Uma das coisas mais viciantes do mundo é o sono. Quando você se acostuma a dormir bem, depois não quer parar mais. No começo está tudo bem, você dorme cinco horas agitadas cada noite, acorda e se firma de pé a a poder de muito café e vai trabalhar. Mas um dia qualquer resolve dormir mais cedo porque está entediado ou se sente um pouco mal, então passa dez horas na cama a ressonar como um monstro mitológico e só desperta com o marretar de um despertador. No dia seguinte você se sente tão bem que, ao voltar do serviço, no fim da tarde, resolve tirar uma pestana e só acorda depois de nove e meia da noite. Então toma banho, lê alguma coisa, ouve um disco e acaba que vai dormir cedo de novo. Quando toma noção das coisas já faz uma semana que está dormindo entre oito e dez horas por noite, a sua pele melhorou, você está de ótimo humor, as coceiras pararam, a azia não vem mais depois das refeições, você perdeu peso, seu ritmo cardíaco está quase normal depois de quinze anos de taquicardia e a cabeça parou de doer de manhã.
Nessa fase as pessoas ao redor começam a perceber e logo passam a julgá-lo. Olham para você diferente, com espanto ou pena, veem as marcas do vício em seu rosto, leem na sua aura que você andou experimentando sono profundo e que até voltou a sonhar. “Isso é inadmissível” — dirão alguns. Os amigos tentam afastá-lo do lugar onde você se rende: “Cara, vamos sair esta noite, haverá um espetáculo legal e …” você não vai sair, você já não gosta de passar a noite em espetáculos legais e… cansativos. Colegas de trabalho começam a lhe oferecer medicamentos: “eu vivia dormindo, então comecei a tomar esse fitoterápico aqui e agora vivo ligada” — diz a secretária ao analista de sistemas quando você passa pela cafeteria e eles estão fazendo seu intervalo. Os superiores imediatos começam a se interessar pela sua carreira e a observar a necessidade de um comprometimento maior, de uma atitude proativa, de vestir o terno do próximo cargo em que você quer estar. “Você sabe quantas horas por noite dormem, em média, os gerentes regionais?” Você vira os olhos e pensa que eles dormem com dificuldade, mas os altos executivos dificilmente dormem como eles. Então sua família começa a lançar indiretas. Seus pais o julgam uma vergonha: “Na sua idade eu já dormia menos de quatro horas por noite, onde foi que eu errei, filho meu?” Mas você ignora e continua feliz a dormir o quanto quer, sem ligar para o que lhe dizem. Então o despertador soa e você se dá conta de que se levantará para outro dia em um mundo onde dormir até descansar é apenas um sonho.
A privação de sono tem efeitos tão deletérios em mim que eu acho que sou até anormalmente sensível a isso. Já me conformei e me assumo, quando o assunto é sono.
Outro dia no trabalho alguém falou algumas coisas sobre rebite, red bull, extrato de não sei o que. Eu disse que você pode viver de ritalina em ritalina que o sono vai cobrar a dívida um dia, não tem como fugir.
Vou morrer dizendo que fazer as coisas privado de sono é igual ou pior que fazê-las embriagado, pelo menos para mim. Fui derrotado pela privação de sono. Não tenho vergonha.