige a sanha inquisidora contra as curandeiras e as parteiras, revelando uma orientação claramente de combate à mulher. A gente chega a se perguntar se esses filhos de chocadeira tinham mães ou irmãs. Krammer tinha sido expulso de Innsbruck, Áustria, por causar a revolta da população e dos prelados locais com a sua insistência em indagar uma moça acusada de bruxaria a respeito de suas práticas sexuais, usando uma linguagem que ruborizou a todo mundo. Em suma, é a obra de um tarado vingativo.
O livro se revestiu de toda autoridade possível, incluindo o imprimatur de um bispo poderoso (Speyer) e a sanção papal através da bula Summis desiderantes affectibus (“Desejando com supremo ardor”). Por causa disso foi considerado “o texto oficial” da ICAR sobre bruxaria2 e assim foi adotado em vários países, causando o aumento da violência da Inquisição em geral, e contra bruxas em particular.
Em suas páginas encontramos doutrinas preconceituosas e cheias de ódio ao feminino. Começa por já adotar a forma feminina no próprio título: Malleus Maleficarum é o “Martelo das Feiticeiras” (maleficæ), no feminino, não o Malleus Maleficorum, “Martelo dos Feiticeiros” (maleficii), no gênero masculino neutro. Em vários lugares o texto afirma que os homens têm uma tendência natural a crer em deus e serem pios, enquanto as mulheres têm uma tendência natural a serem lascivas, volúveis, estúpidas e descrentes.
São tantas as coisas perniciosas no livro que ele é quase ilegível. Ele acusa as mães de filhos natimortos de serem bruxas que os sacrificaram a Satanás. Acusam as mulheres de roubarem o pênis de seus maridos à noite para levá-los aos sabás. Acusam as mulheres, em geral, de tendências canibais. Ao fim e ao cabo, sai-se da leitura com a impressão de que ser mulher já é um pecado.
Como as mulheres são inerentemente más, o único meio através do qual podem salvar suas almas e evitar a perdição do mundo seria através da castidade e de uma vida de oração. Como a vida monástica é para poucos, Krammer concluiu que as mulheres em geral estavam destinadas a ser bruxas e que só restava ao estado e à igreja fazer o máximo possível para extirpar a bruxaria do mundo. Ou seja: esse é um livro que declara guerra de extermínio a todas as mulheres do mundo!
Três quartos das vítimas da “Caça às Bruxas” foram mulheres, em geral as mais belas, as mais talentosas ou as mais geniosas de cada cidade. Por onde a “Caça às Bruxas” passasse, deixava um rastro de pavor nas mulheres (e também nos homens, mas principalmente nelas), com a lição de que deveriam evitar embelezar-se, deveriam ser em tudo submissas a todo mundo e que não deveriam ter quaisquer aspirações — ou poderiam acabar na fogueira, depois de passarem por vários instrumentos de tortura.
O mais extraordinário de tudo isto é que boa parte do dano causado pelo Malleus Maleficarum ocorreu fora do controle do estado e da Igreja, pelas mãos de indivíduos cheios de ódio e movidos por uma perseguição pessoal contra o feminino. Sim, é verdade que o Malleus tem autor historicamente conhecido, Heinrich Krämmer, um local de publicação definido, Colônia, uma bula papal a sancionar as teses do autor, indicando que o papa tivera conhecimento de alguma versão do livro antes de publicado, tem o imprimatur do bispo de Colônia, tem a aprovação da Faculdade de Teologia da Universidade local e tem uma recomendação do próprio imperador do Sacro-Império Romano-Germânico, além de ser precedido de um prefácio de Johann Sprenger, teólogo respeitado da época.
Apesar disso, há evidências que sugerem que todo esse endosso que o livro supostamente tinha foi inventado por Krämmer.
O imprimatur de um bispo não quer dizer que uma obra é a doutrina oficial da igreja, apenas que passou por uma censura (muitas vezes desatenta) e não se achou nela nenhuma heresia ou motivo que justificasse a proibição.
A bula papal não sanciona o livro em si, apenas recomenda a pessoa de Heirich Krämmer como um jesuíta honrado e inquisidor autorizado pela igreja. Krämmer provavelmente solicitou esse apoio do papa para tentar reparar a sua reputação, destruída depois de sua atuação no Tirol austríaco, ocasião em que seus métodos causaram revolta no povo, devido à sua obsessão por interrogar uma acusada sobre práticas sexuais aberrantes de que ninguém, nem a própria acusada, tinha ouvido sequer falar. Expulso de Innsbruck pelo bispo, sob a acusação de difundir o conhecimento do pecado em vez de pregar a palavra de Deus, e com a recomendação de recolhimento a um mosteiro (o equivalente medieval para dizer a um prelado para se internar num hospício e ir se tratar), Krämmer usou suas conexões políticas e alguma dose de manipulação para obter o apoio do papa, que o recomendou ao bispo de Estrasburgo.
O prefácio de Sprenger parece ter sido… um prefácio! Uma recomendação genérica, provavelmente escrita por solicitação amigável. Talvez Sprenger não tivesse nenhum conhecimento do conteúdo do livro, apenas uma relação anterior de amizade com Krämmer, ou com algum amigo comum, e topou escrever o prefácio esperando uma retribuição futura. Esse tipo de situação é comum até hoje.
É verdade que ele foi sancionado pela Faculdade de Teologia de Colônia, mas há indícios de que foi o decano da Faculdade que o aprovou, forjando as assinaturas dos demais membros do corpo de doutores. Como Krämmer se tornou depois muito poderoso, esses teólogos não tiveram coragem de enfrentá-lo abertamente, só dois o fizeram: um afirmou que não recomendara o livro e outro declarou que nem fora consultado a respeito.
Enfim, há grandes evidências de que o livro foi o produto de uma fraude perpetrada por um tarado poderoso e influente, que conseguiu manipular até o papa e o imperador empregando relações políticas e muito FUD. Uma espécie de Olavo de Carvalho do século XV.
O problema é que o livro ganhou vida própria depois de publicado.
Ele se tornou rapidamente tão popular que o bispo de Colônia não pôde impedir sua reedição — e quando isso foi tentado de novo ele já estava sendo impresso em toda parte, não somente em Colônia. Tanto prestígio ele adquiriu, que as edições seguintes começaram a incluir ilustrações, que naquela época eram caríssimas de se fazer, requerendo a concorrida arte da xilogravura.
Krämmer rapidamente se tornou um “astro” da Inquisição e ainda mais influente que antes, o que lhe permitiu seguir os métodos que descreveu no livro. A partir de um certo ponto, ficou parecendo que ir contra o Malleus era ir contra o papa, a Santa Igreja Católica e a própria doutrina cristã. Mesmo depois da morte do autor o livro continuou popular e muitos outros tarados como ele continuaram a usá-lo. A “condenação” da igreja nunca o alcançou porque os caçadores de bruxas eram poderosos e o papa, mesmo naquela época, só tinha o poder que lhe era emprestado por suas relações políticas.
O livro inspirou a Caça às Bruxas até nos países protestantes, embora Kraemmer nunca tenha atuado nestes e ali a autoridade papal não vigorasse.
Por isso eu o considero perturbador. Não é apenas ser a obra de um tarado poderoso, cheio de preconceitos e ódio, é o fato de que, uma vez conjurados esse ódio e esses preconceitos na forma de um livro, ele ressoou na mentalidade coletiva do povo e ganhou vida independente, deixando atrás de si um rastro de ódio, horror e chacinas que perdurou por séculos. Enquanto o mundo redescobria as artes e as ciências, vivendo o “Renascimento”, por inspiração desta obra causou-se um profundo dano à psicologia coletiva da Europa, daí nascendo uma série de comportamentos sexuais e sociais que ainda não superamos até hoje.
