A Última Noite do Velho Poeta

Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]

Ode ao Palhaço

Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres. O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é […]

O Flautista

Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor. A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os […]

Um Buraco em Forma de Deus

Vestimos a vida, roupa desconfortável e apavorados vivemos no mundo. Andamos sem rumo querendo salvar-nos de vaidades, perigos e segredos.[^1] Espíritos tensos, buscamos sem onde o fio que nos liga a nós mesmos. Somos palhaços no meio da praça, rindo, felizes, de quem mal nos trata. Espíritos e carnes densamente pensam a essência que justifique tudo isso, aspiramos ao alto mais alto e o vemos cair como uma ameaça sobre nós. Corpos retesos e mãos impotentes, acenamos na noite em busca daquilo, somos virtude e […]

Ciência das Cavernas

Três homens das cavernas estavam descansando na porta da caverna à tarde depois de se empaturrarem de carne de mamute, manteiga de leite de camela e algumas frutas silvestres. De repente um raio atingiu uma árvore próxima e ela começou a queimar. O primeiro deles correu para dentro da caverna e começou a gritar que os espíritos haviam decidido destruir o mundo e que era preciso apaziguá-los. As mulheres, as crianças e os tolos acreditaram nele e levaram um filhote de javali para ser queimado […]

Tenho Livros Como Quem Tem Gatos

Eu costumava ter gato. Adorava acarinhar aquele bicho, mas ele não tinha muito gosto por afagos. Um dia ele morreu, nem lembro do que, e eu comecei a esquecer. Nunca mais pude ter gatos. Quando cresci fiquei alérgico e fui viver num apartamento. Passo o dia fora e não tenho quem cuide de bichos para mim e detestaria deixá-los cagando soltos. Lembro com saudades do bichano, mas tudo que tenho para me consolar são meus livros. Os livros são mais ou menos como gatos. Você […]

A Distração do Escriba

Tii era um funcionário exemplar e se orgulhava disso. Num país de camponeses que tinham de estragar as mãos na dureza do trabalho para poderem extorquir da terra o seu pão, sentia-se feliz por ter um trabalho afastado da faina e do sol: era escriba. Trabalhava para Hátor num templo de província, a administrar os cereais. Devia manter sob rigoroso controle o estoque de grãos que sempre devia estar à disposição do povo nos anos de seca, para grande lucro da deusa e gratidão da […]

Aos Espíritos

Eu esqueci quem fostes, fantasmas do passado. Esqueci todos os beijos e as tépidas noites de outono. Estou aqui pensando e me tenho perdido como nos maus velhos tempos, com as mesmas palavras gastas repetindo antigos erros. Gastei demais o meu tempo gostando de coisas banais, depois veio a seca da vida e uma espécie de ressaca que teima com gosto amargo e este vento intrépido me faz sentir os pecados e pensar em coisas sem nexo. Tenho sido alguém sem sentido, tenho seguido caminhos […]