Escrito originalmente em 1999 ou 2000, um de meus primeiros experimentos em prosa. Em sua calma sensualidade, a mão sobre o peito e a inocência no rosto, ela balbucia uns segredos inconclusos. Bela Adormecida tão recentemente apresentada à ingratidão do mundo, murmura festividades verbais inconsequentes que flutuam sem compor ordem na confusão improvisada de seus pensamentos. Ela não sabe, mas sente, que as palavras são armadilhas em que sempre caímos. Há tão pouco tempo ela atingira a feminilidade que ansiosamente desejava, há tão pouco tempo […]
Author Archives: José Geraldo Gouvêa
Semente do Mal
O feiticeiro se debruçava sobre os incunábulos, obcecado com os astros, sentindo a passagem dos decanatos enquanto aguardava o momento propício para dar prosseguimento à sua Grande Obra, quando uma batida à porta se fez ouvir, interrompendo a sua concentração. Praguejando contra dezenas de gerações de habitantes daquela miserável cidade, aonde fora esconder o seu focinho da ignorância supersticiosa dos inquisidores, abandonou o contemplar dos planetas na noite límpida de inverno e desceu as escadas penosamente até a porta de madeira firme, cuja aldraba em […]
Noites de Insônia
Nenhum pretexto tolo justifica não dormir uma boa noite de sono. Não há culpas, não há pendências, nem trabalho por fazer que valha o repouso. Porém dormir não é tão simples quanto parece. Parece haver uma conspiração contra o meu sono. O dia inteiro aguardo a noite, na esperança de poder ouvir algum silêncio depois que meus vizinhos forem dormir, minha mulher enfim virar para o canto e mergulhar nos seus sonhos de classe média, as crianças estiverem brincado com fadinhas e bonecas em seu […]
Uma Lua Aveludada
Uma lua aveludada acarinha minha solidão e amortece mais o som cavado e longínquo da sinceridade em meu coração e respiramos em silêncio a luz de anêmona, desta luz-feitiço que reveste a noite de um pensamento iníquo.[^1] Você trouxe uma taça de licor quando entrou e dominou-me pensamentos, palavras, atos e omissões. A noite depois se dobrou sobre nós e vento bateu as janelas e derrubou o livro pelo chão. Corujas piaram na escuridão, o vago e incriado exterior, contamos os minutos no relógio ouvindo […]
Horas Mortas
José Tranquilo não era chamado assim por escolha de ninguém. Era seu sobrenome, mas não sua vontade e nem o seu destino. Tinha sido metalúrgico em uma fábrica em uma grande cidade, ganhara algum dinheiro e vivera aventuras, mas tivera que voltar, com o rabo entre as pernas, justamente porque perdeu a calma — e por um triz não perdeu também a alma. Voltou para nossa cidade trazendo na bagagem um uniforme azul com o emblema da Volkswagen e foi ser mecânico de automóveis no […]
As Nuvens Por Travesseiro
O cobertor de nuvens me envolve e amortece os sons enquanto eu me estendo sonolento ao lado de meu amor que respira bem suave e a lua sobe.[^1] A noite continua, eu fecho a porta e deixo o livro pelo chão: a escuridão se põe em morros calmos, a estação mudou e o vento é morno. Criaturas se levantam, outras dormem. Retenha os seus sonhos, sonhos fogem. Ao gramado chega uma chuva fria que anuncia um amanhecer dourado. E o som do novo dia ergue-se […]
À Guisa de Manifesto
Uma das diferenças entre pornografia — que não é arte — e erotismo — que pode ser ou não — reside no tratamento do assunto. Na primeira, o conteúdo se resume ao tema apresentado: não há sutileza, não há enredo. Nem questionamento, nem inquietude, nem objetivos do autor. Oferece-se ao público exatamente aquilo que espera, sem levar de contrabando nenhuma semente de rebeldia. Não existe manifestação humana mais reacionária e nem mais conformista do que a pornografia. Talvez por isso, mesmo sendo severamente proibida por […]
O Amor Partido
O amor partido deixa dentro da saudade a marca de saudades mais profundas e anteriores. Saudades que não são vontades. As saudades que lhe tenho, ex-amor, não querem tê-la mais; querem algo que não se sabe. Quando a vejo agora, não sinto nada. Porém quando a vejo em sonhos, sinto uma quase dor. Eu amo ainda quem você foi, mas esqueci quem você é. Até os ciúmes que lhe tenho agora não são de você estar com outro, mas de ter estado comigo. Esta espécie […]
Morrer Nunca Esteve Tão na Moda
Aparentemente, os jovens, especificamente os que gostam de escrever, possuem um fascínio pela morte digno de nota. Nove em dez jovens autores já escreveram algum texto contemplando a ideia do suicídio (eu mesmo fiz isso nos meus vinte anos), dez em dez fizeram da morte de alguém (real ou imaginário) o tema de algum texto que julgam significativo. Nada disso é novo, no entanto: morrer sempre foi fashion. Nos tempos românticos de antanho, quando as pessoas ainda levavam literatura a sério e a palavra “antanho” […]
Quase Perdido
Estou perdido e sem poesia numa vida alheia que invadi. Sinto-me intenso e estranho e nada mais ruge dentro de mim. Nas palavras não restam dilemas e nem poeira de estrelas repousa sobre sonhos que murcharam. Logo estará deserto o dia e eu dormirei uma paz sem hora. Metade de minha própria história corro em busca do metal mais raro. A outra metade está sem graça porque repousa para cada dia. Sinto tenha sido assim. Mas as palavras, ainda que isentas, Serão sempre um falso […]