> We don’t need no education,
We don’t need no thought control,
No dark sarcasm there in the classroom.
Teachers, leave them, kids, alone.
Hey, teacher! Leave the kids alone.
All in all it’s just another brick in the wall.
A leitura de *Preconceito Linguístico: o que é e como se faz* — obra seminal de Marcos Bagno — me abriu os olhos para algo que eu intuía, mas nunca articulava: o viés de luta de classes que está presente na concepção da língua como algo que precisa ser ensinado ao povo *ignorante*, ao povo que *não sabe falar*. Na visão da gramatiquice tradicional, já devidamente desancada por Monteiro Lobato em sua *Emília no País da Gramática*, o povo é uma espécie de primata pelado que não se humaniza, pela linguagem, se não for à escola, esse laboratório do saber onde o tosco bípede é amestrado naquilo que serve aos objetivos da sociedade capitalista.
Eu já havia sentido na pele esta situação nas vezes em que fora discriminado por falar como um “roceiro”, já percebera esta tensão na diferença de prestígio entre o falar de uma região em relação ao de outra. Mas Bagno me abriu os olhos também para uma outra coisa que eu não tinha ainda percebido: que a língua, tal como a falamos, não é uma versão bastarda e manca da Última Flor do Lácio Inculta e Bela. Em vez disso, é um fenômeno novo, coerente, gramaticalizável e perfeitamente útil na boca de quem o usa. A língua que a gente fala é um dialeto do português padrão, que os gramáticos tradicionais querem descongelar da forma em que foi posto ainda no século XIX.
Estas ideias ficaram voejando em torno de minha cabeça durante anos, sem que eu as levasse mais adiante, até o dia em que se acendeu em mim uma centelha de novidade: o dia em que meu interesse por línguas artificiais — eu estudara esperanto ainda na adolescência, embora nunca tivesse aprendido a realmente falar — se uniu às ideias de Marcos Bagno e ao meu orgulho mineiro. Isso aconteceu enquanto começava a escrever um romance — ainda não terminado — intitulado provisoriamente *Serra da Estrela*.
Enquanto pesquisava para formatar a língua “estropiada” que os personagens de meu romance falariam, comecei a perceber que não era necessária tanta pesquisa, bastava mapear os metaplasmos, arcaísmos, “corruptelas” e outros fenômenos, fonéticos, morfológicos e sintáticos, que ocorrem em meu próprio falar quando não me policio para tentar parecer “educado”. Esta constatação foi ainda mais aprofundada quando, ao dialogar com estrangeiros, percebi a facilidade com que eu saía do português castiço e recaía em meu dialeto, ininteligível para eles.
O processo de mapeamento destas características me levou, no fim, a perceber que a gramática do português que tem sido ensinada na escola não é realmente a da língua que falamos. É uma gramática estrangeira para a maioria de nós. Nada é tão alijado do falar do povo quanto uma gramática normativa que ainda emprega segunda pessoa e recomenda a mesóclise. Se esta língua formal está tão longe do falar do povo, por que o nosso sistema de ensino não reconhece isso e adota em seu ensino técnicas pedagógicas adequadas para o ensino de línguas estrangeiras? Seria certamente mais efetivo do que cobrar de pobres crianças que assimilem como “errada” a língua que aprenderam naturalmente e como “certa” uma língua que lhes é imposta pelo sistema de ensino. Crianças mais inteligentes e de auto estima mais alta, como eu modestamente me declaro (e vocês logo entenderão porque), aprendem eficazmente o português padrão sem abandonar o uso de sua língua natural. Crianças menos inteligentes, ou menos talentosas para o aprendizado de línguas, padecerão a vida inteira com a impressão de que falharam em aprender a própria língua. Para elas o português está errado, e é uma língua difícil. Mas elas se enganam: errado está o método, errada está a escola que finge que o povo fala exatamente como nos livros.
