A Poder de Remédios

Os gânglios linfáticos de Teresa doíam do esforço de simplesmente deixar o carro e andar até a soleira da porta. O sol estava forte, o vento estava seco e ninguém parecia se importar. Vivia sozinha fazia tempo, nunca se importara. Só a companhia do câncer mudara isso: tinha medo de morrer só, de ser encontrada putrefata na sala, com ratos dentro da barriga e vermes lhe saindo dos olhos. Mesmo morta não se imaginava feia: queria que sua última imagem fosse a da beleza que […]

Mascarados Dialogando de Dia

O prédio das repartições municipais era bonito, histórico, razoavelmente bem depredado e detestável. Entrei pela porta de madeira bruta, entalhada a machado, em busca do departamento de arrecadação do imposto predial e territorial urbano, onde deveria tentar obter, pela quarta vez em trinta dias, uma certidão negativa que me habilitasse a hipotecar a minha própria casa para poder custear o tratamento da doença terminal de minha mulher. Um dia falarei sobre isso, sobre a obrigação que temos de dilapidar o futuro dos filhos para fingir que tratamos da morte inevitável dos vivos, tudo porque a sociedade nos culpará se sobrarmos razoavelmente ricos depois de uma desgraça na família.

Celebridade

Na “praça de alimentação” de um grande shopping em uma cidade razoavelmente grande as pessoas, de vários tamanhos e cores, se amontoam em torno de mesas e competem pela atenção dos garçons. Termino de comer um sanduíche, sem me sentar e vou saindo daquela aglomeração opressiva quando percebo um diálogo divertido acontecendo numa das mesas. Aparentemente uma moça pedira licença a um desconhecido para se sentar em sua mesa, e ele aproveitara a oportunidade para apresentar-se e tentar alguma coisa.

Tempo de Semear, Tempo de Colher

Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

O Poetinha, o Maconheiro e a Ivete

O poetinha desceu do ônibus já suado e despenteado. O óculos empenado na cara, a camisa amassada pela viagem desajeitada, a umidade incomodando por debaixo da roupa, o hálito amargo devido ao nervoso e ao fígado. Bateu no peito para ter certeza de que seu poema, copiado com capricho na velha máquina de escrever, se encontrava ainda intacto. Não estava: tanto suor o amolecera. Retirou-o do bolso e desdobrou com cuidado, quase com lágrimas. O mesmo calor que o molhara não o secaria. Xingou algum […]

O Último Reduto

Júlio era um “programa humano”. Esse era o nome pelo qual os líderes do Magistério Supremo os chamavam. Pessoas cujos cérebros haviam recebido, ao longo de uma vida inteira, informações subliminares destinadas a prepará-las para o momento em que o Grande Mestre resolvesse usá-las. Todos sabiam que os programas humanos eram amplamente conduzidos na Terra inteira e muitos os odiavam, mas vivia-se um tempo em que até odiar o Magistério já se tornara algo cuidadosamente controlado, pelo Magistério. Sempre tivera a impressão de que o […]

Marlene, Número 156

Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.[…]

Tivemos Futuros Promissores

Américo dizia-se amargo de propósito: queria treinar rabugice para quando fosse famoso. Então poderia esnobar entrevistas e desfilar namoradas bonitas em carros do ano. Não conseguia nem ficar famoso e nem realmente ser amargo: era apenas triste e apagadiço. Sentava-se na primeira das carteiras para fingir ser estudioso, mas andava sempre com notas ruins e sapatos rigorosamente engraxados. Meticuloso em suas escolhas, enquanto não ficava famoso e amante de modelos perfeitas deixou-se namorar por Jaqueline, que era vesga, magra, sardenta, desconjuntada e fanha. Casou com […]

Quando o Cansaço e a Estafa…

Subíamos a muito custo, por falta de costume, de equipamento. Mas subíamos com muita vontade, com máquina fotográfica e a esperança de ver na face do vale a pegada da civilização. A montanha estava à nossa espera ali, onde sempre estivera, sua face sul vincada como um punho erguido, desafio aos nossos pés acostumados a planícies. A trilha ondeava como uma veia rosada a romper o verde grosso da floresta original, que se estendia sobre nós a ponto de, às vezes, não termos a cor […]

Atentado Violento ao Leitor

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é “Doe um Livro”, ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma […]