Em 2015, quando eu comecei a participar do Quora.com, a minha primeira impressão foi a de ter encontrado um lugar fascinante, onde os usuários faziam perguntas sinceras sobre qualquer assunto e as respostas eram dadas por pessoas que tinham algum domínio deles. Respostas ruins recebiam votos negativos. Respostas boas recebiam votos positivos e eram compartilhadas. Havia muita gente até famosa que participava do site. Lembro de ter visto lá uma resposta escrita por Noam Chomsky, várias por Adrián Lamo e também diversos políticos americanos e britânicos.
Corta para 2019 e o Quora — tanto faz se é a versão original ou a sua tradução em português — se tornou um ambiente desagradável, quase tóxico, em que as pessoas que escrevem respostas são bombardeadas com dezenas de solicitações por dia e quase todas as perguntas são tolas. Perguntas tolas que atraem muito tráfico ficam de pé, por mais que você as denuncie, mas perguntas boas que geram respostas polêmicas são denunciadas como “precisando melhorar” e desaparecem. Tem gente que responde só para dizer que não sabe responder, em vez de simplesmente ignorar a pergunta, ou dá respostas horríveis e equivocadas.
O padrão geral das perguntas e das respostas segue baixando e até quem tenta escrever bem se perde no meio do lixo e acaba sujo também, dando respostas ruins, sendo rude com as pessoas ou fazendo perguntas tosca.
Por que isso aconteceu?
Acredito que é basicamente por causa do PPQ, o Programa de Parceiros do Quora. Esse Programa foi pensado como uma maneira de atrair tráfego a qualquer custo e produzir engajamento dos visitantes. Por causa do PPQ, a convivência do site deixou de ser uma busca de conteúdo de qualidade e se igualou aos demais: uma corrida estúpida atrás de likes.
Isso acontece porque o PPQ é uma expressão da mentalidade distorcida do capitalismo desenfreado, o que leva as pessoas a terem uma sensação vaga de que não há mais justiça e nem bom senso ali.
No capitalismo ideal todos deveriam ser recompensados pelo seu “trabalho duro”. Na prática, sabemos que não é assim, que no capitalismo a recompensa não é para quem trabalha, mas quem tem o poder de tomar para si a riqueza gerada pelo trabalho alheio. Esse poder deriva de uma posição econômica ou política ou militar e esse adicional que é tomado do trabalhador é a “mais-valia” citada por Marx.
O Programa de Parceiros implementou um modelo claro e inequívoco de produção de mais-valia porque ele não recompensa quem produz, mas quem dirige a produção. Tal como em uma fábrica o gerente era mais bem remunerado que o operário que realmente produzia, no PPQ a remuneração é destinada a quem cria tópicos e atrai engajamento — e não para quem responde às perguntas.
Saiamos do Quora e analisemos o mundo real, esse lugar aonde as pessoas hoje quase nunca vão, pois ficam com os narizes enfiados em telas virtuais.
Estamos cansados de ver gente que trabalha muito e não ganha quase nada, enquanto gente que quase não trabalha ganha muito. No mundo real, a sensação de injustiça não é tão forte porque, no fundo, todo mundo está cumprindo um papel. A maior parte de nós não chega a conhecer os níveis mais altos, onde os salários são exorbitantes e alguns literalmente não fazem nada, apenas possuem cotas de capital.
O ressentimento não é porque o outro ganha mais, é porque fica evidente que o outro não se compromete. Esta não é uma situação de anomalia: é um modelo de negócio. É assim que funcionam Cabify, Uber, iFood, etc. Milhões de pessoas se esfalfam de trabalhar todos os dias, ganhando pouco, enquanto os aplicativos geram milhões de dólares para gente que nem sabe onde vivem esses trabalhadores.
O Quora ganha dinheiro com o conteúdo postado. Isso é mais ou menos o que fazem os aplicativos. O Programa de Parceiros do Quora escolheu remunerar intermediários, os perguntadores. Como os perguntadores estão mais perto de nós, sua remuneração é visível e permite a percepção da injustiça inerente a um modelo em que milhões são convidados a trabalhar de graça para gerar receita para uma empresa com sede no estrangeiro, em troca de premiações virtuais (“Top Writer”) ou irrisórias (brindes).
Enquanto milhões de pessoas escrevem boas respostas, dedicando tempo e atenção, sem nada ganhar, há pessoas que supostamente “escrevem boas perguntas”, dedicando alguns minutos (ou segundos) a cada uma. Para o modelo de negócios do Quora, os minutos ou segundos gastos na elaboração de perguntas são mais importantes que as dezenas de minutos (em alguns casos horas ou dias) investidos na redação de respostas fundamentadas, bem argumentadas e bem redigidas. Então ele remunera regiamente quem é capaz de perguntar muito, em vez de quem é capaz de responder bem.
Se você não sente nisso uma injustiça, é porque você está do lado vencedor dessa equação — ou porque ainda não parou para refletir. Segue o fio.