1O poder de sedução desse tipo de literatura não se limitava às pessoas ignorantes: até bem recentemente, já no século XIX, era comum que os mais brilhantes cientistas tivessem algum tipo de envolvimento com o ocultismo, através de disciplinas como a alquimia, a astrologia, a teologia ou, mais recentemente, o espiritualismo. Entre os cientistas mais atuantes nesses campos, Isaac Newton e William Crookes foram os mais célebres.
2Apesar disso, como você verá mais tarde no texto, o Malleus nunca foi, de fato, um texto oficial da Igreja.
Malleus Maleficarum foi um livro “misógino” na época e um horror sem comentários….. Hoje temos outro exemplo de ódio e preconceito…Que ignora o preceito constitucional de igualdade de direitos e deveres, ignora o preceito de inocência até o trânsito em julgado, que ignora o valor de igualdade da palavra entre homens e mulheres, que traz privilégios e proteções desproporcionais para um dos “gêneros” HUMANOS ignorando e atropelando qualquer direito de defesa. Esse Malleus Maleficarum moderno se chama Lei Maria da Penha…. um compêndio de normas e regras MISANDRICAS de ódio ao homem escrito por femistas esquizofrênicas que em nome de uma causa justa criaram essa verdadeira aberração jurídica….
Faltou dizer que o Malleus Maleficarum não só nunca foi reconhecido pela Igreja Católica como foi até mesmo incluso no seu Índice de Livros Proibidos. Portanto foi sim uma condenação plena e clara, e não uma “entre aspas”. O que muitos não sabem é que a Igreja jamais teve esse poder todo que lhe atribuem contemporaneamente. Em geral os livros que ela “proibia” circulavam livremente, pois tratava-se apenas de uma admoestação, uma advertência de que tais livros eram nocivos para a visão cristã.
Eu tenho o Malleus Maleficarum e concordo que se trate de uma obra de mente doentia. No entanto, não consigo ter essa mesma reação passional, pois ele é tão inacreditavelmente insano que é difícil vislumbrar uma intenção clara ou mesmo uma maldade intrínseca. Me parece pura loucura mesmo. Ele tem até passagens benevolentes e trechos que isolados podem ser usados para invalidar todo o restante. Na verdade, um advogado de defesa competente de uma bruxa, conhecendo seu conteúdo, poderia facilmente inocentar sua cliente pela leitura do mesmo.
O problema é que a maioria naquele tempo não sabia ler, e dos que liam, a maioria lia mal. Se mesmo hoje, a maioria dos alfabetizados é capaz de extrair interpretações grotescas de textos simples, imagine naquela época! O resultado é que bastaria uma personalidade mais esperta e dominante, que soubesse usar talentos retóricos, típico dos farsantes, para conseguir passar uma aura de autoridade divina perante uma multidão de ignorantes.
Por fim, aí vem o ponto crucial de toda essa questão. As acusações de bruxaria são o equivalente antigo das acusações públicas que hoje levam multidões a linchamentos. Em geral, as bruxas e feiticeiros eram simplesmente trucidados pela população ensandecida. Os tribunais do Santo Ofício foram as primeira tentativas de dar um processo judicial à tais acusações, e na verdade mais inocentavam do que condenavam.
O Malleus Maleficarum foi como uma espécie de contra ataque que ajudou a inverter essa tendência e tirar o controle jurídico eclesiástico de cena dando ares de conhecimento “científico” ao tema.
Apesar disso, há muita controvérsia quanto a real influência do Malleus. Não é claro se ele pode ser considerado uma efetiva causa, ou se era mais um efeito de uma tendência mais caótica.
Pessoalmente acho ele delirante demais para ter tamanha influência. Quem se decidir a lê-lo criteriosamente, dificilmente não fica confuso. Provavelmente era usado tal como normalmente se usa a própria Bíblia, por meio de citações de trechos isolados. E para isso, construir em torno dele um mito de autoridade deve mesmo ter sido crucial.
Já tive este livro, porem não consegui ler. Vou comprá-lo novamente. Obrigatorio pra quem lê literatura gotico-medieval – marcio “osbourne” silva de almeida – joinville/sc