“Não há uma história para contar” — disse o homem depois de olhar nos olhos os amigos que o rodeavam. “Lá em cima é frio e solitário, não há nada para ver e aquele vento que vem não te traz nenhuma sensação além do desespero. Não há nenhuma sensação mística, nenhuma experiência espiritual.” E desceu, ainda com as botinas molhadas de orvalho, carregando nas costas a enorme mochila de acampamento. Os demais permaneceram ao pé do monte observando o acúmulo de nuvens brancas em torno […]
Author Archives: José Geraldo Gouvêa
História de Amor Sem Amor
Augusta estava deitada quieta, nua, olhando para o teto, com o suor do corpo ainda evaporando após o amor, aquela sensação fresca, aquela preguiça, aquele formigamento… — Venha morar comigo. Assim, de repente, foi que Humberto pôs no ar a frase, solta e súbita. Mesmo a princípio se sentindo agredida, ela reagiu com moderação. — Não é assim, Humberto. Não faz ainda nem cinco meses que a gente se conheceu. — Por que não? Cinco meses me bastaram para querer você. Não devemos nada a […]
Sobre Cães e Esses Bichos Esquisitos, Seus Donos
Estávamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Assunto vai e assunto vem, acabamos chegando a falar sobre a dubiedade do caráter humano. Aí algum humorista presente à mesa em dia de péssimo humor atalhou: — O ser humano também devia ter cauda. Assim ficaria mais fácil identificar o prazer, a alegria, a dor, a contrariedade ou o cansaço. Não ia ser tão frequente esse sofrimento de decepcionar ao outro por não saber como reagir. — Quem tem cauda é cachorro, ó João. Deixe de ser besta porque […]
Pregando na Praça
Dia desses eu vi uma cena deprimente. Saindo do banco vi um pastor pregando na praça. Ele tinha uma bíblia esgarçada, um terno puído e uma gravata vários números maiores que o dele pendendo do pescoço magro. Eu conheço esse pastor, é um homem solteiro e solitário, já além dos quarenta anos de idade, que trabalha como marceneiro. Todos os domingos e eventualmente durante a semana ele pega sua velha bíblia, um caixote de madeira e seu terno preto já quase perdido e vai para […]
Sintomas de que você é brega
Brega não ama, apaixona-se perdidamente. Brega não tem filhos, tem “amores”. Brega não se casa, “encontra uma alma gêmea”. Brega não ouve música, “põe um som.” Cerveja brega precisa estar “estupidamente gelada.” Verão brega tem sempre um “calor de rachar.” Brega quando dança “faz o chão da terra tremer.” Brega não sai na noite, sai na “night”. Beijo de brega é eletrizante. Coração de brega fica despedaçado com qualquer decepção. Aliás, nenhuma decepção de brega é “qualquer”, todas são traições. Uma multidão de bregas é […]
Amores Que Perdi
Gosto mais de escrever para amores que perdi do que para amores que ainda ouço em mim. Não é porque o passado seja confortável; mas há mais motivos na saudade que na vida e ser poeta é ser triste, a sensibilidade é frágil e nos quer mergulhando em abismos que outros veem à distância e apenas acham belos. Da próxima vez que for feliz, haverá mais música, mais beijos e mais certezas. Mas também vou esquecer minhas promessas porque o amor é exigente e arisco. […]
Carta a José
As lições que você ensina, José,1 há outros professores para ensinar, inclusive melhor que você e sem essa necessidade de autoafirmação que o leva a ofender os outros. O verdadeiro mestre não é o que humilha o seu aluno, mas aquele que faz o ignorante se sentir à vontade para aprender. Você não é um mestre, é um perdedor que se agarra a migalhas de conhecimento que obteve, procura fazer com que pareçam maiores do que são (independente do tamanho real que tenham) a fim […]
Por Causa de Valéria
Por causa de Valéria estou perdido. Agora pouco me resta fazer, a não ser ficar sentado à janela esperando que alguma coisa no horizonte me responda qual o sentido de minha vinda ao mundo. Não tenho mais amigos, a casa de meus pais está longe e é apenas uma questão de tempo que seja privado até mesmo de minha liberdade, único bem que me restou.1 Tenho arrependimento em mim. Não só por estar em vias de perder tudo, mas também por não ter sabido transformar […]
Um Desaparecimento
Hoje desapareceu um cara. Seu nome era Patrício Pinto, ou pelo menos era assim que o conheci. Bem, de fato eu não o conheci, apenas acompanhei sua carreira meteórica. Talvez mesmo “acompanhar” não seja o melhor termo: eu assisti, de longe apenas, a uma parte de suas estripulias. Tornei-me seu fã sem nunca tê-lo visto pessoalmente, admirei-o em cada palavra, mesmo sem saber quais palavras eram realmente suas e quais eram apenas repetições de palavras que outras pessoas haviam dito em outras ocasiões. Mas hoje […]
Amigos, Amigos
Filipe achou-se inconsolável na semana seguinte à mudança de Amadeu para Janaúba. Acho estranho ter um sentimento assim então. Porque no dia que soubera da promoção do amigo, condicionada à transferência, aconselhara-o positivamente no sentido de aceitar. Ajudara-o a fazer as malas e mantivera vivo o seu entusiasmo nos momentos de incerteza em que pensava na distância da família e dos amigos e na necessidade de refazer tudo em uma cidade estranha. Não pensara que sentiria tanta e tão súbita saudade. Haviam sido sete anos […]