Uma resposta satisfatória envolve pesquisa, dedicação e revisão. Dificilmente é possível redigir mais de uma boa resposta por dia. No entanto, pessoas de raciocínio rápido conseguem perguntar mais de dez vezes por dia (a meta diária do Quora, por sinal, é que cada Parceiro do PPQ faça dez perguntas ao dia).
A longo prazo, esse modelo resultará em uma proliferação cada vez mais desesperada de perguntas, porque a maioria das pessoas raciocina com base na lógica do atirador texano. Acreditam que se perguntarem muito terão uma chance maior de fazerem uma pergunta boa, que atrairá boas respostas e viralizará.
Resultará, também, na diminuição da quantidade de perguntas que receberão boas respostas porque os respondedores se sentirão acuados por uma crescente chuva de perguntas, em sua maioria tolas ou desinteressantes.
Quando eu entrei no Quora eu recebia uma ou duas solicitações de respostas por dia. Eu gastava mais tempo lendo e comentando respostas alheias do que respondendo. Com a proliferação cada vez maior de perguntas, senti-me pressionado a respondê-las, para não deixar ninguém “no vácuo”, e assim eu parei de ler respostas alheias e comentá-las.
Quanto mais eu respondia, porém, mais perguntas apareciam, como uma mitológica Hidra. Por fim comecei a ignorar ou “passar” dezenas de perguntas cada semana, mas eu sempre explicava por que não as respondia. Com isso as perguntas foram ficando mais específicas, de forma que eu me sentia mais tentado a respondê-las e dava menos atenção às respostas dos outros e menos atenção à qualidade de minhas próprias respostas. Psicologicamente comecei a me sentir acossado, como se alguma entidade invisível me estivesse submetendo a um interrogatório.
Então eu simplesmente passei a ignorar as perguntas que não me interessavam, de forma que tenho hoje mais de 300 solicitações de resposta, e não vou responder quase nenhuma.
Então eu descubro que todo esse investimento pessoal, escrevendo mais de cinco mil respostas no todo desde 2015, algumas delas com mais de 4000 palavras, resultou em ganhos polpudos para pessoas que apenas fizeram perguntas. Atentem que algumas de minhas melhores respostas foram escritas, nem sempre em tom de ironia, para atender a perguntas tolas e vejam como uma parte significativa de meu esforço remunerou quem nem pensou direito para perguntar — mas foi bafejado pela loteria da viralização.
A sensação de ter sido explorado é muito real e não há quase nada que vá mudar isso. Mesmo sabendo que 40% do tráfego de meu blog vem do Quora e que mais da metade dos clicks em AdSense lá nos meus anúncios foram dados por gente que veio do Quora, ainda assim me sinto explorado porque não ganho quase nada em AdSense e não ganhei quase nada do Quora (ganhei uma jaqueta bacana há dois anos).
Então é isso. As pessoas odeiam o programa de parceiros porque ele escolheu remunerar quem investe menos tempo e menos competência na construção do Quora. Isso explica porque tantos bons autores saíram do Quora-EN e porque tantos outros ainda vão sair de todas as versões do site.
Por mais que premiações virtuais afaguem o ego e jaquetas sejam bonitas, dinheiro ainda é a principal razão pela qual as pessoas trabalham. A ideia de trabalhar por amor à camisa não é um conceito capitalista — nem comunista, aliás.
Se para os autores isso é frustrante, não o é menos para os leitores, que agora encontram perguntas bizarras como estas:
- Por que o SPFC é o time que mais troca de técnico no Brasil?
- Os médicos cubanos que deixaram o Brasil eram espiões infiltrados para criar células de guerrilha?
- Por que Deus não existe?
- Jair Bolsonaro está pronto pra 2022, Quem seria um vice ideal?
- Por que ateus costumam sentir-se superiores por não acreditarem em Deus?
- Onde se localiza o Monte Sinai da Arca de Noah?
Além de perguntas repetidas e de perguntas que parecem seguir fórmulas, como uma série que localizei em inglês, perguntando “X escrevia suas próprias músicas?” — em que X pode ser um/a intérprete ou grupo musical famoso. Vi dezenas de perguntas assim, aludindo ao Pink Floyd, Fleetwood Mac, Beatles, Uriah Heep, Stevie Wonder etc.
Essas perguntas são feitas porque seus criadores querem ganhar dinheiro com elas. Na falta de boas e genuínas perguntas, eles mandam qualquer coisa que lhes passe pela cabeça ou então criam esses esquemas geradores de perguntas.
Parceiros mais qualificados podem também traduzir perguntas do inglês, passando a usufruir da receita que a tradução gerará. Para mim isso ainda não é possível porque não sou um parceiro tão qualificado.
Ter entrado no PPQ me permitiu entender melhor como esse esquema funciona e como ele se aproveita de gente que responde com boa vontade, ao mesmo tempo em que remunera quem se aproveita do trabalho dos outros e dá visibilidade a quem escreve textos polêmicos por amor da polêmica em vez de trabalhar com uma visão de qualidade.