Cheguei em casa sentindo-me esquisito hoje e preciso ouvir uma canção bem triste, para arruinar meus nervos e me pôr deitado tragicamente em minha cama a lamentar minha sorte errante e as trevas que se impõem contra mim. Diante do fogão ainda está a poça de gordura que entornei ao preparar o meu almoço de solteiro. Dentro do banheiro a mecha de pêlos que se acumula no ralo de plástico, denunciando que há dias que não o limpo. As paredes acumulam mofo e teias de […]
Author Archives: José Geraldo Gouvêa
A Última Noite do Velho Poeta
Vou andando sozinho pela escuridão da noite. Volto para casa com os ouvidos amortecidos e com amargura na boca pela décima vez no mês numa noite morna de outubro ou novembro. Subitamente eu me dou conta de estar imerso num silêncio sibilante e imenso que apenas raros carros cortavam. Com passos duros e pernas doloridas, cruzo a Ponte Nova e subo em direção à praça, onde já quase não há ninguém agora, salvo três fregueses de uma lanchonete comendo cachorros quentes e um bêbado gritando […]
Ode ao Palhaço
Um homem extremamente infeliz não consegue nunca crer na profundidade do abismo. A infelicidade necessariamente induz ignorância: somente esquecendo um pouco é que se pode tolerar a pressão das lágrimas que a alma exige, mas que os olhos não querem dar. Melancolia é diferente, há uma tristeza pouco aparente entre não ser alegre e não ser feliz. Pouca gente sabe, mas existem infelicidades muito alegres. O homem vivendo no extremo da felicidade aprende a fingir: somente quem finge consegue sobreviver ao espelho quando ele é […]
O Flautista
Amaralina tinha sido uma cidadezinha qualquer, com casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomares e amores para quem quer que soubesse vivê-los. Seguia sua vida besta bem devagar, entre montanhas bem altas, rios suficientemente traiçoeiros e solo providencialmente pobre de qualquer coisa que o bicho-homem pudesse querer arrancar à força de máquinas e dor. A gente de lá era arredia e desconfiada de estranhos. Colonos tricentenários, muito pouco acostumados a quem não tivesse o falar líquido que eles tinham aprendido com os índios e os […]
Um Buraco em Forma de Deus
Vestimos a vida, roupa desconfortável e apavorados vivemos no mundo. Andamos sem rumo querendo salvar-nos de vaidades, perigos e segredos.[^1] Espíritos tensos, buscamos sem onde o fio que nos liga a nós mesmos. Somos palhaços no meio da praça, rindo, felizes, de quem mal nos trata. Espíritos e carnes densamente pensam a essência que justifique tudo isso, aspiramos ao alto mais alto e o vemos cair como uma ameaça sobre nós. Corpos retesos e mãos impotentes, acenamos na noite em busca daquilo, somos virtude e […]
Ciência das Cavernas
Três homens das cavernas estavam descansando na porta da caverna à tarde depois de se empaturrarem de carne de mamute, manteiga de leite de camela e algumas frutas silvestres. De repente um raio atingiu uma árvore próxima e ela começou a queimar. O primeiro deles correu para dentro da caverna e começou a gritar que os espíritos haviam decidido destruir o mundo e que era preciso apaziguá-los. As mulheres, as crianças e os tolos acreditaram nele e levaram um filhote de javali para ser queimado […]
Tenho Livros Como Quem Tem Gatos
Eu costumava ter gato. Adorava acarinhar aquele bicho, mas ele não tinha muito gosto por afagos. Um dia ele morreu, nem lembro do que, e eu comecei a esquecer. Nunca mais pude ter gatos. Quando cresci fiquei alérgico e fui viver num apartamento. Passo o dia fora e não tenho quem cuide de bichos para mim e detestaria deixá-los cagando soltos. Lembro com saudades do bichano, mas tudo que tenho para me consolar são meus livros. Os livros são mais ou menos como gatos. Você […]
A Distração do Escriba
Tii era um funcionário exemplar e se orgulhava disso. Num país de camponeses que tinham de estragar as mãos na dureza do trabalho para poderem extorquir da terra o seu pão, sentia-se feliz por ter um trabalho afastado da faina e do sol: era escriba. Trabalhava para Hátor num templo de província, a administrar os cereais. Devia manter sob rigoroso controle o estoque de grãos que sempre devia estar à disposição do povo nos anos de seca, para grande lucro da deusa e gratidão da […]
Aos Espíritos
Eu esqueci quem fostes, fantasmas do passado. Esqueci todos os beijos e as tépidas noites de outono. Estou aqui pensando e me tenho perdido como nos maus velhos tempos, com as mesmas palavras gastas repetindo antigos erros. Gastei demais o meu tempo gostando de coisas banais, depois veio a seca da vida e uma espécie de ressaca que teima com gosto amargo e este vento intrépido me faz sentir os pecados e pensar em coisas sem nexo. Tenho sido alguém sem sentido, tenho seguido caminhos […]
Eu Encontrei o Amor
Eu encontrei o amor de passagem por uma cidade estranha. Não fui ingrato de não lhe dar um sorriso, mas não estou conseguindo pensar direito mais desde aquele fatídico instante em que ele me rendeu como um assalte à sua vítima e levou de mim o único juízo que eu tinha. Margarida também percebeu, mas não tinha no bolso arma com que se defender do sorrateiro e acabamos terminando a noite dizendo bobagens um ao outro. Fizemos promessas que agora teremos de cumprir, despedimo-nos com […]