Sonhos não costumam ser explicáveis nem previsíveis. Se assim fosse, eu certamente sonharia mais com gente que eu conheço e com quem convivo e teria menos pesadelos aleatórios com gente distante e em quem raramente penso. Um desses episódios aconteceu em junho.
O sonho já começa no meio, então não me pergunte como chegamos lá. Tudo começa e eu já estou sentado à mesa de um restaurante popular, em companhia de dois amigos. Quem está comigo na mesa, almoçando P. F. e falando de coisas desimportantes são o meu amigo Sassá e o ex-presidente Fernando Collor de Mello.
Sassá está com os olhos vermelhos de tanto beber e eu me sinto zonzo, mas deve ser porque estou com sono, afinal estou dormindo. Fernando Collor está despenteado e fuma cigarros Continental, como os que meu pai fumava antigamente. Sassá reclama que já está muito tarde, mas, curiosamente, ainda é dia lá fora.
“Você tem de entender, José Geraldo,” — ele diz, — “que eu fui muito mal interpretado naquele momento histórico. Tentei cavalgar a dialética e caí do cavalo.”
“Você está falando do confisco, não é, Fernando?”
A essa altura já estamos tão íntimos que nos chamamos pelos prenomes. Somos amigos, assim. E Fernando tenta me explicar o que, raios, lhe passava pela cabeça em 1990.
“É, a coisa do confisco” — diz ele. “Zélia e eu percebemos com clareza que não seria possível o Lula implementar uma política reformista séria no país por causa da resistência da classe média. Nossa primeira prioridade foi impedir que ele fosse eleito e tentasse, porque falharia. Alguém precisava preparar as bases para ele.”
“Uma vez que fui eleito, no entanto, um camarada do PCUS me procurou e confessou que a KGB ajudara a derrotar o Sapo Barbudo. Eles não confiavam em sindicalista por causa do Walesa. Mas eu ser proprietário era tranquilo, Stálin era de família nobre e Fidel, filho de fazendeiro.”
“O plano era simples: atacar a jugular da classe média, ao mesmo tempo em que livrava a cara da elite. Assim se neutralizava a solidariedade ideológica dos remediados com os ricos e se criava o clima certo para uma revolta popular genuína.”
“A elite nunca desconfiaria que estava ganhando um salva-vidas de ouro enquanto a gente preparava a guinada do navio para outras águas. “A coisa estava tão avançada que confeccionaram um passaporte cubano para mim, para o caso de tudo dar errado. Eu o tenho no bolso até hoje. Olha ele aqui.”
Fernando me mostra uma fotocópia do passaporte, obviamente já vencido há muito tempo. Na foto ele está bigodudo e usa óculos escuro. Hernán Afonso Cuéllar de Melo.
“Se a revolta espocasse, alguma múmia do PCdoB tomava a frente e eu fugia do país para viver em Havana com o nome falso.”
“Aliás, por que você acha que meu tesoureiro era o ‘PC’ Farias? Era ele quem trazia o ‘ouro de Moscou’, obviamente”.
“Infelizmente deu errado. A classe média não desgrudou da elite, o povo não entendeu, os comunistas não apreciaram o meu gesto, Lula não obedeceu à diretriz do PCUS (bem que a KGB não confiava naquele Walesa nordestino) e a revolução não saiu. Tive que administrar a bomba!”
“Para tudo piorar, os americanos ficaram sabendo, eu acho. Pressionaram o meu irmão para ele contar aquele história, a Globo caiu em cima de mim como urubu na carniça e logo o povo tava na rua querendo minha cabeça.”
“A coisa tava tão séria que eu vivia sob sedativos. Você deve ter visto a minha entrevista para a tevê da Argentina… Um cara da KGB me tomou o passaporte cubano e disse ‘nunca nos vimos’.”
“Eu fiquei por minha conta. Se eu desse um passo em falso a CIA me pegava. Eles não tem limites, forjaram fotos minhas com outra mulher e mostraram para a Rosane, daí ela me largou. Acho que devem ter mostrado fotos falsas para o Pedro também, coitado.”
“Eu não queria subitamente pegar um câncer cerebral como ele, então caí fora e fui cuidar das empresas da família em Alagoas. Só eu e o PC (Farias) tínhamos provas de alguma coisa. Então mataram o PC e eu vi que tinha de negociar com os ianques para salvar a minha pele. Nunca tive vocação para herói, você sabe.”
Nesse momento o Sassá, que estava bêbado, mas não estava bobo, interrompeu: “Se a KGB matou o PC para vocês não contarem a ninguém sobre o plano, por que, raios, você está aqui contando para nós?”
Então Fernando, com uma expressão muito séria, disse: “Eu já sou um homem marcado. Agora estou entregue à CIA e à KGB, não querem que eu confesse, mas eu já decidi que…”
Gritos na entrada do restaurante. Olhamos para trás, eu e Sassá, e vemos dois homens corpulentos, com óculos escuros, entrando e empurrando mesas, eles tem pistolas gigantescas na mão. Pulamos da mesa e vamos nos arrastando entre os fregueses, derrubando gente e travessas.
Collor é atingido no peito por três disparos certeiros e cai sangrando sobre um prato de macarrão ao alho e óleo, que fica parecendo spaghetti al sugo.
Eu acordei suado e ofegante, gritando “Aqueles animais! Mataram o Fernando! Mataram o Fernando!”
Se eu me lembrar o que foi que bebi eu juro que conto para vocês.