Basta que eu passe a escrever empregando convenções ortográficas mais próximas do coloquial e tolerando os fenômenos morfológicos e gramaticais característicos de meu dialeto para que se perceba que não podemos aceitar como dada esta correspondência entre a língua que se ensina e a que se fala. Afinao, a gente nõ fala iguao screve. Cada lugar do Brasio tem um jeito seu de falar. Nõ tá nem errado e nem certo, é só dois jeito diferente de ser e de falar. Na gramática formao tem “concordança” do sustantivo com toda as palavra que ligõ co ele, maes em quaes todo os dialeto do país o plurao fica só no artigo. A diferença entre o L e o U no finao das sílaba é uma coisa que só eziste na gramática e no dicionari, e o povo se entende co isso. As palavra “proparoxítona” é otro pobrema: pelo menos aqui in Minas Geraes isso quaes nõ eziste e o povo assimila as duas última sílaba. “Fósforo” vira fosfo, “música” vira musca. E quano nõ dá para fazer essa mudança, mudam a palavra: nada fica “próximo”, maes umas coisa fica perto.
Mudanças léxicas, semânticas, sintáticas, fonéticas, morfológicas. À parte as semelhanças restantes, as diferenças já acumuladas são suficientes para se afirmar, sem muito medo de errar, que entre os dialetos brasileiros e o português padrão já existe mais diferença do que entre as formas padrão do português e do galego, tidos como línguas diferentes.
Não quero aqui argumentar que devamos sucumbir a estas forças (elas vencerão de qualquer forma, com o tempo), mas que está mais do que na hora de entendermos que o povo não fala “errado”, apenas fala uma variante linguística não padronizada e não gramaticalizada (posto que não há gramáticas e nem dicionários desses falares coloquiais). Precisamos respeitar o povo, deixar de vermos nele um primata pelado que precisa “aprender a falar” e enxergar nele o que é, um cidadão pleno de direitos, como qualquer outro, que apenas calha de falar diferente.
Não é necessário, claro, abolir o ensino do português padrão, como algum boçal leitor dirá que eu estou defendendo porque não foi letrado o suficiente para ler até aqui, apenas modificar o modo como é ensinado, para que deixe de se basear na humilhação inútil dos alunos com a imposição de um padrão artificial como natural. Ensinar o português padrão com a noção de que ele é *diferente *daquela língua que o menino fala e que esta língua que a escola ensina, apesar de não ser “melhor” do que a outra, é a língua adotada pela nação, como traço de união de todos os brasileiros.
Quando se popularizar esta consciência de que o português padrão é um fenômeno alheio à realidade imediata do aluno, será mais fácil ensinar-lhe a gramática pátria. Não será preciso, intolerantemente, dizer-lhe que “assim é que é certo”, apenas que *na língua padrão é diferente.* No dia em que não for mais necessário usar a língua padrão como ferramenta de subjugação das identidades regionais ela será até mais efetiva para unir os diversos povos que formam o povo brasileiro.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e gostei do blog, pretendo voltar mais vezes.
Abraço!
Essa modificação do modo de ensino da língua portuguesa não é um projeto distante, mas um processo que está pouco a pouco se desenvolvendo e enfrentando as já esperadas barreiras reacionárias.
Exatamente essa diferença entre o português padrão e o português do dia-a-dia – a língua viva – era tratada no livro de português para o ensino fundamental que a grande mídia acachapou ao dizer que “ensinava a falar errado”.
Note o absurdo ínsito na crítica: a escola brasileira para falantes do português jamais pode ter a pretensão de ensinar a falar!
A língua falada é viva, é um instrumento apreendido no convívio social. A língua escrita – essa sim deve ser ensinada e aprendida na escola – é uma convenção a partir daquela outra para criar uma padronização.
A disparidade entre uma e outra não é, sequer de longe, sinal de ignorância, mas uma consequência inevitável. A língua falada varia com o lugar, o tempo, o grupo. A língua culta não pode acompanhá-la, está sempre um passo atrás.
Vejam os franceses: há séculos que a pronúncia dos verbos regulares no presente nas pessoas do singular e na terceira pessoa do plural são idênticas, em que pese a ortografia ainda preservar as formas arcaicas (je parle, tu parles, il/elle parle, ils/elles parlent).
Mas é claro que o fenômeno natural também tem sua face política e algumas variações da norma culta são etiquetadas como erradas, marginalizando os grupos que dela se servem.
É necessário, ao tratar da norma culta nas escolas, ensinar que ela é: 1. uma variante, dentre várias, utilizada como padrão unificador; 2. um instrumento de opressão de classes dominantes; e, como consequência, 3. um dos mais importantes instrumentos de libertação das classes dominadas, o que torna imperioso o seu aprendizado.